As disputas em torno da regulamentação das plataformas digitais promoveram alianças inusitadas – mas não há surpresas
Por Gilson Raslan Filho
Nas últimas semanas, assistimos a uma escalada de acontecimentos, cujo palco central foi o Congresso Nacional brasileiro, em torno dos debates para a regulamentação das chamadas big techs, as quase onipresentes plataformas digitais.
Depois de aprovar a urgência para votação do Projeto de Lei (PL) 2630/2020, houve um recuo e o relator do Projeto, Deputado Orlando Silva (PCdoB/SP), pediu, e foi atendido, que a votação na Câmara dos Deputados fosse adiada.
Embora esteja cedo para avaliar as consequências políticas do adiamento, a ação foi considerada uma vitória de alguns atores que, ao fazerem um enorme estardalhaço nas redes sociais, conseguiram dominar o debate público.
Não pretendemos realizar, neste texto, uma análise em torno da necessidade ou dos eventuais perigos representados pelo PL; tampouco nosso objetivo é o esclarecimento sobre os termos do Projeto de Lei (que tem um resumo bastante didático feito pelo Núcleo Jornalismo).
Tampouco desejamos tensionar o debate sobre a guerra de versões - na verdade, um massacre por parte dos opositores da regulamentação. A despeito de o PL ter sido apresentado pelo Senador Alessandro Vieira, do PSDB de Sergipe, em 2020; ter chegado à Câmara do Deputados no mesmo ano e desde então vem sendo debatido na casa; mesmo assim, nas últimas semanas, os opositores conseguiram vincular a ideia de censura ao PL e, mais, que é uma proposta do governo e do “comunista” Orlando Silva para controlar mentes e corações dos “cidadãos de bem”.
Pretendemos, neste momento, realizar algumas reflexões em torno da inusitada, mas não inesperada, aliança para obstruir o debate sobre a óbvia e necessária regulamentação de setor central na vida social contemporânea e cujas regras são apenas aquelas ditadas pela lógica das gigantes da tecnologia e os bilhões arrecadados, sem qualquer transparência, em publicidade digital impulsionada por sensacionalismo, radicalismo, campanhas de ódio – todo tipo de material publicitário que torna o consumidor e o cidadão vulneráveis, numa ameaça óbvia ao estado democrático.
Ao lado de congressistas bolsonaristas, de movimentos fascistas, da bancada evangélica no Congresso (que monopoliza, ruidosamente, a representação do crescente neo-pentecostalismo no Brasil), de produtores de conteúdos de extrema-direita, como o Brasil Pararelo, e de plataformas globais poderosíssimas, como Google, Meta (dona do Facebook e do Instagram) e Spotify, que gastaram rios de dinheiro em campanhas de desinformação para confundir a opinião pública, estiveram no mesmo lado da trincheira alguns auto-denominados jornalistas independentes, que fazem um tipo de jornalismo focado quase exclusivamente em opinião e comentários do que foi noticiado em outros veículos de imprensa quase sempre do mainstream midiático, mas geralmente associados a posições de esquerda.
O argumento dos blogueiros de esquerda era de que o PL privilegiava o financiamento do Grupo Globo e, ao retirar recursos dos pequenos produtores, ameaçava a pluralidade de vozes e dava, especialmente à Globo, o monopólio da verdade.
Sem considerar que o argumento desses valorosos combatentes do “jornalismo de esquerda” (e é preciso dizer: são alguns, não todos) é baseado em uma ficção e que eles estão aflitos à toa, uma vez que não há nada no PL que justifique a histeria, parece que a posição evidencia algo mais, digamos, pantanoso.
Numa rápida leitura na maioria desses produtores de conteúdos, é fácil perceber que eles são muito diligentes em publicar comentários gerais, a partir de suposições de fácil identificação ideológica, para um público consumidor ávido em respostas rápidas para suas aflições. Nessa medida, é difícil distinguir, para além do espectro ideológico, a produção “de esquerda” daqueles outros, “de direita”: em ambos, vemos sensacionalismo, teorias conspiratórias, narrativas fantásticas – tudo misturado, com uma finalidade que parece evidente: produzir engajamento e, consequentemente, monetização pelas big techs – algo que já foi abordado pelo Pluris (aqui). E os fatos? Ora, os fatos que lutem!
Engana-se, porém, quem entende que é preciso combater esse tipo de jornalismo, focado em click-baits, em meras iscas para consumidores ávidos - e, por conseguinte, avesso ao exercício pleno da cidadania. Não! Como temos defendido aqui, o jornalismo precisa fazer jornalismo – e cada vez mais atores precisam entrar na arena pública.
Embora não seja pouco a urgência em regulamentar as plataformas digitais, reformar o jornalismo é tão urgente quanto. Do contrário, teremos no máximo uma regulamentação formal, sem efetivo estado democrático.