segunda-feira, 15 de agosto de 2022

O direito à preguiça

 Por Gilson Raslan Filho 

Mesmo se for considerada uma forma de resistência às condições cada vez mais precárias de trabalho, o jornalismo preguiçoso é uma ameaça à democracia





Em um texto anterior do Pluris (Pirâmide, pirâmides e a falta que faz o jornalismo), fiz uma crítica a uma prática muito comum de jornalistas e do jornalismo produzido regionalmente em portais noticiosos e TVs locais: a de não realizar de fato um trabalho de reportagem, um trabalho de abertura do contexto dos acontecimentos, essa sim uma tarefa imprescindível para a democracia. 

Neste texto, quero me ater ao fenômeno que há muito me chama a atenção – e que abordei brevemente no texto anterior: o uso indiscriminado e sem sentido do stand up no jornalismo das TVs locais. Antes, porém, de voltarmos ao fenômeno para explorá-lo, olhemos para o título deste artigo.

O direito à preguiça é uma referência direta ao manifesto homônimo, de 1880, escrito pelo líder operário de raízes francesas Paul Lafarge, genro de Karl Marx. No manifesto político-utópico, Lafarge aponta uma situação em que o maquinário, nas condições do século 19, era usado para impor um ritmo de trabalho inumano aos trabalhadores. Ao mesmo tempo, ele faz um elogio a esse maquinário, desde que os trabalhadores dele se apropriem e o utilizem para viverem uma vida menos dolorosa e submetida ao trabalho incessante e indigno.

Mais tarde, o sociólogo italiano Domenico de Masi retomou as teses de Lafarge em seu não menos utópico e hoje um best seller O ócio criativo, em que defende que o ócio como necessário para a criatividade – e portanto como um incremento de produtividade. 

A simples existência de manifestos que defendem a preguiça e o ócio como necessários até mesmo para o sistema de produção é um sintoma de que vivemos, desde o século 19, o avesso disso. Isto é: o arranjo produtivo capitalista vem aperfeiçoando as formas de superexploração da vida – do trabalhador, dos recursos naturais, dos sentidos e da percepção. E é exatamente esse o cenário em que se encontram os trabalhadores do jornalismo, cuja produção foi considerada, em algum momento, resultado do trabalho intelectual e criativo. Mas, pergunta-se: como ser criativo em uma situação em que se exibe como virtude a multiplicidade de funções que hoje são exercidas por um único jornalista? 

A tese que defendo aqui é a seguinte: o jornalismo preguiçoso é sintoma desse contexto de super-exploração de degradação profunda das condições de trabalho do jornalista. Foquemos, antes, porém, em entender melhor o que denomino de jornalismo preguiçoso e muito especialmente no caso da generalização do stand up no jornalismo televisivo regional.

Como exposto anteriormente, o stand up, em jornalismo de TV, é a prática comum e muito útil de informar sobre um acontecimento de forma breve e rápida. A tradução da locução verbal do inglês indica duas situações: “ficar de pé” pode se referir tanto à posição do repórter em frente à câmera, quanto a “levantar-se”, estar de prontidão para dar uma notícia rápida sobre um acontecimento importante demais para ser ignorado, enquanto se prepara a reportagem. 

Geralmente, no stand up, o repórter entra ao vivo. É claro que nada impede que esse boletim seja gravado e essa gravação seja utilizada para substituir a nota seca ou nota coberta realizada pelo âncora, com a mesma finalidade. Nesse caso, seria um recurso editorial, para fornecer dinâmica à edição. Seja como for, seu uso é pontual nas edições dos telejornais e nunca, jamais substitui o trabalho artesanal da reportagem. 

Pois é exatamente o contrário do que acontece no telejornalismo produzido regionalmente em Divinópolis. Por aqui, as (resumidas) equipes entram diversas vezes em uma mesma edição em stand up, tantas vezes que é possível dizer que o trabalho de reportagem, aquele em que o jornalista faz movimentar sua criatividade para narrar acontecimentos, é a exceção. 

O problema disso é que o espectador fica sem opção para compreender a torrente de acontecimentos do cotidiano, já que apenas a reportagem é capaz de fornecer elementos mais complexos para o recorte da realidade. Isto é: a reportagem é fundamental para o exercício consciente da cidadania e, consequentemente, para a democracia, pois é ela, não a nota rápida e seca do stand up, que permite um reconhecimento, a construção de sentido da realidade.

Ocorre que a reportagem é muito mais trabalhosa do que o stand up. Ela exigiria um trabalho artesanal de recolher informações, compreender os personagens envolvidos, montar e contar uma história. Como fazer tudo isso se as equipes foram se reduzindo diante da “necessidade” de o jornalista exercer múltiplas funções – nesse caso, de produtor, repórter, não raro cinegrafista, editor, além de fotógrafo e redator para outras plataformas? O stand up, seu uso generalizado se tornou, então, um sintoma da precarização do trabalho: os jornalistas – e são todos: dos gerentes aos repórteres – permanecem preguiçosamente no stand up diante do turbilhão de exigências e do volume de trabalho a que estão submetidos.

Então, sim, o jornalismo preguiçoso é uma forma de os profissionais resistirem – ainda que não conscientemente – ao quadro de profunda e contínua degradação das condições de trabalho. Seria uma virtude não fosse o fato de o jornalismo preguiçoso ser uma séria ameaça à democracia.



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A cobertura ambiental e a seca no jornalismo brasileiro

 A necessidade de compreender mais sobre assuntos ambientais e não se iludir com frases como “Agro é pop” 

 

Por Lais Abreu, 

 

Nos últimos anos, presenciamos no Brasil uma série de propagandas e reportagens do agronegócio, campanhas como “Agro é Pop, Agro é Tech, Agro é tudo”, circularam fortemente por todo território nacional. Embora seja uma publicidade, é de responsabilidade da empresa jornalística manter uma postura ética diante do silêncio sobre os problemas ambientais que essa indústria traz ao país. 

 

A campanha que se intitula como “Agro: a Indústria-Riqueza do Brasil” tem como objetivo alegado a conexão entre o consumidor eo produtor rural, e ao mesmo tempo desmistificar a produção agrícola aos olhos da sociedade urbana. No entanto, é importante ressaltar que a emissora é financiada por pessoas e empresas ligadas ao setor do agronegócio - e ela própria faz parte de um grupo econômico que tem entre seus negócios o “agro”. Desse modo, busca sempre criar uma imagem moderna e positiva do sistema capitalista no campo, negligenciando as relações e modo de vida no ambiente rural que passa pelos pequenos produtores rurais e que exercem papel fundamental na produção agropecuária. 

 

Nessa perspectiva, é fundamental citar as ondas de calor no verão europeu 2022, em um momento em que o mundo inteiro está discutindo sobre os impactos climáticos, a preocupação com crise hídrica e a relação do agronegócio com a devastação ambiental, o jornalismo brasileiro se omite, noticiando apenas o que lhes convém. Sendo assim, tais questões ambientais passam pelos noticiários da imprensa, mas os fatos noticiados nesta grande mídia não são destrinchados em uma perspectiva crítica e alarmante aos telespectadores sobre a verdadeira versão do agronegócio. 

 

A forma como a mídia retrata o conteúdo ambiental é leviana e pobre, apresentando sempre um contexto genérico do assunto de forma sensacionalista, seguindo os interesses mercadológicos, focando naquilo que o público quer ver, mas sem despertar consciência e cidadania nas pessoas. Os meios de comunicação precisam pensar em abordagens que vão muito além de noticiar os fatos, como as ondas de calor no euro summer, mas que também desenvolvam no ser humano reflexões que possibilitem a autocrítica das suas atitudes diante do meio ambiente. 

 

Além disso, é importante que o jornalismo brasileiro se desprenda da grande cadeia do agronegócio, haja vista que a própria Rede Globo oculta as informações dos telespectadores sobre como e por quem são produzidos os produtos agropecuários.

 

Diante disso, nota-se que as pautas ambientais são cada vez mais urgentes, enquanto os interesses dos “donos do agronegócio” as silenciam através da mídia. A defasagem não é apenas climática, mas também da sociedade e do mundo jornalístico.  


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Racismo no futebol

Por Igor Lemos

Caso de racismo no jogo entre São Paulo e Fluminense abre margem de interpretações “regionalistas”


Infelizmente, um dos maiores problemas sociais até a atualidade é o racismo e os diversos preconceitos com o próximo. Tais comportamentos estão presentes em vários meios da sociedade, seja no trabalho, ambiente escolar, locais públicos. No futebol, casos assim ocorrem com certa frequência, e é claro, a mídia sempre retrata esses acontecimentos com a gravidade necessária.

Na partida entre São Paulo e Fluminense, no dia 17 de julho, e que correspondia à 17ª rodada do Campeonato Brasileiro, houve uma denúncia em forma de vídeo, por parte de um torcedor da equipe carioca. O tricolor carioca, que não foi identificado pelas mídias alegou em seu vídeo que um são paulino estava fazendo gestos de macaco em direção a ele, como forma de ofensa.  Os clubes, por sua vez, deixaram em suas redes sociais, manifestações contra a atitude.

Entretanto, os veículos comunicativos, abordam o caso de formas diferentes. O vídeo, embora seja claro e nítido, dá margem de abertura para outras compreensões, como por exemplo, a imitação de um “cara forte”, assim redigido pelo portal da UOL, em uma de suas matérias do caso. 


As abordagens 

O caso é abordado através dos dois lados da história, tanto do torcedor vítima, quanto do praticante. O UOL faz suas matérias do caso em razão da hipótese de o gesto simbolizar outra coisa, e não o ato de racismo. O Globo Esporte trabalha o caso de forma indiscutível, quase afirmando que o crime ocorreu. 

De certa forma, essa discussão é plausível e “normal”, tratando-se do fato de opiniões jornalísticas fortes, e que expressam dois lados da moeda. Porém, o que deixa a situação controversa é o “bairrismo” das abordagens. 

No mundo esportivo, casos de racismo geram punições aos clubes, desde multas, perdas de mando de campo, jogos sem torcida, entre outros. E com isso, cada portal pode estar pesando o lado do seu clube mais próximo. Nesse caso, o GE estaria acusando o caso, que foi contra um torcedor do Fluminense, clube carioca, cujo Estado abriga a maior parte do complexo produtivo e é o berço do grupo Globo. Já o UOL é um portal paulista, que perderia muito com uma possível punição do São Paulo.

Até o momento, o caso está sendo apurado pelo Supremo Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) e deve ser solucionado em breve. Já as mídias, vão continuar noticiando sobre o ocorrido, até o veredito final. As abordagens, todavia, mal alimentam o necessário debate sobre o racismo e o papel de uma indústria poderosa como a do futebol no combate a ele. Sem medo de errar, podemos dizer que, nesse, como em outros casos, a mídia esportiva é um agente do subdesenvolvimento brasileiro.


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terça-feira, 26 de julho de 2022

O caso de Klara Castanho e a quebra do código de ética do jornalista

 Por Lais Abreu 


A última semana de junho de 2022 foi marcada pela carta aberta da atriz global Klara Castanho. Em suas redes sociais, a jovem conta que foi vítima de um estupro tempos atrás, engravidou e entregou legalmente o bebê para a adoção. Entretanto, a história não veio a público por vontade da atriz – que, dentro da lei, optou por manter o sigilo –, mas, sim. porque se sentiu obrigada a se posicionar diante de uma série de notícias divulgadas por alguns jornalistas. O caso levanta uma série de questionamentos sobre a ética jornalística no Brasil contemporâneo.  

 

Adelmo Genro Filho conceitua o jornalismo como uma ação cultural criada pelo capitalismo e que possibilita apropriação do conhecimento da realidade a partir da singularidade dos fatos. Atualmente, as redes sociais confundem os temas de interesse público com aquilo que é curiosidade pública, o que faz com que alguns jornalistas tenham como medida a necessidade da audiência, que não deveria ser o fator mais importante. A gravidez de Klara foi tornada pública pela primeira vez em 24 de maio, pelo jornalista Matheus Baldi, mas,  a pedido da jovem, a notícia foi apagada. No entanto, poucos dias depois, Antônia Fontenelle, em uma live, revelou mais detalhes do caso sem citar nomes e no sábado, 25 de junho, o jornalista Léo Dias fez a publicação completa da matéria. 

 

Em sua carta aberta a atriz expõe: “Mas apenas o fato de eles saberem mostra que os profissionais que deveriam ter me protegido em um momento de extrema dor vulnerabilidade, que têm a obrigação legal de respeitar o sigilo da entrega, não foram éticos, nem tiveram respeito por mim e nem pela criança. Bom, agora, a notícia se tornou pública, e com ela vieram mil informações erradas e ilações mentirosas e cruéis”. 

 

Nessa perspectiva, fica o questionamento: até quando jornalistas vão agir fora do código de ética a troco de likes e visualizações e sem punição? O artigo 7º do código diz claramente que o jornalista não pode “expor pessoas ameaçadas, exploradas ou sob risco de vida, sendo vedada a sua identificação, mesmo que parcial, pela voz, traços físicos, indicação de locais de trabalho ou residência, ou quaisquer outros sinais”.  

 

A Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) emitiu uma nota oficial sobre o caso e se mostrou indignada com o vazamento de informações, no entanto ainda é necessário mais. A necessidade por um Conselho Federal de Jornalistas (CFJ) é cada vez maior, sendo uma forma de garantir uma profissão mais digna, de qualidade, pautada em princípios e com ética diante da sociedade. A história do CFJ é triste, uma luta de anos que vem sendo silenciada pela vontade dos “grandes donos da mídia brasileira” – como o próprio Grupo Globo, e que em casos como esses são os primeiros a se acharem em um tribunal para condenar os colegas de profissão. No domingo, 26 de junho, o programa Fantástico da emissora exibiu uma reportagem completa sobre a história da atriz e denunciou os jornalistas envolvidos no caso. Mas ainda assim não é suficiente.  

 

Os pedidos de desculpas de Léo Dias e do Jornal Metrópoles vieram, mas, apesar de necessários, são tardios. O que fica são consequências enormes: para as mulheres, para os jornalistas e para a democracia.  


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Pirâmide, pirâmides e a falta que faz o jornalismo

 Por Gilson Raslan Filho

O jornalismo produzido em Divinópolis não apenas está atrasado em relação a técnicas; como vem sendo feito, é um agente que mina a democracia




Uma das técnicas do jornalismo mais difundidas é aquela que, entre os profissionais da área, é conhecida como pirâmide invertida. Trata-se de uma estratégia de codificação profissional surgida no início do século 20, com a emergência do chamado “jornalismo industrial”, que se propunha a ser um parâmetro técnico de prescrição para os jornalistas e o fazer jornalístico. 

Pela técnica, os procedimentos para enquadramento dos acontecimentos se davam do mais importante ao menos importante: acima, no chamado lead, o primeiro parágrafo deveria responder aos famosos “5Q”: quem, o que, quando, onde, por que. Abaixo do lead, chamado de sublead, há a codificação, como desdobramento, do “Q” mais importante e assim sucessivamente nos parágrafos seguintes, sempre deixando os detalhes do acontecimento, considerados desimportantes, para o fim do texto.



O procedimento tinha múltiplas funções alegadas, que podem ser resumidas em duas: garantir objetividade e imparcialidade ao texto noticioso, em um momento histórico que a indústria da notícia separava a opinião do relato dos fatos; e na esteira dessa função, a de garantir agilidade para a leitura, pois, alegava-se, o leitor poderia ter acesso às informações mais importantes logo no início do texto.

Trata-se, como se vê, de técnicas que visavam a ampliar a capacidade de comunicação – e de consumidores. Elas deram tão certo que o texto jornalístico se tornou gênero e algumas de suas técnicas são ensinadas em escolas de educação básica, de modo que há um conhecimento geral sobre a gramática da codificação jornalística. 

Obviamente, estudantes de jornalismo iniciantes também chegam ao ensino superior com esses rudimentos técnicos da profissão. Na universidade, os futuros profissionais aprendem a problematizar essas técnicas e, inclusive, a superá-las. Na verdade, a superação das técnicas do lead e da pirâmide invertida é uma exigência profissional, uma vez que, especialmente em razão de novas formas de consumo – e de produção – surgidas com as tecnologias digitais, novos caminhos foram apontados.

As “novas” tecnologias, que permitem a utilização de múltiplas linguagens (texto, imagens, áudio, vídeos) em uma mesma cobertura de um mesmo acontecimento, exigiram formulações de novas técnicas. Algumas teorias já começam a aparecer, dando conta da formalização dessas técnicas, que passaram a ser ensinadas nos cursos superiores de Jornalismo. 

É o caso, para ficamos em um exemplo apenas, da proposta de “pirâmide deitada”, feita pelo professor português João Canavilhas. Pela proposta, em vez da pirâmide invertida, que codifica o acontecimento do mais ao menos importante, a pirâmide deitada é uma espécie de cobertura contínua dos acontecimentos. Isto é: em um primeiro momento, no calor do acontecimento, o jornalista publica o lead, e apenas ele, com as informações mais “quentes”. Com a possibilidade de qualificar a informação, novos links, com múltiplas linguagens, são acrescentados, de modo que, ao final, haverá uma gama bastante complexa de informações, capaz de fornecer ao consumidor um amplo espectro e de ajudá-lo a formar uma opinião sobre os acontecimentos do cotidiano. A promessa então é que o jornalismo profissional se distinga da torrente de informações circulantes, muitas delas falsas, e dessa forma seja um instrumento no exercício da cidadania e da democracia.

O problema é que, se olhamos para a produção jornalística de portais de notícias – e mesmo de telejornais – regionais de Divinópolis, parece que os profissionais ou ficam no primeiro instante da cobertura, publicando apenas o lead; ou, o que tem sido o mais comum, se limitam à codificação generalizada que aprenderam no ensino básico.

É incompreensível, por exemplo, que equipes de telejornais locais gastem tempo, energia e talento para realizar uma cobertura gravada em formato de stand up, quando o jornalista parece entrar ao vivo, no calor do acontecimento, para fornecer informações rápidas, até que consiga compreender e narrar o que aconteceu, em um trabalho de reportagem posterior. E os telejornais locais têm sido publicados inteiramente com stand up e quadros de entretenimento.

Há muitos aspectos a serem abordados nessa prática jornalística e em como é autodestrutivo, e tentaremos fazer em outras análises. Por ora, fiquemos no seguinte: o jornalismo é imprescindível para a democracia, não resta dúvida. Mas o que o jornalismo regional está produzindo não apenas deixa de explorar técnicas e potenciais que as tecnologias digitais oferecem e assim se confunde com a informação produzida por jornalistas não profissionais – os usuários comuns, que publicam em suas redes sociais. O que o jornalismo regional tem feito é ajudar a minar a democracia, em vez de construí-la.


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A manipulação de resultados no mundo do futebol

 O lado oculto da realidade esportiva

Por Ígor Borges

O mundo do futebol enfrenta inúmeros desafios fora das quatro linhas, sejam eles erros de arbitragem, polêmicas com jogadores ou, até mesmo, impactos ocasionados pela má gerência da política futebolista. Com isso, os torcedores têm vivido momentos de apreensão quanto ao que ocorre com seus times do coração. E pior: muitas vezes, são calados ou ignorados diante de tais situações.

No empate por 1 a 1 entre Ituano e Cruzeiro, no dia 5 de junho, o futebol apresentado ficou em segundo plano nas pautas esportivas. Ainda no primeiro tempo da partida, houve uma polêmica envolvendo a cabine do VAR (árbitro de vídeo). A equipe de arbitragem da cabine confirmou um impedimento, que não ocorreu, realizando isso de forma rápida, o que foge do habitual cenário do futebol brasileiro. Ainda foram traçadas linhas de impedimento, que foram descritas por “forjadas” e “ridículas”, e que dão a entender sobre a manipulação do lance.

No entanto, o que pouco se fala é do possível envolvimento da polêmica com as casas de apostas esportivas. Nesse mercado, são feitas apostas que podem envolver o resultado, gols marcados na partida e até mesmo número de escanteios e cartões. 

A máfia das apostas

No mundo das apostas esportivas, as casas pagam os apostadores a partir da determinação de um favorito, que geralmente é uma equipe que vive melhor fase e possui mais chances de vencer.  Ou seja, o time favorito gera menor valor de “odd”, e o resultado positivo para o time mais fraco aumenta o valor da aposta. Muitos empresários e pessoas envolvidas com esse tipo de mercado realizam pagamentos tanto para times quanto para jogadores e árbitros. Com isso, os resultados são manipulados para favorecimento desses apostadores. Especula-se algum envolvimento destes na partida da equipe mineira, o que causa o estranhamento, pois esses casos geralmente ocorrem em times de menor expressão. 

Após a polêmica, a equipe de arbitragem da cabine foi afastada por tempo indeterminado, já a de campo foi escalada em novas partidas – da série A, inclusive. 

A falta de abordagem

As mídias, por sua vez, abordaram a polêmica apenas de maneira habitual, citando o erro e debatendo as questões arbitrais. As mesas de debate manifestaram a indignação do torcedor. E as páginas esportivas acompanharam as decisões da CBF quanto aos envolvidos no caso. 

No entanto, falta uma abordagem sobre o que seria, talvez, a maior polêmica no caso. E que, com certeza, afeta diretamente as diretrizes esportivas e, até mesmo, éticas do jornalismo. Deve-se, portanto, apresentar mais fatores quanto ao ocorrido, sem ignorar nenhuma possibilidade. Isso torna-se ainda mais necessário, uma vez que o ocorrido com uma grande equipe, como o Cruzeiro, pode evidenciar toda essa criminalidade e ser o fator notícia propulsor para o esclarecimento e extinção dos casos de manipulação de partidas de futebol. 


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terça-feira, 19 de julho de 2022

Jornalismo, Política e o desaparecimento de Bruno e Dom Phillips

 Por Lais Abreu 


No dia 5 de junho de 2022, o Brasil foi surpreendido com a notícia do desaparecimento do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Araújo Pereira. Ambos faziam uma expedição na região do Vale do Javari, no estado do Amazonas, e desapareceram no trajeto entre a comunidade São Rafael e a cidade de Atalaia do Norte (AM). No dia 3 de junho, os dois haviam se deslocado para visitar a equipe de Vigilância Indígena que se encontrava próxima ao Lago do Jaburu, local onde o jornalista fez algumas entrevistas. No domingo (5), eles saíram rumo à cidade de Atalaia do Norte, onde deveriam ter chegado por volta das 9h e não chegaram. Por volta das 14h do mesmo dia, indígenas saíram em buscas dos dois, mas não obtiveram sucesso.  

A mídia brasileira abordou o assunto apenas na segunda-feira, após a mídia internacional e usuários das redes sociais começarem a se comover. Dias seguidos de notícias sobre as buscas se sucederam; no entanto, apesar de tantas informações, os brasileiros seguiram sem resposta: onde estava Bruno e Dom Phillips? 

A omissão do poder público com o caso demonstra a forma que os telejornais em horário nobre retrataram o assunto. De um lado temos a Rede Globo, por meio do Jornal Nacional e matérias diárias, acompanhando as buscas, fazendo a checagem do assunto, criando reportagens, explicando cada detalhe, caminho percorrido, depoimentos dos familiares, motivos e causas dos desaparecidos, cobrando por uma resposta e transmitindo o descaso do presidente ao ser questionado sobre o fato. E de outro lado temos o jornal da emissora Record, que brevemente falou sobre o desaparecimento e cobertura, sem muito se envolver com os desdobramentos do caso. 

Depois de quase dez dias de cobrança, o acontecimento caminhou para um trágico desfecho. Somente na quarta-feira (15) os suspeitos confessaram o crime. O que é possível observar com a comparação entre as reportagens é uma mídia sem voz, ocultando a notícia e os fatos diante de uma opinião política que a empresa Record transmite. Sendo assim, o telespectador se torna vulnerável perante uma emissora que, em vez de manter a ética no jornalismo, prefere manter a opinião política e transmitir apenas o básico sobre temas que envolvem o atual presidente do país. 

 Dessa forma, constata-se que tanto a Rede Globo quanto a Record terão seus telespectadores fiéis como consequência da opinião política que transmitem. Para os jornalistas que buscam mais profissionalismo, o que deve ser feito é se isentar da opinião e focar em relatar, com precisão, os fatos, com a complexidade que o acontecimento merece.


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A história do Luva de Pedreiro

 A liminar que agravou ainda mais o caso do influenciador de futebol

Por Ígor Borges


Um dos assuntos mais recorrentes das duas últimas semanas foi o caso de Iran Santana Alves, o influencer esportivo conhecido como “Luva de Pedreiro”. O jovem, de 20 anos, teve diversas desavenças contratuais com Alan Jesus, seu ex-empresário. Pelo que se especula, o “Luva” teria sido vítima de golpe por parte do empresário e teve milhões de reais “tomados” de forma abusiva.

O tema foi tratado no último domingo por dois programas jornalísticos de grande porte: o Fantástico, da rede Globo, e o Domingo Espetacular, da rede Record. Previamente, tais reportagens teriam informações exclusivas e impactantes como carro chefe. Entretanto, devido a uma liminar concedida a Alan Jesus, as matérias tiveram esses trechos, que abordam a polêmica e possíveis ameaças relatadas, cortados. Restou às emissoras falar da vida de Iran, com sua história, detalhes pessoais e de seu novo projeto com o atual empresário, o ex-jogador de futsal Falcão.

O Fantástico

A rede Globo, após saber da liminar, antes da transmissão da matéria, enfatizou que é contra qualquer discurso de ódio e que ameaças são inaceitáveis. Além disso, a emissora destacou a função do jornalismo, de “apurar - com isenção - todos os lados da notícia e produzir conhecimento sobre os fatos”, e do direito de acesso às informações, “é direito da sociedade ter acesso a todos os acontecimentos relevantes”. Alegando que vai recorrer da decisão de corte da matéria, a emissora entende que a liminar oprime a liberdade de expressão da imprensa.

Ao efetuar tais publicações e posicionamentos, a emissora demonstrou profissionalismo e cunho firme quanto à sua opinião. E, de certa forma, mobilizou ainda mais a população para o entendimento da matéria em questão, “O caso do Luva de Pedreiro”. 

O Domingo Espetacular 

A rede Record foi mais suave perante a situação, comentou sobre a liminar, mas não citou o nome do empresário. Entretanto, a emissora não deixou de entonar a situação triste e complicada que o influenciador está passando. 

O que se nota, portanto, é um cuidado maior com as palavras durante a exibição da matéria, o que, de certa forma, pode ser entendido como forma de precaução por parte da emissora.

A condução do caso

Ambas as redes de televisão trataram do assunto com toda a seriedade e cautela exigidos em matérias desse nível de repercussão. Mas uma delas transmitiu um sentimentalismo necessário nesse tipo de situação, uma cobrança quanto à liminar, que impediu a divulgação de novas vertentes para o caso. É fato que esse posicionamento pode ser considerado arriscado, levando em consideração as possíveis dores de cabeça futuras, mas cabe à mídia fazê-lo, com consciência, independente do que pode ou não ser dito a ela. 


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Divinópolis: A fome em pauta

Em um cenário de aumento da fome - com a alta no preço dos alimentos e dos combustíveis -, é louvável a iniciativa do Portal MPA de colocar em pauta, em Divinópolis, esse assunto.

Por Ana Laura Corrêa




Por meio do que aparenta ser uma série especial de reportagens, intitulada “Em busca da dignidade”, o veículo traz a situação de divinopolitanos que não têm o que comer.


A título de comparação, quando buscamos pela palavra “fome” em outros três portais de notícia da cidade - Gerais, Agora e G37 -, não há qualquer resultado pelo menos neste ano, período em que a crise alimentar no país tem se agravado.


Parece que o problema não existe por aqui. Mas existe, como mostram as reportagens do MPA ou o espantoso (e que parece crescer cada dia mais) número de pedintes nos semáforos da cidade.


Falar de fome

                                                       

É preciso, sim, que se fale da fome. No entanto, só isso não basta. É preciso, também, saber como falar da fome.


Quem aponta isso é o doutor em linguística João Bosco Bezerra Bonfim, que estudou os discursos sobre a fome. Segundo ele, “aqueles que realmente buscam fazer esta discussão para superar a fome devem ter em mente uma perspectiva crítica. Em outras palavras, devem buscar abordagens que permitam ver de que “fome” é essa que estão falando. Do contrário, poderão colaborar para perpetuar esse estado de coisas”.


Assim, o autor aponta sete elementos para verificar se há uma perspectiva crítica na abordagem da fome no discurso - seja ele jornalístico, político ou mesmo as conversas do dia a dia.


  1. Causas:

É preciso explicitar as causas da fome. Isso porque, muitas vezes, no Brasil, a fome é tida como um fenômeno “dado”, natural, e não como decorrente da falta de dinheiro para comprar alimento - que está incluída em um contexto mais amplo ligado à enorme desigualdade social, a qual às vezes torna-se ainda mais escancarada, como agora.


  1. Responsabilidade:

Quem pode solucionar o problema da fome? É preciso dar nome aos bois. Segundo Bezerra Bonfim, “se o discurso deixa de mencionar os responsáveis (de fato ou de direito) pela existência da fome, de certo modo contribui para a generalização da responsabilidade (o que é de responsabilidade de todos não é de responsabilidade de ninguém; e aquilo que não tem responsáveis diretos não permite que se dirijam a alguém reivindicações... e assim por diante)”. Acrescentamos que, ao jornalismo, além de citá-los, cabe questioná-los, solicitar posicionamentos. Afinal, o que é feito? E por que não tem sido suficiente? O que se pretende fazer?

  1. Quantificação e localização

É preciso dizer onde e quantas são as pessoas passando fome, para que não haja generalização ou exagero. Este, nos números, atrapalha: “Pois, se o problema é tão grave, ninguém poderá resolvê-lo”, afirma Bonfim. A generalização, por sua vez,  “é algo que contribui para mitificar e não para acabar com a fome”. E há dados disponíveis sobre a fome no país que podem ser incluídos nas matérias.


  1. Resolução do problema

Bonfim diz: “O que é mais certo é que não haverá superação da fome sem a construção da autonomia das pessoas e famílias que passam pela situação de fome. Então, se a notícia, filme, programa prevê apenas ações emergenciais, distribuição de alimentos, algo não vai bem. Não que não se possa ou não se deva fazê-lo. Se há fome, deve haver uma ação assistencial. Mas, se não são incorporadas, desde o início, ações que levem as pessoas e famílias a saírem da situação de miséria e se tornarem autônomas para gerarem a própria renda, esse discurso tem um sério problema. Ele colabora para a perpetuação da situação de fome. Então, ações, programas em torno desse tema devem, necessariamente, incorporar a conquista de autonomia por parte dos famintos”.


  1. Verbos

  É preciso prestar atenção aos verbos para não se deixar enganar. Eles falam de “erradicar” a fome, como se fosse algo bem simples? Tratam de “reduzir”? Em que medida isso ocorreria? “Estuda-se” soluções? Quanto tempo levará? E enquanto isso?


Louvável, com ressalvas


Tendo por base esses parâmetros, vemos que a reportagem “Em busca da dignidade: a fome que atinge famílias de Divinópolis” não traz informações sobre as causas ou responsabilidade. Em relação à quantificação, a matéria apresenta o dado do número de pessoas cadastradas no Cadúnico na cidade, o que já permite ter um panorama da situação. Os verbos do texto são muito voltados à descrição (no presente) da fome no país e na cidade, e  da situação da família apresentada na matéria, não há, assim, o debate de perspectivas (futuro) ou das causas (passado). Por fim, a solução se dá por meio da disponibilização do telefone de contato da personagem da matéria para doações, o que não resolve, efetivamente, o problema da fome. A Prefeitura, por exemplo, não tem fala no texto sobre as ações desenvolvidas no combate ao problema.


É preciso falar da fome, mas de uma perspectiva crítica. Que ela continue sendo pauta na cidade, enquanto, infelizmente, existir.


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NOVO VELHO JORNALISMO

 O jornalismo praticado pelo canal de TV fechada Jovem Pan News cheira a mofo, mas tudo indica que ele veio para ficar


Por Gilson Raslan Filho



                                      
No surpreendente livro Guerra pela eternidade: O retorno do Tradicionalismo e a ascensão da direita populista (Editora Unicamp, 2021), o etnomusicista estadunidense Benjamin Teitelbaum fornece pistas importantes para se entender o contexto da guerra política e ideológica que vivemos hoje em dia. O livro nos ajuda a compreender inclusive o jornalismo da TV Jovem Pan News, que é o mote para este texto, mas não apenas ele. Antes, porém, de adentrarmos esse novo velho jornalismo, falemos um pouco da obra, sem entrar, todavia, em detalhes.

Como dito, Teitelbaum é um etnomusicista. De origem judia, o professor e pesquisador, há anos, roda o mundo em busca de expressões musicais, muitas delas extintas, de povos antigos, originários e tradicionais. Em suas investigações, se deparou com o fenômeno do renascimento do movimento tradicionalista, com muita força e alcance global. Trata-se de um movimento político, estético e ético que entende estar o mundo em decadência moral em razão da perda de valores – quase sempre identificados como “cristãos”. Para restituir ao mundo o que entende ser sua idade de ouro, o tradicionalismo defende que há povos melhores e piores e que estes devem se submeter àqueles; que mulheres devem cumprir um papel social submisso em relação aos homens; que a homossexualidade é uma excrescência, um desvio da natureza e deve ser curada. Em poucas palavras: para salvar o mundo de sua decadência moral, causada pela confusão geral de raças, povos, gêneros, é necessário conduzi-lo a uma velha ordem social, que se viu na Idade Média europeia.

Apesar de espantosos, os movimentos tradicionalistas existem há muito tempo, em múltiplas instituições, mas sempre tiveram um alcance muito limitado. O que Teitelbaum traz de surpreendente é o fato de ter havido nos últimos anos uma espécie de instrumentalização dos movimentos tradicionalistas, utilizados com táticas de ataque contra “o sistema” muito bem definidas e com alcance global. O autor identifica – e seu livro disseca justamente seus movimentos – três grandes figuras por trás das táticas: o estadunidense Steve Bannon, o russo Aleksandr Dugin e o brasileiro, falecido neste ano Olavo de Carvalho, respectivamente considerados gurus de Donald Trump, Vladimir Putin e Jair Bolsonaro.

Para não nos estendermos – a leitura, bastante palatável, é altamente recomendada -, fixemo-nos em uma tática: o ataque ao “sistema” quase sempre é traduzido como uma luta da liberdade contra o comunismo. Sim, porque “comunismo” é o nome dado às conquistas de negros, comunidade LGBTQI+, povos marginalizados, mulheres, que teriam tornado o mundo caótico. E tal ataque se dá, entre outros mecanismos, pelo uso muito competente – e pouco ético – das redes sociais, com ampla divulgação de fake news e desinformação de toda natureza. O argumento, no caso específico do jornalismo, é que a imprensa “do sistema” é meramente uma versão “comunista”, que deve ser combatida de qualquer forma, para que seja fragilizada. O resultado da tática é o surgimento, com ações orquestradas, de milhares de blogs, microblogs e influenciadores de redes sociais responsáveis por uma dupla tarefa nessa guerra: ser uma voz dissonante das vozes “comunistas” e arregimentar, geralmente com mirabolantes teorias conspiratórias, uma legião de seguidores, muitos deles com um sincero mal-estar em relação a um mundo tomado por grandes corporações e capitalistas, considerados, estes, os financiadores do “comunismo” global.

Uma das principais caraterísticas desse jornalismo de trincheira é seu desprezo pela verdade factual e sua sustentação em uma bem amarrada argumentação silogística, em que termos estranhos entre si ou alheios à verdade são reivindicados com a única finalidade de validar a tese proposta. Isto é, o que se faz é opinião: não há nada de reportagem, apuração, checagem – nada! 

Pois é justamente isso o que faz o jornalismo da TV Jovem Pan News: são horas a fio de divulgação de pesquisas jamais comprovadas, realizadas por entidades fantasmagóricas e “debatidas” por “debatedores” que estão no mesmo espectro ideológico e que repisam o que foi exposto, garantindo, pela repetição, a validação da tese que desejam que seja aceita.

A bem da justiça histórica, é preciso dizer que o jornalismo de opinião não é novo: ele foi amplamente utilizado pela burguesia revolucionária no século 18 europeu para amadurecer suas ideias de poder, de Estado e de sociedade, ideias que foram vitoriosas nas revoluções e ainda hoje dão a face para o mundo. É plausível, portanto, dizer que é um formato de jornalismo de embate ideológico. Igualmente, é plausível pensar que influenciadores ou a TV Jovem Pan News são apenas manifestações desse fenômeno de que o jornalismo de trincheira é apenas um sintoma – ou arma.



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domingo, 29 de agosto de 2021

A quem interessa a expropriação das subjetividades?


Uma análise de algumas das recentes ações referentes à Política de Saúde Mental brasileira:  loucura novamente como mercadoria; um retrocesso intencional? 

Por Camila Machado

“Se tratando de política pública, não é admissível que ganhem os mercadores da loucura e os mercadores dos templos, que vão auferir lucros na indústria farmacêutica, na indústria da segregação e na indústria dos costumes”

- Lasswel (1936)


A Política de Saúde Mental brasileira vinha gradativamente mudando o cuidado em saúde mental ao investir mais em uma rede de dispositivos capazes de substituir os manicômios. Historicamente o modelo manicomial, como vimos em nosso segundo texto (https://www.observatoriopluris.com.br/2021/08/psiquiatria-brasileira-lutas-reformas-e.html), era centrado no hospício e produzia a institucionalização dos portadores de sofrimento psíquico e a exclusão social. Franco Basaglia, protagonista da reforma psiquiátrica italiana e grande influência para transformações em saúde mental no Brasil (link), dizia que “o hospício expropria as subjetividades”. Os sujeitos, ao serem excluídos socialmente, não têm oportunidade mais de estabelecer trocas afetivas, vivenciais, e zera a contratualidade social.  O retorno aos manicômios traria graves consequências à cidadania, mas isso não impediu que medidas contraditórias a tudo isso fossem tomadas, ameaçando as conquistas da reforma psiquiátrica no país. 

A nota técnica Nº 11/2019 divulgada pelo Ministério da Saúde, em fevereiro de 2019, sobre as mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas, é uma das ações mais problemáticas desta área e que sinaliza um grande retrocesso para as políticas de saúde mental brasileiras, 

A nota traz a possibilidade de ambulatórios de psiquiatria e hospícios tratarem pacientes com sofrimento psíquico, mas também dependentes químicos. Além de apresentar o uso da eletroconvulsoterapia (ECT) como oferta de “melhor aparato terapêutico como tratamento efetivo”, sugerindo a ampliação desse recurso no Sistema Único de Saúde – SUS. Ainda que o texto diga que a eletroconvulsoterapia terá “indicações para um número limitado de usuários, em circunstâncias específicas”, a forma como está proposto, mostra uma priorização a este recurso em detrimento de tantos outros dispositivos terapêuticos de excelência. Além disso, voltar a utilizar internações de longa permanência serão agravos à saúde pública, que pode nos levar novamente a tendência da institucionalização, a perda dos vínculos sociais e a violação dos direitos humanos – como os que marcam as nossas experiências internacional e nacional.

Para piorar a situação a nota apresentada fere também o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ao possibilitar a internação de criança e adolescentes junto com adultos, a partir de um laudo médico que o permita. Ao retirar as crianças e adolescentes do meio familiar e ambiente sócio comunitário, priva-os de sua liberdade e de seus direitos (Lei nº 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente).

A Nota Técnica ameaça o financiamento de toda rede de cuidados já existente no Brasil ao redirecionar os investimentos em ambulatórios especializados e em comunidades terapêuticas para a compra e uso do ECT. Ao utilizar os já insuficientes recursos existentes nos dispositivos como o ETC, a rede atual sofrerá um desinvestimento. A lógica denunciada (no início da luta antimanicomial) da indústria da loucura parece estar tomando força novamente, e agora com apoio do Ministério da Saúde. Haverá lucro com o ECT (equipamento e uso), medicamentos, leitos psiquiátricos no setor privado e o mais grave, o hospital psiquiátrico será incluído na rede. E assim como na Industria da Loucura da década de 90, novamente segmentos que voltarão a lucrar com o sofrimento psíquico. Mas, claro que os verdadeiros interesses econômicos e políticos estão omissos em tal documento. A rede substitutiva aos manicômios, que vinha sendo construída no Brasil, está sob ameaça por meio da nota técnica.

 Além disso, no ano passado, houve a suspensão de centenas de contratos de Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e serviços de residência terapêutica. Enquanto muitos outros foram transformados em “abrigos”, passando a servir meramente para moradia, sem foco na hospitalização. 

No dia 07 de dezembro de 2020, o Jornal Folha de S. Paulo publicou dados obtidos pelo Grupo Técnico do Ministério da Saúde, destacando pontos (des)estruturantes da Política Nacional de Saúde Mental (PNSM). Entre elas, a revogação de mecanismos de fiscalização de hospitais psiquiátricos e extinção das equipes que apoiam a transferência das pessoas que hoje residem nesses lugares. Além da extinção de equipamentos de assistência social, do atendimento psiquiátrico nos CAPS, dos serviços de atendimento à saúde da população em situação de rua, e do controle sobre as internações involuntárias de pessoas com dependência química que, atualmente, demanda comunicação ao Ministério Público. Temos também a revogação do Fórum Nacional sobre Saúde Mental de Crianças e Adolescentes e das diretrizes sobre saúde mental indígena, a transferência da responsabilidade da política sobre drogas para o Ministério da Cidadania e a criação de serviços específicos para pessoas com diagnóstico de dependência química e outros transtornos psiquiátricos.

Estas propostas trazem a diminuição do acesso a tratamentos baseados em evidências científicas, e valores éticos e humanitários, para um país com mais de 200 milhões de habitantes e que em 2017 (período pré-pandemia por Coronavírus) contava com 5,8% de pessoas com depressão e 9,3% com ansiedade, de acordo com dados da Organização Pan-americana de Saúde (OPAS). 

 Com as mudanças grupos que defendem a segregação das pessoas com transtornos mentais e que preferem a responsabilização individual dos doentes e não a análise pela ótica social, ganham financiamento e protagonismo político. E temos a volta dos “indesejáveis” aos cárceres, poupando as pessoas “normais” da convivência e do comportamento instável dos doentes mentais.

Estas são ações representam um grande retrocesso e retoma os grandes investimentos em manicômios, comunidades terapêuticas e no modelo ambulatorial como um todo – que é medicalizante, individualizante e parte da ideia de que a doença é do indivíduo, e com uma consulta (que é basicamente prescrição de medicamentos) tudo se resolverá.  É estranho como todo esse retrocesso parece atender muito bem aos interesses dos empresários dos hospitais psiquiátricos e da indústria farmacêutica.


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