sexta-feira, 2 de abril de 2021
Estatuto da Gestante: O que há de problemático nesse projeto de lei?
Acesso à tecnologia: Pré-requisito para aprovação no Enem 2020?
Por Camila Machado
As provas do Exame Nacional do Ensino Médio que aconteceriam em novembro de 2020, foram adiadas para os dias 17 e 24 de janeiro deste ano. O Enem 2020 teve o maior número abstenção desde 2009: dos 5,7 milhões inscritos, 51,5% dos estudantes não compareceram. O aumento no número de casos de Coronavírus e o agravamento das desigualdades socioeconômicas pelo isolamento social podem justificar tais números. Foram dez meses sem aula presencial, com milhares de estudantes de escolas públicas dentro de casa e muitas vezes em estado de vulnerabilidade social. Com as escolas fechadas, alunos de baixa renda tiveram dificuldades no acesso à internet para estudar. Um preocupante aumento da desigualdade educacional se desenhou novamente no horizonte brasileiro.
Um levantamento da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) mostra que a maior parte dos estudantes das universidades federais tem renda mensal per capita de até um salário e meio (70,2%) e é negra (51,2%). Em 2010, apenas 37,5% dos estudantes das instituições federais de ensino superior haviam cursado todo o ensino médio em escolas públicas. Em 2018, esse percentual subiu para 60,4%. Mas, existe agora uma preocupação com o impacto que a pandemia trazer nesses números, já que boa parte dos alunos da rede pública não tiveram condições de estudar à distância e o Enem é a principal porta de entrada para o ensino superior no Brasil.
A pandemia agravou a precariedade das condições socioeconômicas de muitos candidatos e tudo indica que criou ainda mais obstáculos para aqueles que já enfrentavam a desigualdade educacional brasileira. Não terá o Enem 2020 contribuído para restringir as vagas ao ensino superior aos estudantes que têm acesso a internet? Uma pesquisa Juventude e Pandemia do Coronavírus, divulgada em junho de 2020 pelo Conselho Nacional da Juventude, mostrou que 49% dos jovens entrevistados já tinham pensado em desistir do Enem. Daqueles que pretendiam fazer o exame, 56% estavam muito preocupados com seu desempenho na prova e 67% não estavam conseguindo estudar desde que as aulas foram suspensas. Não podemos nos esquecer de que uma coisa é utilizar o smartphone para trocar mensagens, postar fotos nas redes sociais, que demanda um pacote mínimo de dados de internet. Outra coisa é usar o aparelho para estudar em plataformas pesadas que necessitam de um tráfego maior.
O Enem ajudou, em conjunto com uma série de outras políticas, a democratizar o acesso ao ensino superior. Na edição de 2019, foram ofertadas 237.128 vagas em 128 instituições de ensino superior públicas de todo o país, segundo dados do Inep. Mas, a preocupação é que essa democratização tenha sido colocada em risco com a prova de 2020. É inegável que a pandemia contribui para este quadro, mas o Inep tinha a opção de cancelar ou adiar o exame. O ministério da Educação, como um todo, realmente fez tudo o que podia para diminuir os impactos negativos que a pandemia trouxe para os alunos de baixa renda? O Inep considerou os obstáculos impostos a estes alunos devido à falta das aulas e como isso impactaria no rendimento destes na prova? E ainda, será que realmente podemos falar de democratização do acesso ao ensino superior? Ou tudo que temos são cortinas de fumaça que tentam mascarar a desigualdade educacional existente no país?
quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021
Em quem acreditar diante das diferentes narrativas em torno da vacina?
Por Camila Machado
As vacinas são responsáveis por evitar até três milhões de mortes, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). Mas, no Brasil, todas as vacinas destinadas a crianças menores de dois anos de idade têm apresentado queda na cobertura desde 2011, segundo o Ministério da Saúde. Dados de 2018 indicam que a cobertura vacinal contra a poliomielite, por exemplo, foi reduzida para 86,3%. O país, que já foi considerado livre do sarampo, perdeu o certificado de erradicação da doença em 2019. Narrativas falsas, sem nenhuma comprovação científica, sobre as vacinas vêm se disseminando pelas redes e dando sustentação ao discurso do movimento anti-vacina. Em meio a uma pandemia, as fake news em saúde se tornam um problema extremamente grave e prestam um desserviço à população.
Manifestações contra a imunização obrigatória e a vacina chinesa em novembro de 2020 - São Paulo. Foto: REUTERS/Amanda Perobelli |
Estudos apontam que o problema das fakes news se intensificou com a pandemia da Covid-19 e esse tipo de conteúdo nas redes sociais passou a ser usado para reverberar vozes de movimentos antivacina. É possível perceber que informações advindas de, por exemplo, páginas de ministérios, agências reguladoras, secretarias municipais e estaduais de saúde e entidades de fomento à pesquisa são links pouco curtidos e compartilhados se comparados com os de notícias falsas. Há, ainda, evidências fortes de que o movimento antivacina atua, prioritariamente, em grupos fechados no Facebook e no Whatsapp e não em espaços públicos do Twitter e do Facebook, como apresentado no artigo de Luiza Massarini publicado nos Cadernos de Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde Pública.
A luta contra as fake News e a desinformação acerca da vacinação fica ainda mais difícil quando o presidente do país se mostra favorável à não vacinação. Bolsonaro inúmeras vezes questionou o uso da vacina contra Covid-19 e disse, por exemplo, que não obrigaria ninguém a tomá-la. Nesse episódio, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom Ghebreyesus, criticou o discurso anti-vacina. “As pessoas não devem ser confundidas por movimentos anti-vacina, mas ver como o mundo usou vacinas para combater a mortalidade infantil e para erradicar doenças. Olhe os relatórios das vacinas, olhem vocês mesmos, especialmente os pais, como as vacinas mudaram o mundo”, disse.
Diante de uma doença tão contagiosa como o Covid-19, que apresenta agora dezenas de variantes que tornam o vírus ainda mais transmissível, uma vacinação em massa torna-se necessária. Mas, além de lutar contra o tempo e o vírus, as autoridades de saúde têm agora de lutar contra discursos anti-vacinas que parecem se espalhar cada vez mais, gerando medo e pavor na população. Inúmeras teorias da conspiração surgiram desde o anúncio de que as primeiras vacinas estariam prontas. Hoje o Brasil tem, de um lado, as autoridades internacionais de saúde, os laboratórios e a imprensa lutando em defesa da vacinação e apresentando, constantemente, informações sobre sua eficácia e importância para o fim da pandemia. E de outro temos uma grande disseminação de notícias falsas e um governo que já deixou evidente ter certa resistência à vacinação (embora tenha mudado seu discurso recentemente).
Um acontecimento recente deixou muitos brasileiros ainda mais “perdidos” na desinformação em torno da vacina e do próprio Covid. O Twitter chegou a colocar um aviso de que “informações enganosas e potencialmente prejudiciais relacionadas à Covid-19” estariam presentes em um post feito pelo perfil oficial do Ministério da Saúde. Surge daí uma questão: se até o ministério anda propagando conteúdos “duvidosos”, em quem devemos confiar? São tantas narrativas diferentes que o povo brasileiro se vê perdido, sem saber mais em quem acreditar.
Porém, é preciso ter em mente que os movimentos antivacina podem até criar narrativas para lutar contra a vacina, mas os números nos contam a sua própria história. “Temos que colocar em perspectiva as vacinas e o que elas fizeram para a humanidade. Não há dúvida que houve uma aceleração nas pesquisas de vacinas para a covid-19 e isso se deve ao avanço da tecnologia. E nenhuma vacina será entregue massivamente antes de serem avaliadas”, esclareceu Soumya Swaminathan, cientista-chefe da OMS, ainda em setembro de 2020. É necessário educar mais o público sobre as vacinas e lutar contra o desserviço das notícias falsas. Não adianta ter vacina se a população não confiar nela e não compreender a importância da adesão de todos à vacinação.
A Imprensa se tornou “inimiga da nação” no governo Bolsonaro
Por Camila Machado
O Presidente Jair Bolsonaro foi responsável por mais de 200 ataques a imprensa só no primeiro semestre de 2020. Imagem: Bancários Bhaia |
Ataques à imprensa se tornaram uma “marca” do governo atual. Antes mesmo de ser eleito, Bolsonaro já atacava a imprensa em suas redes sociais, chegando a promover, por exemplo, o linchamento virtual de jornalistas da Folha de São Paulo, em outubro de 2018, depois de o jornal publicar uma reportagem mostrando a relação de empresários, que apoiavam sua campanha, com a da propagação de informações falsas sobre o PT pelo Whatsapp. Três jornalistas da Folha foram virtualmente atacados e a autora da reportagem chegou a ser confrontada por apoiadores de Bolsonaro, ainda no mesmo ano. Mas as coisas pioraram depois da posse. Bolsonaro fez da imprensa não só sua “inimiga”, mas também da nação.
Um monitoramento feito pela Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), divulgado em julho de 2020, mostra que 245 ataques contra o jornalismo por parte do Presidente Jair Bolsonaro foram registrados só no primeiro semestre daquele ano. Desses, 211 foram categorizadas como descredibilização da imprensa, 32 ataques pessoais a jornalistas e dois ataques contra a própria FENAJ. Foram quase dez ataques ao trabalho jornalístico por semana em 2020, segundo a Federação. Esses ataques são feitos em declarações públicas do presidente em suas lives para o YouTube, em sua conta pessoal no Twitter, em vídeos de entrevistas coletivas em frente ao Palácio do Alvorada, discursos e também em entrevistas disponibilizadas no portal do Planalto.
Qualquer que seja a notícia sobre as ações do governo ou a postura negativa do presidente fazem com que a imprensa e os jornalistas sejam colocados como “inimigos do país”. Bolsonaro se refere ao trabalho da imprensa, por diversas vezes, como mentirosa, omissa, sem credibilidade ou confiabilidade, e já chegou a afirmar que a imprensa atrapalha, é uma vergonha, deturpa, esculhamba e tripudia de assuntos sérios. Para o presidente, faltam notícias verdadeiras, chamando de fake news todas as que, segundo ele, “destroem reputações”. O jornalismo profissional também sofre com ataques misóginos e homofóbicos por parte do presidente e com os gestos ofensivos feitos por ele aos jornalistas que atuam na cobertura em frente ao Palácio do Alvorada, em Brasília. Todos devem se lembrar da cena patética de contratar um humorista para distribuir bananas aos profissionais da imprensa, em fevereiro de 2020.
A agressiva relação do presidente com a imprensa piorou ainda mais com a pandemia. Em março, Bolsonaro fez pronunciamento para TV e rádio afirmando que meios de comunicação “espalharam exatamente a sensação de pavor” e pela primeira vez associou a atuação da imprensa no contexto da pandemia como causadora de “histeria”. Esse discurso foi mantido por meses até que em junho uma mudança de postura do presidente foi adotada. Bolsonaro passa a se referir com ironia à imprensa em suas redes sociais e discursos. Sobre as agressões físicas a jornalistas no exercício profissional, por parte de seus apoiadores, Bolsonaro se manifestou dizendo apenas: “se são agredidos, saiam dali, pô! Vocês não são obrigados a ficar ali”.
Mas não só o presidente Jair Bolsonaro ataca a imprensa. Em setembro de 2020, a entidade internacional Artigo 19 apresentou ao Conselho de Direitos Humanos da ONU um relatório que mostrava que o presidente, seus filhos, ministros e assessores realizaram um total de 449 ataques contra jornalistas desde o início de seu mandato até setembro de 2020. Os filhos de Jair Bolsonaro foram autores de quase metade (220) dos ataques, segundo o documento, e do total de violações registradas, Eduardo Bolsonaro é autor de 24%, Carlos Bolsonaro de 19%, e Flávio Bolsonaro, 6%. Os ministros indicados pelo presidente, ainda que tenham sido exonerados e indicados de forma frequente, figuraram em 27% dos ataques (119).
Claramente os números são muito maiores hoje, uma vez que o governo enfrenta agora uma queda de popularidade devido aos vários “escândalos” referentes à má eficácia do governo no combate à pandemia. A falta de seringas, o mau planejamento da compra de vacinas, a falta de oxigênio em Manaus e as incontáveis mudanças de discurso do presidente estão abalando negativamente o governo e a “única saída” nessas horas é atacar a imprensa.
O ministro da saúde, Eduardo Pazuello, vem fazendo inúmeros comentários acusando a imprensa de ser tendenciosa. No dia 07 de janeiro, por exemplo, o ministro disse: “Quero assistir a notícia e ver o fato que aconteceu, deixem a interpretação para o povo brasileiro, para cada um de nós”, questionando um dos principais papéis do jornalismo que é traduzir a realidade, o que implica, é claro, a interpretação dos dados e eventos. Mas, o próprio ministro veio a se contradizer minutos depois: “Se cada um interpretar como quer, a desinformação é completa. Numa pandemia, a desinformação e a interpretação equivocada ou tendenciosa leva a consequências trágicas [...]”.
O ministro só esqueceu-se de dizer que a desinformação começa quando o trabalho jornalístico é ameaçado e a credibilidade da produção de notícias é questionada. “Se uma pessoa diz que está chovendo e outra diz que não está, a obrigação do jornalista não é citar os dois lados, mas olhar pela janela e descobrir a verdade”, já dizia o escritor Jonathan Foster. É preocupante que no Brasil não somente o vírus esteja deixando um rastro de incertezas e luto, pois hoje a maior ameaça aos jornalistas brasileiros e à liberdade de imprensa tem sido o próprio Presidente da República.
Trumpismo e Bolsonarismo: as semelhanças não são coincidências
Por Camila Machado
Um dos muitos apertos de mão entre Trump e Bolsonaro e suas alianças. Foto da reunião do G20, em Osaka - via Agência Brasil |
Depois do ataque ao Capitólio, no dia 06 de janeiro, pesquisadores que sempre chamaram a atenção para o efeito nocivo das redes de Donald Trump para a sociedade norte-americana disseram que tal uso contribuiu não só para a invasão do Capitólio, mas para a eleição de muitos outros políticos com base na propagação de notícias falsas. Este efeito foi tamanho que o Twitter baniu, definitivamente, a conta com mais de 88 milhões de seguidores do presidente a fim de evitar a contínua incitação à violência. O Facebook e o Instagram também bloquearam os perfis de Trump por tempo indeterminado.
O mesmo efeito nocivo é notado facilmente também no governo de Jair Bolsonaro que se elegeu por meio das redes sociais e desde o início do governo faz delas seu principal canal de comunicação. O Twitter já suspendeu inúmeros de seus posts por apresentarem notícias falsas, principalmente nesta pandemia. A incitação à violência também está presente em suas redes e influenciaram, de certa forma, as preocupantes manifestações contra o STF, em julho de 2020. Inúmeros são os casos em que Bolsonaro e Trump prestaram um desserviço brasileiros e estadunidenses - para nos limitarmos aos públicos nacionais - e tal desserviço se tornou ainda mais intenso nesta pandemia. A qual Bolsonaro insiste em minimizar a gravidade, mesmo o país tendo hoje mais de 220 mil mortes por Covid-19.
É inegável as semelhanças entre o Trumpismo e o Bolsonarismo, semelhanças estas que claramente não são meras coincidências. Nos dois casos, temos políticos de extrema direita que usam e abusam das expectativas de milhões de pessoas, que apresentam certa vulnerabilidade social e/ou econômica, e se apresentam como os “salvadores da pátria”. Ambas as candidaturas de extrema direita souberam explorar os espaços abertos pelo crescimento da desigualdade e os erros cometidos por partidos tradicionais. Tanto no Trumpismo, quanto no Bolsonarismo temos uma intensa nostalgia pelo passado que baseia suas campanhas e governos. Trump adotou com o seu lema o ‘Make America Great Again’, desconsiderando detalhes da história norte-americana como o genocídio de povos indígenas, a escravidão e os longos períodos de discriminação contra mulheres, negros, e migrantes. Enquanto Bolsonaro nem ao menos tenta disfarçar sua nostalgia pelos anos de chumbo e pelas práticas de tortura que marcaram a ditadura militar do Brasil.
O principal pilar do Trumpismo e do Bolsonarismo tem sido o incentivo ao medo, à raiva e ao ódio, com apologias à violência. Indivíduos e grupos minoritários são transformados em inimigos e culpados por todo mal que aflige a sociedade. Para o Trumpismo o alvo tem sido as populações de novos migrantes, os negros e apoiadores do partido democrata, enquanto aqui Bolsonaro fez dos povos indígenas, do movimento LGBT, dos ambientalistas, dos petistas, de supostos ‘comunistas’ e de ativistas em geral inimigos da nação. Comportamentos sexistas que propagam o desrespeito e a violência contra mulheres também são marcas registradas no Trumpismo e no Bolsonarismo que estão sempre seguindo uma lógica de ganhos com suas bases eleitorais.
É possível perceber como o governo brasileiro está constantemente “copiando” o discurso e as ações de Trump. O exemplo mais recente disso foi quando Trump perdeu as eleições de 2020 e passou a dizer que havia tido fraude nas eleições e o presidente Jair Bolsonaro não só concordou e apoiou a infundada acusação de Trump, como adotou o mesmo discurso ao falar das eleições de 2018. Bolsonaro, desde então, vem questionando a segurança das urnas eletrônicas e falando que nas eleições de 2020 o voto não poderá ser eletrônico e isso preocupa.
É preciso pensar que no Brasil um desafio bolsonarista a um possível resultado negativo nas eleições poderá ter dimensões muito mais graves do que as de Trump nos EUA (que resultou no ataque ao Capitólio). Bolsonaro tem apoio em setores importantes das Forças Armadas, das Polícias Militares, do empresariado e do Judiciário, o que torna nossas instituições democráticas muito mais frágeis. Sem contar o apoio cego de parte da população a Bolsonaro, a proliferação de armas no país e o sério desequilíbrio que acompanha a personalidade do presidente.
Uma crise política e institucional poderá vir a ser enfrentada daqui a algum tempo e as forças populares devem estar dispostas a defender o pouco de democracia que existe no país para que evitemos assim um golpe fascista. Trump já caiu e receio que não podemos, simplesmente, esperar Bolsonaro seguir os mesmos passos de seu companheiro extremista, temos que agir.
A cobertura problemática do ataque ao Capitólio e um dos seus prováveis efeitos colaterais
Por Camila Machado
Ataque ao Congresso dos EUA por apoiadores de Donald Trump. Foto: VaticanNews |
A invasão ao Capitólio, no dia 06 de janeiro, foi notícia no mundo todo e considerada, por muitos especialistas, como um ataque à democracia moderna. Uma mancha que será difícil de apagar da história da democracia norte-americana e que rendeu milhares de críticas a Donald Trump. Ele foi acusado de estimular seus apoiadores a invadirem o Capitólio na tentativa de impedir a diplomação do presidente Joe Biden. Há meses Trump vinha incitando sua base de apoiadores a se mobilizar contra uma suposta fraude eleitoral e a invasão ao Capitólio foi o ápice das ações problemáticas que o presidente vem tomando desde que assumiu a presidência.
Um fato importante que chamou a atenção em meio ao caos que a invasão trouxe para a vida dos estadunidenses foi em relação a cobertura feita pela mídia do acontecimento. Muitos veículos referiram-se aos invasores do Capitólio como “manifestantes”, e incluir grupos nacionalistas, fascistas e supremacistas de extrema direita na mesma categoria de ativistas do Black Lives Matter, por exemplo, e de outros movimentos que lutam pelos direitos das comunidades marginalizadas dos EUA é algo extremamente problemático e perigoso.
Ativistas já temem que o que aconteceu no dia 06 de janeiro seja usado como referência para justificar a repressão e a violência contra os movimentos sociais tanto na mídia, quanto nos processos legais. Especialistas dizem que é provável que o ataque ao Capitólio traga consequências desagradáveis para os movimentos sociais, como o aumento da violência contra estes grupos populares. Violência esta que não foi, nem de perto, usada na mesma intensidade contra os invasores do Capitólio e que mostrou para o mundo que a polícia estadunidense já escolheu o seu lado e esse lado tem cor. Basta olhar para as dezenas de organizadores dos protestos anti racistas nos EUA que foram presos e perseguidos ao longo de 2020. O que aconteceu no Capitólio foi uma demonstração do que é a supremacia branca norte-americana e do apoio que estes têm do Estado e, de certa forma, da mídia que ao não medir palavras acaba corraborando para esse “terrorismo doméstico”.
Um último ponto a ser levantado, ainda dentro dessa temática dos movimentos sociais, é de que assim como a Lei Antiterrorismo brasileira torna-se, de certa forma, uma ameaça para o movimento social como um todo o mesmo pode acontecer nos EUA. A definição de terrorismo pode ser ampliada para incluir, de alguma forma, grupos que protestam contra certas políticas, mesmo que pacificamente, e a mídia pode novamente corraborar para isso.
Ameaça contra Duda Salabert
Por Camila Machado
Discursos de ódio retroalimentados no Brasil e os trolls de extrema-direita
Duda Salabert é ameaçada de morte e vem recebendo mensagens de ódio desde que ganhou as eleições. Fonte: via Instagram |
No dia 04 de dezembro, a primeira vereadora trans e a mais votada da capital mineira Duda Salabert nas eleições de 2020 fez a seguinte publicação em suas redes sociais: “Estou sofrendo ameaças de morte. Desde que ganhei a eleição venho recebendo mensagens não apenas de ódio, mas também de ameaças. Ontem recebi esse e-mail. E pior: o grupo odioso enviou esse mesmo e-mail para a escola em que trabalho e para os donos e para a direção da escola. É uma estratégia não só para me intimidar, como também para forçar que a escola me demita”. Na mensagem de ameaça, a pessoa dizia que iria comprar uma pistola e invadir o colégio Bernoulli, onde Duda dá aula há 12 anos, para matar “todos os negros”, “vadias” e por último a vereadora.
Segundo Duda, o e-mail é assinado por Ricardo Wagner Arouoxa. O nome do autor seria um pseudônimo usado por um grupo de extrema direita no Brasil. A revista Época informou que o nome dele vinha sendo utilizado por uma quadrilha de crimes de ódio na internet inspiradas no Dogolachan, fórum criado por Marcelo Valle Silveira Mello, um dos primeiros condenados por racismo na internet no país. Trata-se de uma nova onda de ataques que seguem a mesma linha das ações do Dogolachan e é extremamente influente na cena troll brasileira.
Mas, não foi a primeira vez que Duda é atacada e recebe ameaças assim. Em 2018, quando ela se candidatou ao Senado Federal, Salabert relatou estar sofrendo vários atentados virtuais e que muitos deles motivados por políticos da família Bolsonaro. “Alguns dos apoiadores e candidatos do Bolsonaro fizeram publicações contra a minha figura, o que desencadeou em literalmente milhares de mensagens de ódio contra mim”, disse Salabert em entrevista a Ponte. Na ocasião, Duda contou que algumas pessoas chegaram a ligar para a escola onde ela trabalha e exigir que a demitisse.
Na mesma época, Duda disse que “os partidos são espelho da sociedade e por isso são ainda muito machistas, misóginos e transfóbicos”, e isso se faz cada dia mais presente desde 2018. Discursos deste tipo são compartilhados e retroalimentados diariamente no Brasil, inclusive, pelo atual presidente que se tornou um “digital influencer” do discurso de ódio. Resguardado em seu cargo de chefia e escondido atrás da “liberdade de expressão” que tanto prega, Bolsonaro não se cansa de fazer comentários homofóbicos e misóginos e de compartilhá-los com seus milhares de seguidores.
Rodrigo Nunes, professor de Filosofia Moderna da PUC-Rio, em entrevista à BBC, disse que o presidente Jair Bolsonaro e seu entorno adotam a estratégia de comunicação dos trolls, os provocadores da internet, para ganhar visibilidade. “Ele está sempre introduzindo temas que são 'polêmicos' — que na verdade são comentários racistas, homofóbicos ou machistas etc. —, e a reação [de indignação] provocada atrai atenção para ele, lhe dá visibilidade”. A figura do troll é exatamente esta figura que fala o que todo mundo está pensando e ao mesmo tempo está só brincando. A que está sempre nesse jogo dúbio, entre o que é brincadeira e o que é sério. A questão é que a cada dia mais pessoas estão disseminando esses discursos e daí surgem os grupos de ódio na internet. Grupos como os que ameaçaram Duda Salabert e outras mulheres recém-eleitas no Brasil, os trolls de extrema direita que seguem cegamente o seu messias.
terça-feira, 2 de fevereiro de 2021
Por que os jornais estampam rostos apenas em casos de espetacularização?
Por Camila Machado
Protesto contra violência policial em São Paulo em 2020. Foto:. Amanda Perobelli / REUTERS No dia 14 de dezembro, a Folha de São Paulo publicou uma matéria que mostra que mais de 2 mil crianças e jovens foram mortos por policiais militares nos últimos três anos. Todos os dias, ao menos uma criança ou adolescente são mortos pela polícia no Brasil. A notícia escancara a vulnerabilidade das crianças e adolescentes em nosso país, principalmente daqueles que são pobres e pretas, uma vez que os agentes do Estado, que deveriam protegê-los, os matam. Que a violência policial era fato todos nós já sabíamos, mas saber que ao menos 2.215 pessoas, entre 0 e 19 anos, foram mortas e tratadas como meros números só nos últimos três anos gerou grandes discussões nas redes sociais e abriu caminho para muitos questionamentos.Uma fala de Sofia Reinach, pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, chama a atenção na matéria. “Não são apenas números, são pessoas e suas famílias que passam a vida tendo que conviver com essas marcas. Os jornais, que estampam rostos quando um caso chama a atenção, poderiam dedicar páginas completas diariamente com fotos das vítimas. É uma rotina que foi normalizada no Brasil e vai muito além de alguns casos emblemáticos”, diz Reinach. Questões importantes em referentes ao “fazer jornalístico'' surgem desse ponto levantado pela Sofia.
A primeira diz respeito a naturalização e automatização de eventos que não deveriam ser naturalizados. O jornalismo não pode se dar o direito de se “acomodar” ou ser superficial ao tratar da violência policial crescente ou qualquer outro tempo de interesse público. A imprensa, como um todo, deve instigar discussões e não contribuir para a naturalização de eventos que ferem qualquer aspecto do campo social (pelo menos é o que se espera).
A segunda questão é: O que faz com que muitas coberturas foquem no “raso” e fiquem apenas no factual do acontecimento, dando destaque para certos eventos e ignorando outros? (mesmo que estes sejam sobre um mesmo assunto, como os assassinatos de crianças e jovens por policiais, apresentados pela Folha). O que tem movido e definido a escolha dos casos que são suficientemente “relevantes” para a construção das matérias nas redações brasileiras? O interesse público ou aquilo que dará mais “clique” e terá mais repercussão? Por que, como questionado por Sofia, os jornais apresentam apenas números e não os rostos desses jovens mortos pelos PMs? Por que muitos casos são silenciados? E o que a imprensa ganha ao ignorar certos eventos e ajudando a reforçar a naturalização de temas socialmente relevantes?
Chamo-os a pensar criticamente as questões levantadas aqui. O que falta nessa narrativa? Qual lado de um fato não está sendo mostrado nas reportagens e matérias construídas hoje em dia? É necessário questionar e chamar a atenção para os “detalhes”, as pequenas escolhas feitas ao elaborar uma matéria, seja em grandes conglomerados midiáticos ou veículos independentes, e que alteram a percepção da realidade a ser mediada pela comunicação. É preciso desautomatizar e quebrar padrões para que o jornalismo se sensibilize novamente, apresentando rostos e histórias - é preciso “desnumeralizar” a vida.
sábado, 16 de janeiro de 2021
Voluntários nas ruas para garantir os lucros dos patrões
Ana Laura Corrêa
Em uma tentativa de frear o avanço da pandemia na cidade, a Prefeitura de Divinópolis e grupos de empresários de vários setores deram início à campanha “Amigos do Comércio”.
A ação envolveu o treinamento, pela Vigilância Sanitária do município, de grupos de voluntários, que, em seguida, foram fiscalizar os estabelecimentos comerciais quanto ao cumprimento dos protocolos de combate à covid-19.
Faltam fiscais
Os tão falados “enxugamento da máquina pública”, “austeridade” e “corte de gastos” resultam em situações como a falta de fiscais que a Prefeitura enfrenta hoje. Em uma cidade com mais de 200 mil habitantes, há pouco mais de dez fiscais para vistoriar o cumprimento das regras estabelecidas pelos decretos.
Não entraremos, neste texto, no mérito do absurdo de a Prefeitura ter que fiscalizar comportamentos, depois de quase um ano de pandemia. As formas de prevenção já foram faladas e repetidas exaustivamente.
Questionamos, aqui, a exposição ao risco de contrair a covid-19 de voluntários - portanto, sem remuneração -, apoiada por patrões e Prefeitura, para fiscalizar o comércio. Se as entidades querem manter seus estabelecimentos funcionando, por que, pelo menos, não se unem para contratar pessoal e atender seus interesses? Por que expor pessoas ao risco (o que já é absurdo) sem qualquer contrapartida?
Cobrar do presidente
Um texto divulgado no site da CDL após a inclusão de Divinópolis na onda vermelha - portanto, com o fechamento das lojas - diz que “a situação se torna ainda mais preocupante tendo em vista que as Medidas Provisórias que permitiam a redução de jornada e salário dos trabalhadores, além da suspensão dos contratos de forma temporária, já não estarão em vigor em 2021 e tampouco serão reeditadas”.
Não seria, então, o momento de cobrar do presidente Jair Bolsonaro a continuidade dessas medidas (não que sejam as melhores...) em vez de pressionar pela reabertura a todo custo? E, sem o auxílio emergencial, para quem o comércio pretende vender?
É contraditório
O mesmo texto ainda traz que “não existe nenhuma evidência científica de que o comércio seja fator preponderante para a disseminação do vírus.
Ora, se não fosse, por que estão promovendo o “Amigos do Comércio”?
Além disso, as evidências científicas mostram que qualquer aglomeração e descumprimento das outras medidas de prevenção favorece a transmissão do vírus.
Daí, não é muito difícil compreender que o comércio traz, sim, riscos. Veja mais nesta matéria da BBC Coronavírus: os riscos de contágio em shoppings centers, que começam a reabrir durante pandemia.
Os comerciantes até estar mais atentos agora (será?), mas o que se via há pouco tempo eram vendedores e clientes sem máscara ou distanciamento, e lojas sugerindo roupas para o Natal e Réveillon (não deveriam ser celebrados em casa?). Aparentemente, ninguém se lembrava de pandemia. A conta do descaso chegou.
Discussão ultrapassada
A discussão e a pressão sobre a reabertura/fechamento de lojas, diante de todas as evidências científicas já deveria estar ultrapassada. Existe o risco? Existe. É preciso fechar? Sim. O que fazer? Cobrar também do presidente maior celeridade quanto à vacinação, para que, enfim, tudo possa voltar ao normal. Mas, por aqui, ainda não se viu CDL, Acid ou empresários falando sobre a vacinação. Eles não querem voltar ao normal?
Aumento dos casos levou ao fechamento de estabelecimentos não essenciais |
Mais importante do que ser é parecer ser
Ana Laura Corrêa
Desde que assumiu a Prefeitura de Divinópolis, Gleidson Azevedo já publicou 18 vídeos em seu perfil no Instagram, apenas até o dia 16 de janeiro (com pouco mais de duas semanas de mandato), com média de mais de um vídeo publicado por dia. A descrição da página pessoal do prefeito traz: “Divinópolis agora tem prefeito!”. Nós, do Observatório Pluris, fomos então verificar as postagens de Gleidson Azevedo para verificar quem é esse novo prefeito - que desmerece todos os seus antecessores em uma frase.
Os vídeos publicados pelo prefeito, desde o início do mandato, têm entre 9 e 33 mil visualizações.
Destacaremos aqui, inicialmente, duas publicações. Em uma delas, ao lado do irmão gêmeo, o deputado estadual Cleitinho Azevedo - que está de recesso da ALMG (mas, vale lembrar, apenas até 31 de janeiro) -, Gleidson Azevedo ajuda a retirar um radar na avenida JK. Em outra publicação, o prefeito - ainda no dia da posse, em 1º de janeiro - ajuda a cortar uma árvore e retirar galhos caídos em uma via na cidade, após uma forte chuva.
Trecho do vídeo em que o prefeito retira radar da avenida JK (Foto: Reprodução/Instagram) |
Diante desses posts, vêm alguns questionamentos. O primeiro é: são essas as funções de um prefeito eleito? Onde estão os servidores que deveriam fazer essas tarefas? Ou o estado mínimo está tão perverso em Divinópolis a ponto de o prefeito precisar exercer funções que não são suas? Se falta pessoal, por que ele, como prefeito, não abre concurso público para a contratação de servidores para fazer essas tarefas?
Outra pergunta que surge ao ver as publicações é: quais temas o prefeito escolhe para fazer vídeos e por quê? Por que ele resolveu “ajudar” pessoalmente nessas ocasiões e em outras não? Na página de Gleidson Azevedo, não há, por exemplo, vídeos relacionados às reuniões para o fechamento do comércio devido à pandemia.
Ele, em apenas duas semanas à frente da Prefeitura, passou por cima da decisão do comitê formado por profissionais da saúde e permitiu a reabertura das lojas em um momento crítico da pandemia de coronavírus na cidade. Silêncio nos posts. Até mesmo na entrevista coletiva que tratou do retorno à onda vermelha, quem mais falou foi a vice-prefeita, Janete Aparecida, enquanto Gleidson, tão acostumado a mostrar-se e a falar, ficou, assustadoramente, mais quieto e calado. Por quê?
Mais um questionamento: em que momento esses e outros vídeos são gravados e por quem? O expediente pode ser interrompido para o prefeito gravar vídeos para as próprias redes sociais, e não as da Prefeitura? Ou esses vídeos são feitos após o expediente? Quem filma é pago com dinheiro público? É um assessor particular do prefeito ou é servidor da Prefeitura?
Em outro vídeo, Gleidson Azevedo mostra os elevadores e veículos exclusivos aos quais os chefes do Executivo sempre tiveram acesso na Prefeitura. Ele disse que cortou essas “mordomias” e pede que a população viralize o vídeo para que o Brasil todo veja. Qual a necessidade dessa divulgação? Outras cidades vão mudar por causa de ações do prefeito de Divinópolis?
Como vivemos na era das selfies, das redes sociais, em que “parecer ser é mais importante do que ser” e tudo se transforma em espetáculo para os outros verem, o prefeito parece querer adequar a função de prefeito ao seu gosto pela exibição nas redes sociais. Afinal, o trabalho e as burocracias “normais” de um prefeito não são muito instagramáveis (de acordo com o que Gleidson & Cleitinho consideram instagramável), não geram muitas visualizações, curtidas, compartilhamentos e comentários.
Embora a lógica das redes sociais seja a do “parecer ser” (em que todo mundo quer parecer fitness, quer parecer que trabalha muito, quer parecer que estuda demais, que viaja o mundo inteiro, que visita as praias mais bonitas, cozinha os melhores pratos e come nos melhores restaurantes), essa lógica não se aplica à política. Para ser um bom prefeito é preciso, antes de tudo, ser. Fazer aquilo que deve ser feito, dentro das suas funções específicas, em prol da população.
Assinar papéis e ficar em um gabinete pode não ser um trabalho muito instagramável, mas, ainda assim, é possível, por meio de bons profissionais da comunicação, ter bons posts nas redes sociais. Essas publicações, no entanto, nem sempre terão muitas curtidas, comentários, compartilhamentos ou visualizações. Contudo, se as ações concretas contribuírem para a melhoria de vida da população da cidade, já é o suficiente dentro das funções de um prefeito. A população agradecerá em silêncio quando vir o ônibus sem aglomerações na pandemia. Fazer o quê? Querer ser visto, aplaudido e mostrar-se o tempo todo não significa fazer um bom trabalho. Ser prefeito é outra coisa. Divinópolis agora tem prefeito?
terça-feira, 12 de janeiro de 2021
A imprensa e o novo prefeito de Divinópolis: jornalismo ou assessoria?
Ana Laura Corrêa
Gleidson Azevedo assumiu a Prefeitura de Divinópolis em 1º de janeiro. Assim como o irmão, o deputado estadual Cleitinho Azevedo, Gleidson vem se tornando conhecido pelos vídeos publicados em suas redes sociais. Até o dia 16 de janeiro, por exemplo, 19 publicações já haviam sido feitas pelo prefeito em sua página no Instagram.
A quantidade de postagens nas redes sociais corre o risco de transformar a cobertura jornalística das ações da Prefeitura, feita pelos veículos de comunicação da cidade, em uma simples cobertura das publicações do Instagram, com matérias do tipo “Em vídeo, Gleidson diz que…”.
Assim, o que se tem é uma cobertura sobre os vídeos do prefeito, e não sobre os fatos em si. Tal como fez o Estado de Minas - em notícia republicada do Portal Gerais, de Divinópolis - que, em vez de destacar a problemática em torno dos elevadores e veículos exclusivos para o prefeito, fez uma descrição detalhada do vídeo publicado pelo chefe do Executivo, veja na matéria "Prefeito de Divinópolis revela elevador privativo e 'mordomias'; veja vídeo".
Vídeo do prefeito virou matéria no Estado de Minas (Foto: Reprodução) |
Ou, ainda, o Sistema MPA que, como veículo jornalístico, reproduziu uma crítica do prefeito direcionada à própria mídia, feita, é claro, em um vídeo, na matéria "Prefeito Gleidson questiona mídia e aproveita para fazer balanço da primeira semana". As regras dos textos jornalísticos dizem que os temas mais importantes devem vir no primeiro parágrafo das matérias. No caso da notícia do Sistema MPA, o texto já se inicia com “O prefeito Gleidson Azevedo divulgou um vídeo…”. Será esse o fato mais importante? Será o conteúdo do vídeo um conteúdo importante ao ponto de merecer uma matéria?
Também o Jornal Agora destacou na matéria "Prefeito de Divinópolis remove radar na avenida JK" o vídeo em que o prefeito retira “com as próprias mãos” um radar na avenida JK. A matéria feita não traz o posicionamento da Secretaria de Trânsito, principal fonte sobre o assunto - afinal, por que aquele radar foi colocado ali? - mas se detém à descrição do vídeo.
Todos os três textos trazem pelo menos trechos dos vídeos publicados por Gleidson Azevedo que motivam as matérias.
Mas somos jornalistas ou assessores do prefeito? Parece haver uma confusão quanto à função do jornalismo.
Repórteres e jornalistas muitas vezes se orgulham em dizer que são o “quarto poder”, que são “fiscalizadores da política”. No entanto, matérias desse tipo parecem apenas uma assessoria de comunicação das ações do prefeito, que, vale ressaltar, tem funcionários e assessores remunerados (aliás: esses assessores, como servidores públicos, são assessores do governo ou da Prefeitura, da máquina político-administrativa, com a finalidade de cuidar da coisa pública? Mas esse é um tema para outro texto...) à sua disposição, enquanto jornalistas dos veículos de comunicação da cidade geralmente enfrentam trabalhos precários.
Com certeza há temas mais importantes para o jornalismo do que divulgar populismos, polêmicas propositais ou que tais - ou, então, que se traga pelo menos uma perspectiva crítica em matérias desse tipo. Que deixemos o restante para as páginas pessoais dele nas redes sociais.
O silêncio da Agência Brasil sobre o #AdiaEnem
Ana Laura Corrêa
A realização das provas do Enem nos dias 17 e 24 de janeiro, em meio à alta dos casos de coronavírus no Brasil, fez com que entidades, movimentos, políticos, pais, alunos e professores pedissem o adiamento do exame. O que não aconteceu.
Já falamos aqui no Observatório Pluris sobre a Agência Brasil, único veículo de comunicação pública no país, mas que tem sido submetido às pressões do atual governo.
Assim, fomos verificar a cobertura do site sobre o Enem, observando as notícias publicadas em janeiro relacionadas ao exame:
TV Brasil e Agência Brasil transmitirão aulões da Maratona Enem
Justiça Federal de São Paulo nega novo adiamento do Enem 2020
Professores dão dicas para lidar com a ansiedade às vésperas do Enem
Inep antecipa em meia hora o acesso aos locais de provas do Enem
Enem terá regras para evitar contágio pelo novo coronavírus
Defensoria Pública da União pede adiamento do Enem 2020
Candidatos do Enem lidam com internet precária e estudos pelo celular
Inep divulga cartão de confirmação com local de prova do Enem 2020
Plataformas online gratuitas podem ajudar na preparação para o Enem
A leitura que se faz, a partir dos títulos, é de que não parece que o exame será realizado em meio a uma pandemia - a não ser por uma notícia que menciona apenas o pedido da Defensoria Pública da União (e as outras solicitações? Principalmente as dos alunos!) para que as provas sejam adiadas e outra matéria que, em resposta, cita que o Enem não será adiado.
Uma das matérias publicadas pela Agência Brasil sobre o Enem (Foto: Reprodução) |
Fora isso, todo o movimento pela mudança da data da prova não recebeu destaque nas matérias. Basta uma rápida busca no Google para verificar, em outros veículos, diversas reportagens sobre os vários pedidos de adiamento:
Correio Braziliense: UNE e Ubes vão pedir o adiamento do Enem na Justiça
Metrópoles: MPF pede à Justiça adiamento da aplicação do Enem no Amazonas
Estado de Minas: Duda Salabert e PDT vão à Justiça pelo adiamento do Enem
Yahoo!: Estudantes pedem novo adiamento do Enem; MEC nega
Istoé Dinheiro: Estudantes pedem novo adiamento do Enem em meio ao avanço da pandemia no Brasil
UOL: Estudantes pedem adiamento do Enem por risco de contágio da Covid-19
G1: Enem 2020: secretários estaduais de Saúde pedem ao ministro da Educação que a prova seja adiada
Sem dar qualquer destaque, nos títulos, aos pedidos de estudantes - principais envolvidos no exame -, as notícias da Agência Brasil, em sua maioria:
- divulgam apenas os “trâmites” normais do exame (divulgação dos cartões de confirmação);
- destacam as medidas de segurança para a realização das provas (“Inep antecipa em meia hora o acesso aos locais de provas do Enem” e “Enem terá regras para evitar contágio pelo novo coronavírus”);
- orientam estudantes (“TV Brasil e Agência Brasil transmitirão aulões da Maratona Enem”, “Professores dão dicas para lidar com a ansiedade às vésperas do Enem” e “Plataformas online gratuitas podem ajudar na preparação para o Enem”).
Essas três últimas matérias, aliás, publicadas na semana anterior ao exame (que, sabe-se, exige uma preparação bastante antecipada) parecem tentar tirar o foco da situação, voltando o destaque aos auxílios disponibilizados aos estudantes. Assim, mais uma vez, a Agência Brasil deixa de lado seu caráter público.
Para não ficar só nos títulos…
Verificamos também os textos completos das matérias. Além das duas que se relacionam com o adiamento pelo título, outras duas citam ao longo do texto os pedidos de adiamento (“Inep antecipa em meia hora o acesso aos locais de provas do Enem” e “Enem terá regras para evitar contágio pelo novo coronavírus”), mas que aparecem como informações secundárias. E, na pirâmide invertida do jornalismo, o que é mais importante vem primeiro, logo, a discussão ficou em segundo plano.
Silêncios que dizem
Se a Agência Brasil mal falou sobre os pedidos de adiamento do exame, não precisamos nem dizer que não houve qualquer publicação sobre a morte do diretor responsável pelo Enem, general da reserva Carlos Roberto Pinto de Souza, por covid.
quarta-feira, 6 de janeiro de 2021
O que é o desenvolvimento econômico em Divinópolis?
Ana Laura Corrêa
Os vereadores eleitos em Divinópolis participarão, em fevereiro, de um workshop promovido pelo Sebrae, Fiemg e Grupo Gestor ‒ entidades ligadas aos empresários da cidade.
A Câmara e a Fiemg noticiaram em seus sites e distribuíram releases à imprensa sobre o evento, que, segundo os textos publicados, terá foco no “desenvolvimento econômico”.
Quando se fala em “desenvolvimento econômico”, a população é levada a crer que se trata de uma capacitação certamente benéfica, que trará crescimento para o município.
Mas é preciso questionar: o que se entende, neste caso, por desenvolvimento econômico, levando-se em conta a perspectiva dos responsáveis pelo evento?
Reunião dos representantes da Fiemg e Sebrae com o presidente da Câmara (Foto: Divulgação/Fiemg) |
‘Empreendedorismo’
Vejamos, por exemplo, um dos temas a ser abordado no workshop, segundo a notícia divulgada no site da Câmara e da Fiemg: a “educação empreendedora”.
É sabido que “empreendedorismo” tem sido um termo utilizado com recorrência para apagar a precarização do trabalho. O “empreendedorismo” aumenta o número de empregados, sim, mas de trabalhadores informais, que não têm nenhuma garantia de direitos. Desta forma, vale questionar, em que medida isso corresponde realmente ao desenvolvimento - que deveria se pautar além do econômico, mas vá lá - para a cidade.
Legislações
Na notícia publicada no site da Câmara consta que “serão debatidas as aplicações de diversas legislações como o Código de Posturas, Ambiental Municipal, Plano Diretor e Código Tributário”.
Serão debatidas mesmo, com espaço para diferentes pontos de vista? Ou serão atacadas, com propostas de alterações a bel-prazer dos empresários? Afinal, é um evento promovido por eles, que geralmente, na lógica do estado mínimo, querem mudar o que estabelece o Código Tributário, Plano Diretor, Plano Ambiental...
Qual o papel do vereador?
O texto divulgado pela Fiemg diz que “o objetivo principal do treinamento é capacitar os vereadores para que possam entender seu papel e assim fazer proposições e criar projetos de leis que poderão impulsionar o desenvolvimento de Divinópolis”. E que “vários temas serão tratados, como consórcio público, uso e ocupação do solo, educação empreendedora, entre outros”.
Obviamente, cada grupo social - incluindo os de empresários - tem seus interesses particulares e age de acordo com eles. Ainda assim, quando a questão avança ao debate público, para tratar da coisa pública e envolvendo instituições públicas, cabe questionar qual viés será dado a essa “capacitação”. Afinal, de qual ponto de vista os vereadores vão “entender seu papel e assim fazer proposições”? Apenas dos empresários? Mas os vereadores não são representantes do povo?
O presidente da Fiemg afirmou na matéria que se trata de uma oportunidade de os vereadores “conhecerem mais sobre o poder público e os reeleitos poderem se reciclar”. Ressalta-se, neste ponto, o fato de a federação das indústrias privadas querer apresentar o poder público para os edis eleitos. Qual propriedade sobre o assunto eles têm?
Engajamento de vereadores?
A notícia publicada pela Câmara e pela Fiemg ainda traz que o objetivo do evento é engajar os vereadores “nas temáticas relacionadas ao desenvolvimento econômico do município, à importância dos pequenos negócios e à construção de políticas públicas que gerarão mais e melhores empregos, elevarão a renda das pessoas e aumentarão o recolhimento de Divinópolis”.
Mais uma vez, é preciso questionar: quais temáticas são essas? Quem estabeleceu essas temáticas? Quais propostas de políticas públicas são essas - que, pelo visto, têm o efeito mágico de salvar a economia da cidade? Por que “engajar” os vereadores nesse workshop?
A quem interessa que eles se “engajem” em políticas que tratam da precarização do trabalho? Eles não eram representantes do povo? Poderiam também os movimentos sociais se reunir com os edis para propor um “engajamento” nesses movimentos, também com “imersão integral, palestras, dinâmicas, debates e oficinas”? Será que os vereadores topariam com tanta prontidão? Será que os movimentos não seriam vistos como “doutrinadores”?
“O presidente da Câmara, Eduardo Print Jr., considerou esta “uma excelente iniciativa que pode estimular o legislador a elaborar leis que geram um efeito prático mais imediato e com potencial de transformar para melhor a vida dos trabalhadores.”
Faltou o vereador explicar como entende que tais medidas poderão transformar para melhor a vida dos trabalhadores. Aguardemos.
Casa do Povo?
É preocupante que a “Casa do Povo” reproduza o discurso enviesado de “desenvolvimento econômico” sem questionamentos. Ou de que povo é essa Casa?
domingo, 3 de janeiro de 2021
Crime passional não, feminicídio: a cobertura midiática do caso do policial que matou a esposa
Ana Laura Corrêa
2021 começou já com um registro de feminicídio na região de Divinópolis. No dia 3 de janeiro, um policial militar, André Luís da Cunha, matou a esposa, Cassiana Almeida de Souza, e em seguida se matou. Na mídia divinopolitana, o Divinews ainda cobriu o caso como “tragédia passional”, sem utilizar o termo “feminicídio”.
Trecho da matéria do Divinews (Foto: Reprodução) |
O jornal Agora, por sua vez, também chamou o caso de “tragédia”, e sequer mencionou o termo feminicídio na matéria.
Matéria sobre o feminicídio publicada pelo Jornal Agora (Foto: Reprodução) |
O trecho “o casal seguia de carro sentido Divinópolis e quando estava próximo ao pedágio da MG-050 próximo a Itaúna, o veículo parou, ocorrendo as mortes” quase naturaliza o ocorrido, tendo em vista que, ao contrário do que traz o jornal, o carro não parou sozinho e as mortes não simplesmente “ocorreram”. Houve um crime e um sujeito responsável por ele, um policial militar.
Neste ponto, pelo menos, o Divinews é mais direto ao afirmar que o policial matou a esposa. Por que o jornal Agora não quis atribuir ao policial o assassinato?
As notícias sobre o feminicídio ocorrido em Divinópolis ainda utilizam o termo “tragédia”. Recorramos ao dicionário: qual o significado de tragédia? Segundo o Michaelis, tragédia é “acontecimento triste, funesto, catastrófico, que infunde terror ou piedade”.
O assassinato certamente é um acontecimento triste, no entanto, nomear o crime como uma tragédia parece tratar o fato como algo isolado e apagar a violência estrutural contra a mulher que ele traz. Assim, classificar o fato como feminicídio seria uma forma de dar visibilidade a esse cenário grave de violência contra a mulher, no entanto, nenhum dos dois portais observados fizeram isso.
Legislação e orientações
A lei do feminicídio está em vigor desde 2015 e a orientação sobre o fim do uso da expressão “crime passional” no jornalismo vem desde então. Apesar disso, em todo o país, conforme o relatório “Imprensa e Direitos das Mulheres: Papel Social e Desafios da Cobertura sobre Feminicídio e Violência Sexual”, elaborado pelo Instituto Patrícia Galvão ‒ organização feminista de referência nos campos dos direitos das mulheres e da comunicação ‒ analisou 1.583 matérias de feminicídios e estupros e verificou que:
“Na maioria das vezes em que os crimes são noticiados, os veículos de comunicação não humanizam as vítimas, tampouco colaboram para que a sociedade compreenda mais sobre as políticas públicas de enfrentamento à violência contra mulheres e sobre como o ciclo de violência pode ser rompido” (...) Prevaleceram matérias sobre a morte em si, sem informações sobre quem era aquela mulher, se já havia buscado ajuda, recorrido ao Estado para se defender de violências anteriores ou se tinha medida protetiva, entre outras questões que podem apontar falhas nas políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres”.
O Instituto Patrícia Galvão também desenvolveu um dossiê com orientações à imprensa sobre a cobertura da violência contra a mulher. O documento está disponível neste link.