quarta-feira, 14 de julho de 2021

Jornalismo e jornalistas “isentões”, desçam do muro!

Por Ana Laura Corrêa


Nos últimos tempos, a internet tem cobrado o posicionamento político de artistas ‒ os casos que ganharam mais destaque recentemente foram de Juliana Paes, Ivete Sangalo e Claudia Leitte, criticadas pelo comportamento “isentão” diante de uma política por uma maioria considerada um verdadeiro genocídio (comprovada a ação da imunização de rebanho e do “morra quem deve morrer”, não será possível negar, nem para o mais apegado negacionista, a política de genocídio) que Jair Bolsonaro adota contra a população brasileira.


Nesse cenário, o jornalismo parece passar despercebido ‒ não tem a mesma cobrança de posicionamento que os artistas têm. Por que não? Porque a falsa ideia de que é possível fazer um jornalismo isento, imparcial e objetivo tornou-se praticamente um consenso. Esse mito se perpetua em slogans de veículos e até mesmo nas faculdades de jornalismo e entre profissionais que já atuam na área.


Ingenuidade

No fim do mês de junho, na mesa de abertura de um congresso promovido pelo curso de comunicação de uma universidade federal em Minas Gerais, as jornalistas participantes, de uma emissora de TV afiliada da Globo, foram questionadas sobre como se dá o posicionamento político do jornalismo. Responderam:


"Profissionalmente o jornalista não tem partido político, não tem time de futebol. O nosso posicionamento acaba sendo em uma apuração bem feita [...] Não é um posicionamento de declarar voto, isso eu faço dentro da minha casa, com a minha família";


"O posicionamento político do jornalismo tem a ver com ouvir os dois lados e o próprio telespectador, o ouvinte ou o leitor vai ter as próprias conclusões. Eu não preciso ser tendenciosa ao falar sobre algo. Eu apenas mostro pra ele os dois lados da moeda e ele escolhe com base no caráter, na moral o que ele acha que é correto ou não".


Não tem como não ser tendencioso


Em toda a sua rotina produtiva, o jornalista faz escolhas: decide por uma pauta em detrimento de outra ‒ o que já é uma tomada de posição ‒, ao escrever uma matéria, seleciona palavras ‒ e novamente se posiciona, pois cada palavra é, por si só, tendenciosa. Vejam, por exemplo, a diferença em chamar as mortes por covid de “fatalidades” ou de “genocídio”, ou quando o assassinato de uma mulher é classificado como “crime passional” ou “feminicídio” ‒ são exemplos extremos, mas cada mínima escolha do jornalista já representa um posicionamento político. 


Por uma “nova” visão do jornalismo


O jornalista Adelmo Genro Filho produziu, em 1987, uma teoria do jornalismo na qual desmonta as concepções pretensamente “objetivas” e “imparciais” da atividade. Embora já tenha sido produzida há alguns anos, a abordagem permanece muitas vezes deixada de lado pelos jornalistas. Nesses tempos em que é urgente um posicionamento do jornalismo e dos jornalistas, a teoria precisa ser retomada.


No texto, o autor traz que “não há um fato e várias opiniões e julgamentos, mas, sim, um mesmo fenômeno (manifestação indeterminada quanto ao seu significado) e uma pluralidade de fatos, conforme a opinião e o julgamento”. Assim, é preciso ressaltar que mesmo a percepção dos fenômenos pelos jornalistas não é e não pode ser, de forma alguma, neutra, uma vez que é sempre mediada por uma visão de mundo, por mais que ela não seja óbvia ao próprio jornalista .


Adelmo Genro Filho ainda aponta que essa suposta objetividade é uma regra “que os jornalistas devem seguir sem saber o motivo, tornando-se presa fácil da ideologia burguesa e da fragmentação que a proporciona. A realidade [por meio da aplicação da pirâmide invertida] transforma-se num agregado de fenômenos destituídos de nexos históricos e dialéticos”.


Assim, o autor propõe em sua teoria que as notícias não devem se deter somente ao fato, ao lead ‒ caminhando dele para o “menos importante” ‒, mas trazer também o contexto mais amplo da questão, problematizando-a e expondo as contradições do modo de produção capitalista ‒ e fala, então, de uma reinversão da pirâmide invertida, que caminha do lead para uma contextualização, expondo os nexos históricos do fato. 

Eis aí o trabalho do jornalista - e é por ele que a visão de mundo entra em tensão com a realidade e é por esta modificada. Aqui, diz Genro Filho, o que importa é a realidade, não a visão de mundo, ainda que aquela seja enfrentada a partir desta. Ignorar, portanto, a realidade, escamoteando-a em uma pretensa neutralidade apenas faz a visão de mundo se sobrepor à realidade que deveria ser descoberta.


Ter uma posição não é um problema


Os jornais se dizem isentos, imparciais e objetivos a fim de garantir credibilidade. Apoiam-se em uma mentira para garantir audiência, leitores, cliques. Daí, quando fogem a essa falsa neutralidade imposta pela ideologia burguesa e se posicionam contra ela, ainda que de forma bastante tímida, são chamados de “comunistas” ou “esquerdistas”, por exemplo.


É preciso reconhecer que essa falsa ideia de neutralidade realmente já não cola mais. E, como estamos (?) em uma democracia, não é um problema ser “esquerdista”, ter uma posição ‒ desde que ela não seja racista, homofóbica, fascista ou preconceituosa. É preciso, no entanto, deixar claro aos leitores qual posição é essa. Ao mesmo tempo, é necessário que haja um processo de educação para a mídia dos leitores para que possam identificar os diferentes vieses que orientam cada veículo de jornalismo.


Esses posicionamentos, que vão interferir na seleção e na produção das notícias, podem ser encontrados nos “Princípios Editoriais” ou no “Quem Somos”, seções geralmente escondidas nos portais de notícias ‒ quando existem (em poucos casos, infelizmente). O Globo, por exemplo, assume em seus princípios editoriais que é um defensor da livre iniciativa ‒ tendo, portanto, um posicionamento mais à direita no espectro político.


Assim, não se trata simplesmente de ler qualquer notícia em qualquer site e achar que está bem informado, especialmente em um país como o Brasil, no qual os maiores meios de comunicação são propriedades de algumas poucas famílias que apenas usam esses veículos para defender os seus próprios interesses. 


É preciso saber, portanto, qual base ideológica orienta a produção desse material para que se faça uma leitura crítica. Afinal, como disse Paulo Freire, “Não existe imparcialidade. Todos são orientados por uma base ideológica. A questão é: sua base ideológica é inclusiva ou excludente?”.
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terça-feira, 13 de julho de 2021

Manhãs de Setembro: Arte e Representatividade

Por Talita Brandão


Por que devo assistir a nova série brasileira da Amazon Prime, Manhãs de Setembro?


Imagem reprodução Google. Poster Manhãs de Setembro


“Você demorou 30 anos, 2 meses e 19 dias para ter um lugar só seu”

-Vanusa (Elisa Lucinda)


No final de junho o audiovisual brasileiro foi marcado pelo lançamento da série Manhãs de Setembro, estrelada pela cantora e compositora Liniker e dirigida por Dainara Toffoli. A série é de uma sensibilidade artística e humana tocante. Nela conhecemos a jornada de Cassandra (Liniker), uma mulher trans preta em busca de sua independência na cidade de São Paulo. Porém, no mesmo momento que Cassandra consegue certa estabilidade ao alugar uma kitnet para si, ela descobre a existência de um filho de 10 anos.


A trama apresenta um elenco rico, tanto em sua diversidade como em seu talento. Além de Liniker, grandes nomes como Linn da Quebrada, Paulo Miklos e Karine Teles fazem parte da obra. A série retrata a pluralidade da capital de São Paulo, traz referências da cultura musical brasileira indo de Alcione a Pabllo Vittar e ainda é exata em sua linguagem. As próprias gírias usadas pelos personagens já manifestam parte de suas histórias como também são jargões comuns na comunidade LGBTQI+.


“Eu sempre quis ser uma mulher fodona, independente, tipo você, tipo a Roberta, que nem esse povo que a gente vê na TV com esse blablabla todo aí. Mas é que no final das contas a gente nunca teve outra opção que não fosse essa.”

-Cassandra (Liniker)  


Falar de Manhãs de Setembro é falar sobre arte pura sem se perder na romantização. Ainda que a direção da série seja poética, com cada pausa entre as falas demonstrando algo sobre a narrativa, e cada música da trilha sonora sendo colocada no momento certo, os temas tratados na série não são passados de uma maneira idealizada. Seja ao abordar a maternidade ou a desigualdade social no Brasil, a série é certeira na conversa entre ficção e realidade.


Cassandra, a entregadora


Um dos momentos que Manhãs de Setembro prova isso é ao mostrar a rotina de Cassandra como entregadora por aplicativo em sua moto. Ao contrário do discurso de empreendedorismo muitas vezes propagado dentro das dinâmicas dos trabalhos em plataformas como Uber e Ifood. A série faz um papel importante ao retratar de forma sutil como esta lógica de trabalho na Uberização é precária, desregulada e retira os direitos dos trabalhadores.


Em certo momento da trama a moto de Cassandra quebra o que impede que ela trabalhe. Além de precisar de dinheiro para pagar o conserto da moto, Cassandra passa por dificuldades pois o dia em que não trabalha é um dia sem recursos. 


Outra cena que indica a situação de subemprego dentro do serviço em plataformas é com o controle do trabalho de Cassandra através das avaliações no aplicativo. Ao contrário da liberdade proposta na Uberização, na realidade os trabalhadores são monitorados constantemente.


Cassandra, a cantora

Imagem reprodução:Série Amazon Manhãs de Setembro. Cassandra cantando. 


O talento da Liniker e a potência de sua voz é explorado na narrativa da melhor forma através do sonho de Cassandra de ser cantora e sua paixão pelas músicas da Vanusa. Este dom foi somado às habilidades de atuação da Liniker e tornaram a emoção de Cassandra ao cantar um verdadeiro show. São nas cenas onde Cassandra canta que assistimos a personagem em seus momentos mais vulneráveis e também mais fortes.


O uso de Vanusa na trilha sonora foi o casamento perfeito para a série. E a relação entre Roberta (Clodd Dias), dona da boate onde Cassandra canta, e a protagonista são exemplos de parceria, amizade e apoio.




Cassandra, a pai



“Ela é uma mulher”

-Ivaldo (Thomas Aquino)

“Mas é meu pai.”

- Gersinho (Gustavo Coelho)


Um dos pontos altos de Manhãs de Setembro é como as relações pessoais são retratadas. Dainara Toffoli fez um grande trabalho ao deixar os personagens profundos e humanos o suficiente para que ao assistir a série seja possível amar e odiar cada um deles em um mesmo episódio.


Esta humanização é clara na relação de Cassandra com seu filho Gersinho. A construção e evolução da narrativa familiar é emocionante e não negligencia todas as facetas que envolvem as implicações de ter uma criança.


“A gente ainda tá aqui e é isso que importa”

-Pedrita (Linn da Quebrada)



Representatividade e arte se encontram perfeitamente nas Manhãs de Setembro.


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sábado, 3 de julho de 2021

Educação: nunca foi apenas uma crise!

O Pluris continua, nesta semana, a série sobre o desmonte do Estado de Bem-Estar Social e trata de como este tem se manifestado no setor educacional


Por Camila Machado


        “A crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto”, já dizia Darcy Ribeiro. O desmonte do Estado de Bem-estar Social não tem poupado esta área e a cada ano que passa a educação brasileira vem sendo ainda mais sucateada. O desmantelamento da Educação Pública, em todas as suas formas, interessa apenas a uma elite que deseja se perpetuar no poder e a políticos que são eleitos com o dinheiro desses grandes empresários. Só interessa a quem não se compromete com a população e com o desenvolvimento do país, e que assim,  direta ou indiretamente, financia o desmonte de nosso Estado de Bem-Estar Social. 


Em 2019, o governo anunciava o congelamento de R$1,7 bilhões dos gastos com as universidades públicas do país. Segundo o Ministério da Educação (MEC), a medida foi tomada porque a arrecadação de impostos estava menor do que o previsto. O corte foi aplicado sobre gastos não obrigatórios, como água, luz, terceirizados, obras, equipamentos e realização de pesquisas. Despesas obrigatórias, como pagamento de salários e aposentadorias, não foram afetadas, mas ainda assim a Associação dos Reitores das Universidades Federais (Andifes) disse que aquele era o maior contingenciamento de verbas desde 2014.


O orçamento aprovado para todas as 63 universidades federais em 2019 foi de R$49,621 bilhões. Desse total, o pagamento de salários consumiu R$42,3 bilhões, o que representa 85,34%. Já as despesas discricionárias somaram R$6,9 bilhões (13,83%), e outros R$400 milhões (0,83%) provenientes de emendas parlamentares.


Desde que assumiu a presidência, Jair Bolsonaro não poupou esforços para atacar a escola e a universidade pública. Bilhões já foram cortados das verbas das universidades e institutos, e o MEC segue anunciando mais cortes. Bolsonaro já tentou impedir a aprovação do Fundeb Permanente, fundo responsável pelas verbas destinadas à educação básica, o que teria gerado um apagão na educação nacional sem precedentes, pois os recursos teriam se esgotado em 2020.


O desmonte das universidades públicas, em específico, vem se dando desde 2015, quando, ainda na gestão de Dilma Rousseff, tivemos os primeiros congelamentos de bolsas e programas de pesquisa. Muitos outros pedaços se perderam pelo caminho em 2016 e 2017, mas foi em 2018 que se evidenciou que tal desmonte não se tratava de um plano de partidos específicos da direita, mas sim de algo muito maior. Um projeto que visa privatizar, de ponta a ponta, nossa educação pública.  Para tanto seguem, por meio de contingenciamentos e cortes permanentes de verba, sucateando cada vez mais rápido as instituições públicas até que estas não tenham outra alternativa senão fechar as portas. E não é difícil imaginar que para aquelas instituições que conseguirem sobreviver, provavelmente, será imposto um modelo específico de gestão que jogará por terra toda sua autonomia. 


Especialistas há tempos vêm chamando a atenção para como cada vez mais o Ministério da Educação tem sido transformado em um aparelho a serviço da guerra ideológica travada por Bolsonaro. Temos que considerar que o sucateamento do ensino público serve e muito ao projeto privatizante de Paulo Guedes, pois facilita a implementação de uma educação voltada direta, exclusiva e explicitamente aos interesses e necessidades de diferentes setores privados, que já são acionistas de empresas privadas de educação.


Um projeto de desmonte bastante eficaz


Com bem alerta o sociólogo César Callegari, em entrevista à Carta Capital, além da asfixia financeira, existe a ameaça de fechar cursos de Sociologia e Filosofia, o combate do governo ao chamado “marxismo cultural” nas universidades, o projeto Escola Sem Partido.  Todos se lembram de quando o presidente anunciou, em abril de 2019, que o governo iria deixar de investir em faculdades de cursos de humanas como filosofia e sociologia para dar mais dinheiro para cursos como engenharia, veterinária e medicina. Uma demonstração clara do desejo de fazer da cultura, da educação e da ciência, os principais alvos de ataques e de afirmação de uma visão restrita, não-humanista, daqueles que hoje detém o poder. O professor é tido agora como um inimigo e ao patrocinar, por exemplo,  o projeto Escola Sem Partido, que sob esse título enganoso visa censurar e perseguir professores, o governo ataca os educadores.


O projeto de desmonte da educação brasileira mostra-se muito bem estruturado. Não há pontas soltas, nada acontece ao acaso. Quando um ministro anuncia, por exemplo, o corte de verbas para a sustentação das escolas que são mantidas nos assentamentos do MST, ele não apenas priva 200 mil crianças do seu direito à educação, como também busca enfurecer os pais e as mães dessas crianças, os trabalhadores sem-terra, para então atacá-los diretamente. Outro exemplo é quando editoras do Programa Nacional do Livro Didático, que fornecem 160 milhões de exemplares para as escolas públicas brasileiras, são pressionadas pelo MEC a reescrever suas obras didáticas.  Pois assim fazem com que os editores e os próprios autores de tais obras façam uma autocensura e deixem de tratar de questões centrais para a formação dos estudantes do Brasil, como a ditadura ou temas relacionados à educação sexual.


 A educação básica também não está fora da mira deste desmonte. Ao menos R$2,4 bilhões foram bloqueados pelo Ministério da Educação em 2019, recursos que seriam direcionados a programas da Educação Infantil ao Ensino Médio, segundo um levantamento realizado pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições de Ensino Superior (Andifes). O contingenciamento das universidades federais naquele ano estava na casa dos R$2,2 bilhões e o levantamento mostrou que o corte total para a educação já chegava, em maio, a R$7,98 bilhões. 


Houve também bloqueios nos valores previstos para construção ou obras em unidades do ensino básico: o MEC bloqueou R$146 milhões dos R$265 milhões em 2019. E não pense que o ensino técnico e a educação a distância ficaram de fora, porque esta área também segue sendo sucateada. O Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico (Pronatec), também em 2019, teve todo o recurso de R$ 100,45 milhões bloqueado. Também houve contenção em programas importantes de permanência das crianças mais pobres na escola, como merenda (R$150,7 mil) e transporte escolar (R$19,7 milhões).


Manifestações recentes deste desmonte


Desde 2013, o orçamento das universidades vem sendo radicalmente cortado.  Mas, em 2021, vimos o orçamento discricionário aprovado pela Lei Orçamentária para a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) ser reduzido a 38% daquele que era empenhado em 2012. Ao G1, o vice-reitor da instituição, Carlos Frederico Leão Rocha, afirmou que "não dá para manter" o funcionamento com o orçamento destinado e que era provável que ele fosse inviabilizado a partir de julho. 


O orçamento discricionário é a verba reservada para pagamentos com gastos como água, luz, segurança, estrutura física das unidades, além de alimentação e alojamento de alunos. Segundo dados da assessoria de imprensa da UFRJ, esse orçamento da universidade caiu R$ 340 milhões em 10 anos: de R$ 639 milhões em 2011 para R$ 299 milhões em 2021.


Dos R$ 299 milhões reservados para 2021, ainda de acordo com a UFRJ, R$ 152,2 milhões ainda dependem de suplementação no Congresso Nacional. E, desse valor, R$ 41,1 milhões foram bloqueados pelo governo federal. O total de investimentos da universidade para 2021, portanto, seria de R$ 258 milhões, valor equivalente ao orçamento de 2008.


Em agosto de 2020, véspera do Dia dos Estudantes, o governo anunciava uma redução de R$4,2 bilhões no orçamento do Ministério da Educação para o ano de 2021. O Projeto de Lei Orçamentária Anual 2021, elaborado pelo Ministério da Economia, foi encaminhado para o Congresso Nacional com uma redução de 18,2% comparado ao ano de 2020. A previsão é que o impacto nas Institutos e Universidades Federais seja de R$ 1 bilhão.


De acordo com os números da Secretaria do Tesouro Nacional, anualmente o investimento na educação vem sendo reduzido. Em 2016, os gastos primários somaram mais de 103 bilhões em 2016 (valor corrigido pela inflação). Já em 2019, o valor era de cerca de R$92,37 bi.

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Segundo a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições de Ensino Superior (Andifes), as universidades têm perdido anualmente, desde 2019, um acumulado de 25% dos seus orçamentos. As instituições federais já têm enfrentado grande dificuldade para não comprometer o funcionamento das atividades, e o novo corte causará ainda mais prejuízos para a pesquisa, extensão, assistência estudantil e manutenção dos campus. 


Esse provavelmente é o texto com mais números que já escrevi, e nem foi preciso uma pesquisa muito aprofundada para que o desmonte da educação pública brasileira ganhasse forma. E a questão que surge é que não são e nunca foram apenas números. A cada novo corte, nossa educação pública é mais soterrada, asfixiada e condenada ao fim. O Brasil segue indo contra a maré, enquanto todos os países minimamente desenvolvidos (e não só financeiramente) reconhecem a educação como o ponto chave para a construção de uma sociedade promissora, financeira e socialmente. 


O que temos é cortes e mais cortes. E de vez em quando uma dose de ironia que chega a ser cruel:  em maio deste ano, por exemplo, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei (PL) 5.595/2020 reconhecendo a educação como "atividade essencial" para que se retorne às aulas presenciais.  E assim,  de repente, o governo parece se preocupar novamente com a educação, quando na verdade é só mais uma manobra para jogar por terra nossos direitos. Pois, com a ideia de atividade essencial, retira-se, por exemplo, o direito de greve e, ao mesmo tempo, condiciona o retorno imediato, sem vacinação, em um contexto de crise, se solicitado. 


https://www.redebrasilatual.com.br/wp-content/uploads/2020/01/poupar-em-educac%CC%A7a%CC%83o.jpgComentei sobre isso no último texto desta série, mas volto a repetir pois ao que parece: nada acontece ao acaso na política brasileira. Em meio ao entra e sai de governos, o desmonte educacional se infiltra e ganha força. O projeto parece estar saindo melhor que o planejado e só me resta perguntar:  até quando fecharemos os olhos para isso?

 

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quinta-feira, 1 de julho de 2021

Do poliamor à politicalha

A “doutrina do amar” é só mais uma das facetas do jogo de poder divinopolitano.


Por Maria Clara Ribeiro e Talita Brandão




No domingo, 20 de junho, a população de Divinópolis e região acompanhou a viralização de um vídeo. A polêmica foi iniciada após divulgação no perfil do sargento Elton com o título “Atenção pais!” e alarmando sobre o que supostamente estaria sendo ensinado às crianças e adolescentes nas escolas. O ex-vereador faz uso da palavra escárnio para definir a situação –  então, aqui devolvemos este termo para o vídeo.

Com discurso que exalava intolerância a cada som proferido, o padre Chrystian Shankar parte de falácias, como suposto “amor entre gerações”. Comecemos do mais simples, todavia: até este momento,  o pároco não sustentou o que disse em um mínimo indício de dados concretos. Não é a primeira vez que a subcelebridade divinopolitana se envolve em polêmica sobre temas que vamos nos deter aqui como “doutrina do ‘amar’”: uma atitude insensível da igreja que visa se afirmar na politicagem municipal.

Insensível ao passo que deveria vestir a batina da instituição que prega os ensinamentos de Jesus e acolher seu povo; participar da politicagem ao passo que se insere, sem disfarce e sutileza, nas decisões governamentais da região – com destaque a figurões e grupos políticos que, de praxe, se envolveram na trama.  Este texto não visa a generalização, ao contrário: a combate. Por isso, personagens que devem ser nomeados o serão, sem medo. 


Sem papas, sem escrúpulos 

“Vocês sabem que para certos sexólogos não existe pedofilia? Ou não sabia? Há países que querem aprovar uma lei que não existe mais pedofilia, é amor entre gerações, não é crime isso. Se um homem de 40 tem atração por um menino de 10, e o menino consente e os dois dormem juntos, que mal existe? É amor entre gerações! E tem gente que vai debater que isso tá certo. Olha onde chegou a cegueira do ser humano, estragando a obra de Deus que é a família e o casamento. Eles querem estragar só isso: a família e o casamento”. 

Esta fala foi proferida pelo padre no vídeo em questão. Então, temos algumas perguntas ao sacerdote: segundo quais sexólogos? Quais países? Onde surgiu este termo “amor entre gerações”? Quem vai debater que está certo? São estas (supostas) pessoas que estão estragando a família e o casamento - ou são pessoas infelizes que adentram na individualidade dos demais? 

Após pesquisa simples em sites qualificados (Aos Fatos; e-Farsas), constata-se que não há projeto de lei para legalizar a pedofilia, porém circulou conteúdo distorcido sobre a PLS 236/2012, um projeto ainda em tramitação que propõe a diminuição de 14 para 12 anos a idade para que qualquer relação sexual seja considerada estupro. Vale ressaltar que esta imagem circulou com mais força durante as últimas eleições, atribuindo autoria ao ex-candidato à Presidência pelo PT, Fernando Haddad. 

Sim, é uma proposta polêmica e, por isso, seguiu em discussão por mais de cinco anos até ser suspensa em 2017. Apesar de ter sido redigida com aval do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Instituto Plínio Corrêa de Oliveira (IPCO) realizou um abaixo-assinado para que a proposta fosse rejeitada no Senado. Assim, atualmente, a lei vigente no Código Penal Brasileiro define que adolescentes de 14 a 18 anos podem ter relações sexuais quando consentido (217-A). 

Além desta falsa circulação, houve propagação de notícias falsas associando pedófilos à comunidade LGBTQIA+. Este fato ganhou força nos EUA e provocou movimentação nas redes sociais, pois os textos afirmam que os abusadores se autodenominam MAP (Minor-Attracked Person, em tradução: pessoa atraída por menores) para serem aceitos. Entretanto, este termo foi criado por unidades de tratamento estadunidenses para classificar os pacientes de forma mais amena e evitar ataques àqueles pacientes em recuperação. Essa associação é equivocada e preconceituosa, usada sem constrangimentos na campanha eleitoral de 2018. 

Na ausência de respostas, devemos perguntar: Está faltando assunto para as homilias? Faltam palavras para o que realmente envergonha a criação divina e coloca milhões de suas criaturas em uma posição tão humilhante, tão desesperadora? Haja vista que, para além do pároco, muitos se interessam sobre o posicionamento sacro, registramos aqui uma dica: quebrem o silêncio sobre abuso de menores na Igreja ou, em outras palavras, os incontáveis casos de pedofilia que assombram a instituição. Aliás, a Igreja Católica da América Latina é a protagonista da chamada “terceira onda” de casos de abuso – primeira nos Estados Unidos e segunda na Europa (cerca de 10 mil casos apenas na França, segundo comissão investigadora). 

A ONG responsável pelo relatório é a britânica Child Rights International Network (CRIN) e engloba 18 países de origem hispânica e o Brasil - cujos documentos internos ainda não foram investigados. Ressaltamos, então, um relatório do próprio Vaticano, de 2005, que estimou que um em cada dez padres brasileiros estaria ligado a casos de abuso, convertendo para números tem-se possíveis 1,7 mil sacerdotes envolvidos. 


“Daqui a pouco vai cair um meteoro como era no tempo dos dinossauros”

Em todo seu discurso, o Pe. Chrystian Shankar demoniza os tempos atuais e expõe o tema como algo que surgiu há pouco tempo. Além de todas as falácias do vídeo e o discurso de ódio contra professores e psicólogos, se destaca durante a mensagem o quanto o Padre desconsiderou a própria bíblia na sua fala.

O líder religioso afirma que nunca ouviu falar de relacionamentos não monogâmicos. Quantos livros da bíblia o padre precisaria ter ignorado para considerar tão absurda e nova essa forma de amor?

Com certeza Reis não fez parte de sua leitura, para ele desconhecer Salomão e suas setecentas esposas e trezentas concubinas, até mesmo Gênese fica de fora dos seus estudos, como pensar na Constituição de Israel eliminando os relacionamentos de Isaque?

A não-monogamia esteve presente em toda história do cristianismo, ela não é novidade, porém nos textos bíblicos estes relacionamentos são firmados na submissão feminina e no patriarcado. Já o conceito atual de poliamor é baseado em uma relação amorosa que envolve mais de duas pessoas com o consenso de todas, o respeito e a igualdade.

Neste ponto é impossível não associar a demonização do poliamor à reprovação da liberdade de escolha conquistada pelas mulheres nas últimas décadas. No discurso fica claro o ódio de Pe. Chrystian Shankar pela suposta psicóloga e pela colega de classe enquanto o menino é tratado como uma vítima a ser corrompida.


Sem provas? 

Na última quinta-feira (24), o padre se dirigiu à delegacia para prestar queixa contra o professor Juvenal Bernardes, que declarou sua opinião sobre as declarações do pároco. Entretanto, apesar de inúmeros pronunciados pelo professorado divinopolitano, se estendendo desde escolas fundamental-médio a universidades - públicas e particulares -, este foi o único processo aberto.

Mas o fato que se destaca é a falta de provas. Até o momento, o padre não foi capaz de citar o nome dos supostos envolvidos neste caso citado pelo mesmo, o que é extremamente intrigante: se é algo tão horrendo e perturbador, porque vossa eminência não faz discurso completo e aponta os responsáveis de tal atrocidade? Não dispomos ainda do nome do colégio, da professora e o material didático (que fez questão de sacudir com todos os ânimos). 


SINTRAM em defesa do professorado

Como em Divinópolis tudo cai ao deleite de alguns vereadores e sua missão salvadora, o irmão do deputado Cleitinho e do prefeito Gleidson, Eduardo Azevedo, atacou com ânimos aflorados os professores da cidade através das suas redes sociais. Com direito a colocações como “aberração”, “canalhas”, “não iremos aceitar calados” e todo o show bem conhecido, o Sindicato Trabalhista Municipal de Divinópolis e Região Centro-oeste (SINTRAM) precisou intervir na situação.

Em nota oficial, o órgão prestou apoio e defesa aos professores e afirmou que a generalização é uma atitude de desrespeito. As falsas acusações e ataques são uma forma de colocar a população contra a classe de trabalhadores – que, em destaque, exercem papel fundamental na sociedade. A educação de crianças e adolescentes, panorama em questão, é um exercício árduo e necessita uma troca valorosa em sala de aula.

É banal que em meio a uma pandemia, que já acumula mais de 500 mil mortes e quase dois anos sem ensino presencial, órgãos de competência educacional precisem dar o ar da graça para se defender de acusações destemperadas e descabidas. Se as celebridades políticas da região estão com extrema preocupação com o que se passa nas escolas, por que não são vistas medidas de incentivo às instituições em questão? 


Em defesa da livre educação

Em nota a Diocese de Divinópolis aborda sobre o “direito institucional, constitucional e democrático de trazer a público e anunciar a verdade acerca desta matéria na ótica da fé cristã”. Nela a assessoria de comunicação da Diocese ainda afirma que a fé se propõe, não se impõe.

Porém as falas do Pe. Chrystian Shankar não foram baseadas no anúncio da fé cristã e sim no ataque aos profissionais da educação e em acusações falsas. Juvenal Bernardes, professor divinopolitano há 30 anos, declara em vídeo: “Quando este Padre fala que em uma escola os pais estão preocupados por que os professores estão (deturpando a cabeça das crianças) ele atinge a todas. Isso é um desrespeito aos professores.”.

Um ponto tocado por professores de Divinópolis sobre o caso que não pode ignorado é do papel da escola na educação crítica dos alunos. De acordo com educador Richardson Pontone, outro a se manifestar publicamente, “O que a gente (professores) faz em sala de aula, além da informação, da formação e da verdade, é compartilhar uma série de conceitos.”

Sobre o tema, Juvenal Bernardes completa: “Nas escolas os professores estão trabalhando sério para educar essas crianças e esses jovens, para torná-los críticos. Estão ensinando a esses jovens e essas crianças que tem que ter respeito pelas pessoas.”

Para o professor José Heleno, que também se manifestou, o discurso de Shankar não é um fato isolado. “Trata-se de um projeto muito bem articulado pelos setores mais conservadores, pelos setores da direita política em Divinópolis e em todo país para combater uma educação emancipadora.”

Mas onde estão as escolas para defenderem sua própria liberdade? Além de muitos profissionais da educação terem assumido posição de afirmar seu papel em sala de aula, algumas instituições de ensino também o fizeram. Entretanto, a maioria apenas se defendeu das “acusações”, afirmando não ser a escola em questão, mas sem buscar sua liberdade de tratar os assuntos cotidianos trazidos pelos jovens. 

Os colégios, além de meras organizações didáticas, são centro relevante do desenvolvimento de indivíduos – e como o nome sugere, cada um com suas individualidades. Mais do que se livrar do ataque de pais, de políticos ou religiosos da cidade, em um movimento retrógrado articulado, as escolas bem poderiam acolher as muitas e cada vez mais complexas demandas - emocionais, éticas, sociais - de seus alunos em um mundo que parece enfeitiçado por algum algum espírito torpe.


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A Farra do Circo: ressurreição e imagem

 O Circo Voador é mais que um movimento, tornou-se um símbolo do poder da arte.

Por Maria Clara Ribeiro

A Farra do Circo | Sonora Musica | Agência de música


Do calçadão do Arpoador até o México, o documentário mostra a geração que revolucionou a cena cultural brasileira: o Circo Voador. A obra cinematográfica foi lançada em 2013, sob direção de Pedro Bronz e Roberto Berliner, e está disponível gratuitamente em plataformas de streaming, como a Netflix (https://bit.ly/3dd7pZm).  A produção tem duplo impacto: tanto na narrativa que discorre sobre o movimento político-cultural de tamanha significação, quanto no formato de reprodução escolhido que contraria a monotonia das telas digitais.  

Parte verdadeiramente emblemática (e mais interessante) se dá em seu final, quando retrata-se a ida da trupe à Copa do Mundo de 1986, no México. Perfeito Fortuna, um dos idealizadores do Circo, tornou possível a empreitada em Guadalajara por meio de um acordo entre o governo brasileiro e a Coca-Cola – sob o qual a empresa garantia os investimentos necessários, como US$500 mil e o cachê dos artistas. Entretanto, o projeto não seguiu as expectativas.

A aventura começou quando metade do grupo precisou deslocar-se para o país em um avião de carga da Força Aérea Brasileira junto aos equipamentos. Apesar do pouco espaço, as imagens mostram a alegria dos membros que foram se divertindo com “sexo, drogas e rock’n’roll”, como relembra Perfeito, até o local (com direito à parada no meio da rota por falta de combustível). A viagem teve cobertura dos jornais brasileiros e “Esquadrilha da Fumaça” foi o apelido carinhoso delegado à trupe – mas a farra estava só começando. 

Como o local destinado ao projeto estava longe do centro e dos estádios, onde acontecia toda a movimentação da Copa, os artistas decidiram levar música, dança, teatro e poesia para onde, verdadeiramente, estava o povo - e se você se chocar com o fato de terem conseguido até trio elétrico para desfilar pela cidade, não vai querer ver quando se juntaram ao protesto contra o uso de energia nuclear. Assim este era o Circo: intenso e indefinível.

O problema residiu no fato de a Coca-Cola ainda não saber disso. 

Após três semanas em terras mexicanas, veio o comunicado do final do projeto. A cena é melancólica – neste ponto do documentário, já se sente enorme carinho pelo Circo e se lamenta por não ter feito parte desta era -, é impossível não sentir a decepção dos participantes em não poder efetivar sua missão artística. Quando se tornou aceitável uma empresa abandonar sua responsabilidade sob 240 indivíduos? Em justificativa à retirada do patrocínio, a Coca-Cola alegou falta de organização da equipe. Seria realmente desordem ou negação de ser formatado? 

A arte não cabe em garrafas e a vida não tem modelo de produção (ainda). 



Quebra do Olhar – Imagem

O documentário apresenta formato peculiar. Através de registros temporais criados pelos próprios membros do projeto, a produção é montada a partir de gravações analógicas em Video Home System, popularmente conhecida como VHS. Com isso, vale ressaltar que a obra representa uma quebra do olhar com os quais estamos habituados: telas brilhantes e com imagens bem delineadas. 

A quebra da expectativa do olhar pode ser incômoda, um obstáculo para acompanhar as 1h34min de documentação. Mas, em contrapartida, há de se relevar que a peculiaridade pode assumir características de unicidade, sendo de tamanha competência cinematográfica que estimula, em sua estranheza, o acompanhamento da narrativa.


Ressurreição da vitalidade urbana-cultural

Na década de 1980, extensão do movimento artístico do Circo, o Brasil se desprendida das amarras limitantes da ditadura militar - após o tempo de repressão, a liberdade ressuscita. A cultura brasileira reencontra suas primeiras marcas renascimento atrás da música, sob forte influência da disseminação do rádio, principalmente sem censura, e dispositivos móveis, como Walkman. 

Por isso, figuras como Cazuza, Caetano, Barão Vermelho, Legião Urbana, Blitz, Os Paralamas do Sucesso, Capital Inicial, Lobão, Débora Colker, Engenheiros do Hawaii, Intrépida Trupe e muitas outras novidades surgiram, no picadeiro do Circo, para o cenário musical. Em conjunto, artistas experientes também se valeram do palco para impulsionar a missão, como Luiz Gonzaga, Adoniran Barbosa e Cauby Peixoto. Tratava-se de uma luta, um processo de construção da redemocratização da cultura através da multiplicidade de vozes e estilos artísticos.


História do Circo Voador

A Farra do Circo - Festival do RioFilme: A Farra do Circo | Caleidoscópio

Em 1982, o Circo Voador foi inaugurado na praia do Arpoador, localizada em Ipanema. A tenda teve como principal motivador o desejo de jovens artistas em construir um lugar para criar, divulgar e ensinar suas artes. Membros de grupos teatrais da época – figuras bem conhecidas atualmente -, como Evandro Mesquita, Regina Casé e Luís Fernando Guimarães, impulsionaram os primeiros passos deste projeto. 

A ideia inicial do Circo era manter seu funcionamento por um mês, mas se estendeu por três - até desmonte do local pelas equipes de fiscalização da prefeitura. Contrariando as expectativas, o grupo não encerrou suas atividades. Liderados por Perfeito Fortuna, os artistas membros se movimentaram pela capital fluminense, em destaque ao Morro do Alemão, fazendo mutirões de reforma, instituindo creches e associações para auxiliar moradores – como a criação de uma horta para atender a comunidade local. 

Em outubro do mesmo ano, após muita luta, a prefeitura carioca destinou um terreno para instalação da sua sede. Fixada na Lapa, próximo aos Arcos, o Circo ganhou forma e seu palco popular ajudou a promover o trabalho de muitos artistas até 1996 – ano de demolição da estrutura. Por quê? César Maia, então prefeito do Rio de Janeiro, decretou fechamento do local após alegação de irregularidades. 

Em 2002, um movimento passou a lutar pelo retorno do Circo Voador e, após determinação judicial, a prefeitura reconstruiu a antiga sede. Sob comando de Maria Juçá Guimarães, nos últimos anos – até interrupção da pandemia -, o Circo voltou a ser palco de artistas, incluindo os que haviam marcado presença no início do projeto. Dando continuidade aos motivadores originais, a instituição dedica tempo-espaço para a realização de cursos e projetos sociais.  


Filme: A Farra do Circo | CaleidoscópioCirco Voador :: Circo Voador

Fotos: Festival do Rio/ Caleidoscópio/ Caleidoscópio/ Circo Voador


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terça-feira, 22 de junho de 2021

Uma Seguridade Social Fragmentada: quem sofre com esse desmonte?


O Pluris continua, nesta semana, a série sobre o desmonte das políticas públicas brasileiras e seus impactos, especialmente nas populações que mais delas necessitam


Por Camila Machado

Nosso Estado de Bem-estar Social está se desintegrando gradativamente, o Brasil, em si, encontra-se em pedaços.  Mas a crise econômica e social que abalava as estruturas do país se intensificou muito mais com a pandemia – esta que segue ceifando mais vidas do que “deveria” graças à falta de rumo - ou a uma política de deliberado desmonte do Estado para privilegiar grupos econômicos - da atual gestão. As manchetes não nos deixam esquecer as mortes e nos alertam diariamente também para os que ficam, e tentam a qualquer custo sobreviver em meio ao desamparo provocado pelo desmonte de equipamentos e políticas públicas.  O vírus parece ter afetado todos os setores brasileiros, porém um continua a todo vapor: o desmonte de nossos direitos básicos, ou melhor, da garantia deles.


O Sistema Único de Assistência Social (Suas) brasileiro tem sido a principal mira deste desmonte dramaticamente violento que nos assola e coloca sob ameaça anos de um trabalho que tentou garantir os direitos estabelecidos na Constituição de 1988 às populações vulneráveis do país.  Os ataques vêm se dando, por exemplo, pelo fechamento dos Centros de Referência em Assistência Social (Cras) em todo país, na busca de se substituir o Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico) pelo auto cadastramento dos beneficiários via aplicativo para celular (o que excluiria milhares daqueles que precisam de assistência) e o esvaziamento do papel dos municípios no cadastramento de novos beneficiários de programas sociais (como o Bolsa Família), para centralizar esse processo na instância federal. São ações que muitas vezes não chamam a atenção, mas que têm um grande impacto.


Com uma canetada, por exemplo,  extinguiu-se o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) brasileiro, um órgão que tinha como objetivo assegurar o direito à alimentação adequada a toda a população. A extinção do Conselho, criado no governo de Itamar Franco (e reaberto no início do primeiro governo Lula), desorganizou em nível nacional a coordenação das políticas voltadas para o combate à fome.  E de canetada em canetada o Brasil se desintegra, ou pelo menos parte dele, e tudo sai como o planejado.


Uma pequena retrospectiva pelo desmonte

Em 1989, na nossa primeira eleição direta para presidente depois da redemocratização, Fernando Collor de Mello era eleito presidente do Brasil e começariam ali os primeiros momentos de um desmonte que depois foi claramente identificado com a política neoliberal. Com um Plano Nacional de Desestatização, que defendia o mito de que somente a economia aberta, com uma mínima intervenção do Estado no mercado e a privatização de estatais (lucrativas) poderiam ajudar o Brasil a alcançar um estágio de desenvolvimento ideal, Collor já nos introduzia no desmonte que temos hoje.


 No governo FHC, porém, aos poucos o mito do neoliberalismo racional foi se tornando insustentável. Bastaram três das constantes crises do capitalismo internacional para a nossa frágil economia ir para o limbo. Sem infraestrutura, o Brasil chegou a sofrer com casos de apagão e desabastecimento, a inflação estava saindo do controle e o desemprego batia recordes mundiais. Este foi o legado de oito anos de um governo que, embora tenha tido importantes iniciativas em políticas públicas, quase as anulou com a manutenção das injustiças neoliberais. Era assim, com ações que valorizavam o mercado financeiro e massacravam o trabalhador brasileiro, que o Brasil chegou em 2002, no fim do segundo mandato de FHC, para as eleições.


 Mas, aos poucos, o Brasil foi se reerguendo de sua crise financeira e social.  As políticas públicas implantadas nos primeiros anos do governo Lula tiveram um papel de destaque nesse processo.  Listamos algumas das que mais contribuíram para a recuperação econômica brasileira nos anos 2000:

  • Luz para Todos (2003)

  • Fome Zero (2003)

  • Bolsa Família (2004)

  • Bolsa Atleta (2005)

  • Prouni (2005)

  • PAC (2009)

  • Minha Casa, Minha Vida (2009)  

 

No combate à fome, por exemplo, o carro-chefe das políticas públicas tem sido o Bolsa Família, criado em 2003, uma política assistencialista de transferência de renda, no qual o governo oferece subsídio para famílias em condições de pobreza ou miséria acentuada. Aliado, é claro, ao programa Fome Zero que mobilizou diferentes setores da economia, desde previdência social até reforma agrária e geração de empregos, e conseguiu fazer com que em 2014 o Brasil saísse do mapa mundial da fome. Ainda que não tenha desmontado em sua totalidade a política neoliberal nem enfrentado os graves e históricos problemas estruturais, especialmente nas políticas tributárias, ao associar as políticas de bem-estar social e política econômica anticíclica - que retirou das mãos do “mercado” a decisão pelas vidas dos humanos que vivem no Brasil -, esse período é reconhecidamente um dos poucos em que se ensaiava alguma justiça social no país.

 

Um desmonte que resulta em pobreza e fome

A Seguridade Social brasileira é estruturada por um tripé que se divide em: Assistência Social, Saúde e Previdência. Juntos, atuam como um sistema único, descentralizado e participativo na luta por uma estrutura forte de Proteção Social no país. Mas vale ressaltar que a Assistência Social, enquanto política pública organizada, foi instituída apenas em 2005 e apesar de ter feito um incrível trabalho para organizar uma política de cuidados através de uma rede de proteção universalizante, vem sendo gradativamente desmontada pelo Estado.


 O Bolsa Família é um bom exemplo, pois vinha sobrevivendo aos ímpetos neoliberais do governo, mas foi atingido por um corte em sua capacidade de atendimento. O principal programa de transferência de renda que em 2012 atendia cerca de 15,9% dos domicílios brasileiros em estado de vulnerabilidade caiu para 13,7% em 2018, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). A verba prevista para 2020 foi de R$ 29,5 bilhões, número muito abaixo dos R$ 32 bilhões destinados ao programa em 2019 (que já foram insuficientes). 


Há de se considerar, é claro, que em 2020 tivemos o auxílio emergencial que atendeu cerca de 67,9 milhões de brasileiros e ajudou a diminuir a desigualdade de renda e a reduzir a pobreza no Brasil nesse momento anormal que vivemos.  Esse efeito, no entanto, foi temporário. O programa acabou passando por uma redução de valor e beneficiados este ano, e o governo já deixou claro inúmeras vezes sua ânsia pelo encerramento do auxílio. Com os programas de transferência de renda em desmonte e em meio a um desemprego que atinge mais de 14 milhões de pessoas, a fome ressurge.


O aumento da pobreza tem um efeito imediato sobre a capacidade das famílias de assegurar sua alimentação adequada e saudável, segundo o Relatório da Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas – Fian Brasil.   Não é difícil estabelecer um ciclo entre estas esferas: se você tem um índice de desemprego altíssimo aliado a fragilização da CLT (que faz com que as pessoas trabalhem com uma renda menor), isso gera um ambiente alimentar inseguro, pois quando as pessoas precisam cortar gastos, a alimentação é a primeira a sofrer uma redução.

 

Brasil de volta ao mapa da fome



Após avanços significativos nos últimos anos no combate à fome no país, um retrocesso preocupante foi evidenciado pelo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan). O estudo indicou que só no último semestre de 2020 cerca de 19 milhões de pessoas passaram fome e outros 116,8 milhões de pessoas conviveram com algum grau de insegurança alimentar.  


A falta de políticas públicas eficazes que pudessem amenizar os impactos da pandemia no país levou o Brasil não só de volta para o mapa da fome, como também acentuou ainda mais a segregação e miséria de povos que antes já se encontravam em situação de vulnerabilidade. O estudo deixou claro que os índices de fome são maiores na área rural do que na urbana. A insegurança alimentar grave alcançou 12% dos domicílios na área rural, contra 8,5% em área urbana e essa proporção dobra quando não há, nas áreas rurais, um fornecimento adequado de água para a produção de alimentos, evoluindo de 21,1% para 44,2%.


A pesquisa mostrou que a fome no Brasil tem rosto e cor. A insegurança alimentar é ainda mais intensa nas famílias onde a pessoa responsável é mulher, de cor preta ou parda e de baixa escolaridade. Entre o vírus, a violência e o desemprego, temos a fome, tão grave quanto todos os outros males que assolam este país. Se ao final de 2020 tínhamos 19 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar grave, agora no primeiro semestre estes números são bem maiores e é possível que as condições de vida dessas pessoas estejam ainda piores.


Um estudo divulgado no dia 13 de abril, coordenado por um grupo de pesquisadores da Universidade Livre de Berlim, na Alemanha, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais e a Universidade de Brasília, revelou que em 15% dos domicílios do país há privação de alimentos e fome. Intitulado “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil”, o levantamento constatou que o acesso a alimentos importantes para uma dieta regular também caiu: 44% das pessoas reduziram o consumo de carnes e 41% diminuíram o consumo de frutas.


 Estudos como estes mostram, em números, como as instabilidades socioeconômicas no Brasil foram acentuadas pela pandemia. O quadro que já se encontrava negativo quase duplicou de tamanho. Em 2018, os dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) já evidenciavam o retrocesso do Brasil no combate à fome - na época, cerca de 10 milhões de brasileiros enfrentavam algum grau de insegurança alimentar e em apenas dois anos esse número saltou para 19 milhões.


Se ainda temos alguma esperança de chamar o Brasil de nação, em que, por princípio, pessoas que aqui vivem mantêm entre si algum laço de solidariedade, é preciso conter essa escalada de crescimento da desintegração da dignidade o quanto antes. As desigualdades alimentares, especialmente o acesso a alimentos saudáveis de forma regular e em quantidade e qualidade suficientes, não podem ser naturalizadas e encaradas como uma simples fatalidade. Pessoas não morrem de fome ao acaso: elas são condenadas à fome pelo desamparo e descaso público de governos que fingem não ver a vulnerabilidade brasileira nessa recessão sem fim.  São condenadas à fome por governos que cortam benefícios, reduzem “auxílios” a valores estupidamente insuficientes e as abandonam à própria sorte, forçando-as a enfrentarem sozinhas a desigualdade, a pobreza e, assim, a morte.

 


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