Participação de Pedro Cardoso na CNN expõe a profunda crise por que passa o jornalismo no Brasil
Por Gilson Raslan Filho
Há alguns dias, circulam nas redes sociais cortes de vídeo da participação, no dia 24 de março, do ator e comediante Pedro Cardoso na filial brasileira da rede de TV fechada CNN. Cardoso, que interpretou o hilário malandro Agostinho Carrara da segunda versão da série A grande família, veiculada por 13 anos, até 2014, na Rede Globo de TV, provocou mal-estar na bancada de jornalistas, escalada para debater os assuntos do dia e que convidou o ator para participar.
As razões para a participação de Pedro Cardoso são um grande mistério – e uma mostra da forma aleatória, para sermos, neste início de reflexão, modestos, com que o jornalismo brasileiro “profissional” tem sido produzido. Esse foi, aliás, um dos muitos problemas abordados pelo ator.
A bancada do CNN Arena discutia havia alguns minutos o plano do grupo de crime organizado PCC para matar autoridades brasileiras, incluindo o ex-juiz e agora senador da República Sérgio Moro. O mediador da bancada então deu a palavra ao ator, que iniciou uma fala articulada e dura, muito dura e metadiscursiva contra o tema, os jornalistas, o canal e sua própria participação como debatedor naquele programa.
De início, o ator questionou a razão de uma “figura irrelevante” e “desprezível” como Sérgio Moro, alguém que “como juiz, combinou com o acusador” formas de prender uma pessoa – nesse caso o Presidente Luís Inácio Lula da Silva. Disse ainda que aquele programa, uma “arena de debates”, era uma fraude, pois produzia monólogos autocentrados, nunca debates e, por consequência, “imobilidade do pensamento”.
Os jornalistas, atônitos, chegaram a argumentar que aquela seria apenas uma posição do ator; que, da mesma forma como ele não gostava de Moro ou do ex-presidente Jair Bolsonaro, havia quem não gostasse de Lula. Pedro Cardoso voltou a carga: os fatos não permitem que haja a menor possibilidade de colocar em um mesmo patamar moral e discursivo quem provocou tanto mal à democracia brasileira e quem, mesmo errando, a defende.
Em seguida, questionou a própria participação naquele programa: por que um ator comediante seria convidado para debater temas do cotidiano político brasileiro? Quais seriam as “edições invisíveis” aos telespectadores que construíam discursos da CNN, de seus jornalistas, seus editores e seu proprietário, o bilionário empresário mineiro, notório apoiador de Jair Bolsonaro, Rubens Menin?
Os jornalistas tentaram manter a placidez, mas a analistas mais atentos o estrago já havia sido feito: aquele esforço por igualar o inigualável; aquela luta por estabelecer uma simetria quando os fatos não o permitem só demonstram que o jornalismo autointitulado profissional brasileiro vive uma crise sem precedentes, entre uma falsa deontologia do “dois-ladismos”, a espetacularização e o excesso de opinião, sem necessariamente se basear em fatos, circulante nas redes sociais.
Os fatos, aliás, nos dias que se sucederam, parecem ter dado razão a Pedro Cardoso.
No dia 24 mesmo, uma das jornalistas mais visadas pelo fascismo então no poder, Vera Magalhães, disse, em sua coluna de O Globo, que Lula se iguala ao pior do bolsonarismo.
No dia 25, sexta-feira, Sérgio Moro, em sua conta no Twitter, alimentou a suspeita de que o presidente Lula talvez tenha razão quando diz que o tal plano para assassiná-lo cheira a armação, em uma mensagem grosseiramente politiqueira, mas que reitera seu modus operandi.
Na segunda-feira, dia 27, o advogado Rodrigo Tecla Duran, que há anos pedia para ser ouvido e naquele dia teve seu depoimento colhido pelo juiz Eduardo Appio, disse ter provas de que Sérgio Moro cobrou propina para não implicar investigados nos processos da Lava-Jato. A mídia “profissional”, que nunca teve a curiosidade de perguntar o que o advogado tinha a dizer, deu apenas notas pouco destacadas para o fato e obviamente não escalou equipes para apurar sobre as denúncias.
No dia 30, véspera do aniversário do golpe militar de 1964, editorial da versão impressa da Folha de S.Paulo afirmou que o bolsonarismo poderia ser uma oposição saudável ao “petismo” se deixasse de ser... bolsonarismo. Mas que isso “infelizmente” não aconteceria. O editorialista correu para mudar o texto na versão online – e retirou o “infelizmente”.
No meso dia 30, a CNN cobria de forma ostensiva e como fato relevante a chegada ao Brasil e a frustrante recepção – para os planos do ex-presidente fascista que enfrenta um sem número de acusações, desde genocídio a vários esquemas de corrupção – de Jair Bolsonaro depois de sua suspeitíssima fuga para os EUA.
Os fatos, todavia, não têm interessado ao jornalismo profissional.