sábado, 21 de agosto de 2021

Interposição

Neste texto, o Pluris te convida a brincar de adivinhação. O que será que todos os eventos narrados têm em comum?

Por Maria Clara Ribeiro




Encontro com a CIA

Sem divulgação prévia, o chefe da Agência Central de Inteligência estadunidense (CIA) esteve em Brasília para reunião com o governo no dia 01 de julho deste ano. A visita do primeiro emissário do governo de Joe Biden, William Burns, foi mantida em sigilo até que o mesmo chegasse em terras brasileiras, quando anunciaram que seriam tratados temas de segurança regional, como o reforço de ofensiva anti-China. 

Enquanto membros do governo comemoravam a agenda como sinal de cooperação, apesar de se demonstrar o contrário, o deputado Glauber Braga (PSOL-RJ) cobrava informações sobre vinda do diretor da CIA ao Brasil.  

A persistência da pauta em segredo já havia sido criticada oficialmente pela Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, em ofício direto ao Itamaraty, mas ganhou olhares através da exigência de Braga: “Intervenções desestabilizadoras no Brasil são de amplo conhecimento”. No requerimento, o deputado cita também o golpe militar, 1964, a espionagem contra Dilma Rousseff, 2013, e a Operação Lava Jato. Entretanto, apesar das cobranças e circulação do acontecimento, nenhuma medida foi tomada. 


Falas sobre fraude

Após 25 anos de inserção de urnas eletrônicas nas eleições brasileiras, tidos como “consolidados”, o uso dessa tecnologia entrou em debate. A discussão e desconfiança foi liderada por Bolsonaro, acusando frequentemente que o modelo não seria confiável e alegando fraudes nas últimas eleições, em 2018 (sim, a que se elegeu). 

Desta vez, com maior movimentação, convocou seus seguidores para uma apresentação de seus posicionamentos acerca do tema no dia 29 de julho. Diferente do que costuma fazer, apresentou argumentos falaciosos, já desmentidos previamente por especialistas de ambas posições políticas, como: “voto é inauditável”; eleito em primeiro turno; Aécio eleito em 2014; e falta de segurança no relatório oficial da Polícia Federal. 

Mas, em meio a suas falas, afirmou não ter provas sobre fraude nas eleições, apenas indícios. Tem-se nítido que a ideia do atual presidente era (é), em caso de acusação de fraude no sistema eletrônico das urnas, os votos em papel pudessem retornar para que os votos pudessem ser apurados manualmente.


Nova visita: Conselho de Segurança Nacional dos EUA

Após um mês do “encontro surpresa”, no início de agosto (05), o Conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Jake Sullivan, e sua comitiva desembarcaram em território brasileiro. A visita se justifica em discussões acerca das mudanças climáticas e as medidas combativas nacionais. Esta reunião foi inédita: a primeira vez que um representante direto da Casa Branca, do governo de Joe Biden, se encontrou com Jair Bolsonaro. 

Além das reuniões com os governadores, houve conversa particular com Jair Bolsonaro e os ministros das Relações Exteriores e da Defesa. Seria uma postura de abertura com Bolsonaro? Não. A explicação é simples, haja vista que o atual presidente estadunidense não manteve nenhum discurso ou relação direta com o gestor brasileiro – situação que se prolonga desde os resultados da última eleição dos EUA.  


Voto impresso

Em derrota ao desejo de Bolsonaro, a Câmara rejeitou e arquivou a PEC do voto impresso: para passar, o texto precisava de 308 votos, mas foram 229 favoráveis e 218 contrários. A votação encerra tramitação da proposta e mantém o formato atual de apuração – através das urnas eletrônicas. A PEC 135/2019 foi redigida pela deputada federal Bia Kicis (PSL-DF) e tem como relator o deputado Filipe Barros (PSL-PR), ambos integrantes da base governista atual. 

Mas, ainda mais interessante, o Governo Bolsonaro liberou R$1 bilhão de emendas às vésperas da análise da PEC, liberando emendas individuais pelo mecanismo do 'cheque em branco'. Além disso, sem surpreender ninguém, após derrota do voto impresso, o presidente voltou a criticar Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e afirmar que eleição de 2022 não será confiável, rompendo compromisso feito com o presidente da Câmara - de que iria aceitar qualquer resultado legal, como em caso de a proposta ser rejeitada. 


Encontro nos EUA; relatório da PF

Nos últimos dias, a mídia brasileira noticiou dois acontecimentos, esses sim, claramente articulados.

O deputado Federal Eduardo Bolsonaro, filho do Presidente, pediu licença de seu cargo para (mais) uma visita aos EUA, onde se encontrou com Steve Bannon, personagem até pouco tempo obscuro, mas que ganhou notoriedade ao se revelar como o cérebro por trás da ascensão da extrema direita e nov fascismo em diversos países  do mundo.

Bannon era o dono da empresa de análise profunda de dados Cambridge Analytica, que esteve por trás das eleições de Donald Trump e do movimento Brexit, de saída do Reino Unido da Comunidade Europeia. O poder e o alcance de manipulação de redes sociais pela Cambridge Analytica pode ser visto no documentário Privacidade hackeada, do NetFlix. E os planos de Bannon para o mundo podem ser visitados na impressionante pesquisa do etnólogo estadunidense Benjamin Teitelbaum, publicada no Brasil com o título de Guerra pela eternidade, pela Editora Unicamp.

Depois da visita, Steve Bannon declarou que iria atuar nas eleições brasileiras de 2022, chamada por ele de “a mais importante do mundo”, pois que teria em disputa o “maior comunista do mundo”, o ex-presidente Lula.

Dias depois, a mídia teve acesso a um relatório da Polícia Federal, enviado ao ao Tribunal Superior Eleitoral, segundo o qual canais bolsonaristas nas redes sociais atuam com o objetivo de “diminuir a fronteira entre o que é verdade e o que é mentira” e usam como estratégia ataques aos veículos tradicionais de informação (jornais, rádio, TV etc). Esse método também foi aplicado na campanha contra as urnas eletrônicas.

Segundo a PF, apoiadores do presidente Jair Bolsonaro replicam uma estratégia de comunicação utilizada nas eleições de 2016 nos EUA, atribuída a Steve Bannon, ex-estrategista de Donald Trump, e também na eleição presidencial vencida por Bolsonaro em 2018.


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sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Quem é Paulo Freire, segundo a mídia brasileira

Ana Laura Corrêa




Em 2021, o mundo se prepara para as comemorações do centenário de nascimento do pedagogo brasileiro Paulo Freire, um dos mais destacados brasileiros no mundo. De acordo com levantamento do MIT (Massachusetts Institute of Technology), Paulo Freire é um dos filósofos do século XX mais lidos em todo o mundo. Ele é também autor da terceira obra de ciências sociais e humanas mais citada do mundo ‒ Pedagogia do Oprimido ‒, segundo a London School of Economics.


No Brasil, acadêmicos costumam reconhecer seu nome e sua estatura ‒ mas, nos últimos anos, Paulo Freire tem circulado nos grupos de apoiadores do movimento de extrema direita que venceu as eleições em 2018 ‒, sempre associado ao verbete “comunista” (como um xingamento, bem entendido).


Com tanta evidência e polêmica, era de se supor que a mídia brasileira voltasse o mínimo de atenção sobre sua trajetória, sua obra e suas ações.


Mas será que o educador tem esse espaço de destaque na mídia brasileira?


Pesquisamos, então, algumas notícias publicadas sobre Freire, para verificar o que os textos dizem sobre o autor e sua obra.



Três informações


Na matéria “Bolsonaro chama Paulo Freire de 'energúmeno' e diz que TV Escola 'deseduca'”, publicada pelo G1, há três informações sobre Freire: 1) a de que ele foi declarado o patrono da educação brasileira em 2012; 2) de que o educador desenvolveu uma estratégia de ensino baseada nas experiências de vida das pessoas, em especial na alfabetização de adultos; 3) e de que uma das obras do autor, "Pedagogia do Oprimido", é o único livro brasileiro a aparecer na lista dos 100 títulos mais pedidos pelas universidades de língua inglesa consideradas pelo projeto Open Syllabus.

Na sequência, o texto ainda afirma que a “metodologia de Paulo Freire vem sendo criticada por integrantes do governo Jair Bolsonaro, que atribuem ao método o baixo desempenho escolar do país em avaliações da qualidade da educação”. No entanto, não há muitos detalhes sobre o método para além da informação presente no parágrafo anterior, de que é “uma estratégia de ensino baseada nas experiências de vida das pessoas”. Vale ressaltar ainda, o que a reportagem não traz, que a metodologia é utilizada pontualmente em poucas escolas no país.


Textos repetidos

Outras duas matérias publicadas pelo G1 em 2019 ‒ Capes retira homenagem a Paulo Freire do nome de plataforma dedicada à formação de professores e Professores mostram livro de Paulo Freire ao tirar foto com ministro da Educação ‒, embora tenham sido divulgadas em meses diferentes (uma em maio e outra novembro), trazem um mesmo intertítulo sobre Paulo Freire, com três parágrafos iguais.

O primeiro parágrafo traz informações sobre o contexto onde foi desenvolvido inicialmente o método Paulo Freire. Já o segundo apresenta um breve resumo de nove linhas sobre essa metodologia; e o terceiro tem informações básicas sobre o autor.


O pensamento de Paulo Freire

Apesar da relevância intelectual e prática da obra de Paulo Freire, o educador recebe somente alguns poucos parágrafos na mídia brasileira.

 Por que não interessa à imprensa divulgar quem é o autor e qual o conteúdo de sua obra?

Cabe questionar, também, em tempos de ódio ao educador e sua obra, qual conhecimento as pessoas têm sobre Paulo Freire ‒ se é que têm ‒ e de onde vem esse conhecimento, afinal, a grande mídia não parece se interessar muito pelo assunto.

Os textos que encontramos sobre “Quem é Paulo Freire” estão presentes especialmente em veículos de mídia segmentados, voltados à educação, como Guia do Estudante e Brasil Escola.

Vale questionar ainda qual importância teria, nas notícias, um pesquisador brasileiro ‒ mas não progressista e nem das ciências humanas, e sim das exatas, biológicas ou naturais ‒ que tivesse a mesma relevância que Paulo Freire em todo o mundo. Acreditamos que a cobertura midiática seria outra.

Seja como for, é espantoso como tantos veículos de comunicação, que reivindicam sua importância e destaque em relação aos divulgadores de “fake news”, não se interessam pelo fenômeno. Mais uma vez, nós, do PLURIS, salientamos que falta à mídia levantar da cadeira e olhar para fora da janela para verificar se cai água do céu, em um momento quando uns dizem estar chovendo e outros que vivemos a pior seca.


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quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Psiquiatria brasileira: uma história marcada pelo horror


Por Camila Machado




Os problemas relacionados à saúde mental por muito tempo foram tratados não como uma doença que precisava de cuidado e tratamento, mas  como um mal social que incomodava e atrapalhava o dia-a-dia das comunidades. O foco era retirar as pessoas psicologicamente instáveis de cena, isolando-as do restante da sociedade e nesse contexto surgem os manicômios. No Brasil, as primeiras ações relacionadas à saúde mental não diferem muito das que foram aplicadas em outros países. E para entendermos um pouco melhor como esse tema era tratado, tentarei ao longo deste texto fazer uma breve retrospectiva da loucura no Brasil e seus desdobramentos.


Ainda no Brasil colonial, já se diferenciavam os pacientes entre quem podia ou não pagar pelos tratamentos e com os cuidados referentes à saúde mental isso não era diferente. Tinha acesso aos cuidados especializados apenas quem podia pagar e o restante era levado para a caridade. O desenvolvimento dos modelos de tratamento de doenças mentais foi ainda mais lento do que os de outras enfermidades e os cuidados eram prestados, em sua maioria, por curandeiros - inclusive sacerdotes católicos, os jesuítas. Os médicos com formação acadêmica eram raros e até o acesso a cirurgiões e barbeiros licenciados era difícil. Não havia especialistas em psiquiatria, mas hospitais como a Irmandade das Santas Casas de Misericórdia abrigavam enfermos pobres e os não pobres que fossem abandonados por algum motivo. Apenas entre o final do século XVIII e início do XIX, o avanço do conhecimento científico e da consciência social impulsionaram a medicina para um formato mais humanístico e menos higienista em relação às doenças mentais. 


No Brasil império, com a transferência da coroa portuguesa, em 1808, começa o processo de urbanização e com ele novos problemas vieram à tona: os loucos. Estes que até então eram vistos com certa “naturalidade” nas pequenas comunidades rurais se tornam visíveis e perturbadores no meio urbano. Nesse contexto, houve a inauguração do Hospício do Rio de Janeiro. Visto como uma iniciativa modernizadora para a época, ele seguia o modelo francês e serviu de parâmetro para os posteriores.


Em 1920, houve então a ampliação e o aprofundamento da influência dos   princípios eugênicos no âmbito da psiquiatria brasileira, que passaria cada vez mais a caracterizar-se pelas internações de caráter preventivo.  Quadro esse que levou, em 1923, à criação da Liga Brasileira de Higiene Mental, um programa de intervenção no espaço social com características eugenistas, xenofóbicas, antiliberais e racistas, como descrito por Eliane Maria Monteiro da Fonte em seu artigo “Da institucionalização da loucura à Reforma Psiquiátrica: as sete vidas da agenda pública em saúde mental no Brasil” publicado em 2012. Os fatores psíquicos eram vistos como produtos da raça ou do meio e as palavras de ordem desse período eram: controlar, tratar e recuperar. 

Em 1940 as ações político-assistenciais eram iniciadas e representavam a “modernização dos tratamentos”, nesse período 80,7% dos hospitais psiquiátricos no Brasil eram públicos e os asilos possuíam um papel orientador da assistência psiquiátrica.


Entre os anos de 1940 e 1950 houve uma grande expansão de hospitais psiquiátricos no país. Contudo, a criação de novos hospitais não amenizou a situação caótica que atingia o sistema. Na década de 1950 as instituições viviam em total abandono e com excesso de pacientes, tanto que esse quadro foi posteriormente utilizado como argumento incontestável para a introdução da privatização (FONTE, 2012).

A década de 1960 foi marcada pelo questionamento e modificação do tratamento asilar no mundo, porém, no Brasil tivemos um movimento contrário: uma expansão da rede hospitalar. Com o golpe militar de 1964 a assistência antes destinada a doentes mentais indigentes se estende e passa a cobrir a massa de trabalhadores e seus dependentes. Nesse período consolida-se a privatização da assistência, com contratação de leitos em hospitais e clínicas conveniadas, remunerados pelo setor público (FONTE, 2012).


Indústria da loucura


O surgimento dos psicofármacos além das documentadas consequências positivas, teve  também muitas consequências nefastas, desumanas e anti econômicas- do ponto de vista das finanças do Estado. Acerca disso, o psiquiatra Miranda-Sá Jr. diz que a  “assistência psiquiátrica pública” se dividiu entre aquela patrocinada pelo Estado e outra, mantida pela previdência social pública, que se multiplicou movida única ou predominantemente pela busca de lucro. O doente mental se transformou em uma fonte inesgotável de lucro para empresários que viviam dessa condição”.


A fala de Miranda-Sá se refere ao grande aumento, por exemplo, do grande aumento de internações em hospitais privados, na década de 1960, o que fez com que esse período passasse a ser denominado como o da Indústria da Loucura. Os leitos psiquiátricos privados saltaram de aproximadamente 14 mil, no início da ditadura militar, para mais de 70 mil em 1970. Isso porque o chamado “milagre econômico” da época escondia a precarização das condições e a intensificação do trabalho, o que teve como consequência um maior adoecimento da classe trabalhadora. Ao mesmo tempo escondia também a política de privatização da época que enriquecia empresários donos das instituições psiquiátricas, financiadas com dinheiro público.


Ainda que no Brasil a assistência em saúde mental tenha sido inicialmente implementada pelo setor público (até o início dos anos 40, havia no país cerca de 24 mil leitos psiquiátricos, dos quais apenas três mil eram particulares), depois do Golpe Militar de 1964, o sistema de saúde passou por severas modificações e a área da psiquiatria, quase que em sua totalidade, passou a ser gerida por empresas privadas. Na época do regime militar, o número de leitos no sistema privado passou para 56 mil e os investimentos na saúde mental pública foram reduzidos. 


Desviat (1999) em seu livro “A reforma psiquiátrica”, expressa como determinações econômico-políticas estão intimamente relacionadas ao enclausuramento da loucura. Segundo o autor, em momentos de crise econômica, a psiquiatria é acionada para controlar desordens, excluir os que incomodam e manter a ordem produtiva, além de geralmente ser acompanhada de outras leis repressivas. Foi assim na chamada “Grande Internação” que ocorreu na passagem do feudalismo à sociedade capitalista, como apresenta Foucault em “A História da Loucura”. A mesma tendência se aplica aqui no no Brasil na passagem da Colônia ao Império e volta a se apresentar no aprofundamento liberal da ditadura militar.


No regime militar o método adotado era o de incentivar o maior número de internações prolongadas possível, em que cada paciente era mantido por uma diária paga pelo poder público. Assim a indústria da loucura se firma e contribui fortemente para a consolidação do sistema asilar no Brasil.


Para entendermos de forma mais clara como essa indústria se estabeleceu e sua abrangência, olhemos para alguns dados: em 1964, havia 79 hospitais psiquiátricos no Brasil, em 1985 este número aumentou para 453, sendo deste total apenas 10% instituições públicas. Nessa época, os gastos com saúde mental consumiam a maior parte da verba destinada à saúde no país, ultrapassando mais de um bilhão de dólares por ano. Os militares financiavam a construção e a infraestrutura dos hospitais psiquiátricos desde que essas instituições aceitassem pessoas que eram consideradas ameaças ao regime militar. Segundo dados do Ministério da Saúde, nos anos 1970, 1980 e início dos anos 1990, ocorriam em média 600 mil internações por ano, com uma média de 15 a 20 mil mortes por ano (BUENO, 2004).




Holocausto Brasileiro 

É impossível falar da história da psiquiatria brasileira e da indústria da loucura sem considerar um dos mais cruéis exemplos deste modelo hospitalocêntrico que é o caso do Hospital Colônia de Barbacena/MG. O hospital fundado em 1903 com capacidade para 200 leitos chegou a 1961 atingindo a marca de cinco mil pacientes. A superlotação que expunha milhares de pessoas a condições desumanas foi um escândalo mundial e ficou conhecido como “Holocausto Brasileiro”. O hospital deixa de ser um um ambiente de cura e passa a ser um dos principais “abrigos” de presos políticos da ditadura militar.  


A superlotação que já era uma realidade na década de 30, ganhou proporções ainda mais absurdas com a mudança de critérios médicos para que a instituição passasse a receber também homossexuais, militantes políticos contrários ao regime, mães solteiras, alcoólatras, pessoas em situação de rua, pessoas sem documentos e todos os tipos de indesejados, inclusive, doentes mentais. 


Todos os 16 pavilhões da instituição foram marcados por atos desumanos.  Além da superlotação, não havia água encanada nem comida suficiente para todos, muitos internos se banhavam e bebiam no esgoto. A tortura marcava os dias de todos os internos da Instituição: aquelas pessoas eram enviadas para Barbacena em em trens de carga,  quando chegavam passavam por ‘banho de desinfecção’, tinham a cabeça raspada, eram uniformizados assim desumanizados. A Colônia de Barbacena nunca foi um hospital psiquiátrico, mas sim um depósito de pessoas socialmente indesejadas. Um local de tortura, superlotação, abandono, crueldade e condições subumanas que ceifaram cerca de 60 mil vidas, isto até o fim dos anos 80.


Infelizmente, foi necessário este e outros genocídios para que a modelo de atendimento em manicômios fosse seriamente questionada pela sociedade brasileira. E uma reforma psiquiátrica foi instaurada rompendo décadas depois com a “indústria da loucura”. Mas, esses são tópicos para a nossa próxima discussão. Na próxima semana o PLURIS volta com nossa série sobre a psiquiatria brasileira, relembrando como as reformas e mudanças nos tratamentos psiquiátricos se deram no Brasil e os desdobramentos delas.



Referência consultada para a construção deste texto que vale a pena ser lida:

FONTE, Eliane Maria Monteiro da. Da institucionalização da loucura à Reforma Psiquiátrica: as sete vidas da agenda pública em saúde mental no Brasil. Artigo - Estudos de Sociologia, vol.1 N.18. Pernambuco, 2012. 


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São esses os jovens que querem a tomada de poder?

Por que a pandemia ainda não acabou...


Por Brígida Magalhães 





Festas, eventos, viagens e, principalmente, ele não. O avanço da vacinação contra a Covid-19 camufla os reais avanços do vírus pelo Brasil e traz uma aparente sensação de normalidade. Após um ano e cinco meses de exaustão, com um cenário de extrema pobreza avançando no país e quase 600 mil óbitos por coronavírus, conforme dados do Ministério da Saúde, até o último sábado, 14, precisamos refletir: esse é o novo normal? 

Na altura do campeonato parece óbvio dizer que a pandemia ainda não acabou e esperar que todos entendam. Mas é preciso repetir porque, pelo visto, uma das sequelas desse vírus é o esquecimento precoce: a pandemia ainda não acabou. Sim, a vacinação avança no país e conforme levantamento conjunto das Secretarias de Saúde, até o momento, 54,06% da população brasileira já recebeu a primeira dose. Em Minas Gerais, 52,24% também já receberam a primeira dose. Mas é importante ficar atento já que, apesar do avanço, apenas 22,81% dos mineiros estão totalmente imunizados. E, enquanto isso, essas e outras pessoas que não tiveram tempo de receber nem a primeira, continuam morrendo, além de muitas outras que não tiveram tempo de ver a primeira pessoa do país se imunizar. 

Os dados estão lá. As perdas comprovam o nosso cenário. Em tese, sabemos que a situação não se resolveu. Mas porque, então, as pessoas estão relaxando? Com o avanço das variantes, incluindo a Delta, especialistas defendem revisão de flexibilizações. Em reportagem para a CNN Brasil, a epidemiologista Ethel Maciel explica que, por exemplo, Israel já está com 80% da população vacinada, mas segue com aumento expressivo de casos e internação. É preciso aprender com os outros países.

Aglomerações, sem uso de máscaras e, principalmente, ele não. O que move essa onda de irresponsabilidade geral? 

Em 2003, o filósofo e historiador camaronês Achille Mbembe cunhou o termo necropolítica, afirmando que “a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer”. É nesse conceito que encaixamos a política de morte do desgoverno do Bolsonaro, caracterizado por medidas e discursos negacionistas.

No entanto, seguir justificando que a incompetência na condução da Covid-19 é única e responsabilidade do governo Bolsonaro ou é sintoma ou é má fé. “Sintoma porque, para uma parte da população, pode ser demasiado assustador aceitar a realidade de que o presidente escolheu disseminar o vírus”; e “má fé é compreender o que está acontecendo e, mesmo assim, seguir negando porque convém aos seus interesses, sejam eles quais forem”, argumenta Eliane Brum em sua coluna para a El País.

Mais doloroso do que ver e viver com a carga dos conservadores cristãos bolsonaristas, é ver gente como a gente, que declara estar do mesmo lado das trincheiras, agindo como age. Alternativo, vegetariano e democrático. Jovens se aglomeram irresponsavelmente. Mas o curioso é que esses mesmos jovens compartilham das ideias do lugar, são “alternativos”, conscientes, militam nas redes sociais e, inclusive, promovem e apoiam manifestações contra o governo atual. É um paradoxo. Não importa o seu posicionamento político. A verdade é que o negacionismo existe para todos os públicos. São esses jovens, que acordaram ontem e se disseram contra o governo atual, que querem tomar o poder? Porque a pandemia ainda não acabou e eles seguem do lado dos negacionistas.


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quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Onde estão os dados?


As subnotificações da LGBTfobia no Brasil

Por Talita Brandão

"Ninguém prestou nenhum tipo de socorro a ela. Todo mundo viu o menor atirar, machucá-la com a pá, arrastar e jogar o corpo no rio. O corpo dela só foi retirado no dia seguinte. As pessoas viram, sabiam, mas nada fizeram"- Euricélia Nogueira

Está foi a declaração da delegada Nogueira, sobre o assassinato de Crismily Pérola, mulher trans de 37 vítima de um crime “por puro ódio” no dia 5 de julho deste ano.  Também conhecida como “Piu Piu”, Crismily era cabeleireira e segundo sua família já sofria violência física lgbtfóbica antes da tragédia.  

Infelizmente Piu Piu faz parte de uma realidade brasileira violenta e assustadora. Segundo levantamento feito pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) 80 pessoas transexuais foram mortas apenas no 1° semestre de 2021.

De acordo relatório do Grupo Gay da Bahia (GGB) divulgado em 2019 a cada 23 horas um LGBTQIA + morre de LGBTfobia. Em 2020 o relatório GGB contabilizou 224 homicídios e 13 suicídios. 

As estatísticas do Estado

O Brasil é o país que mais mata pessoas LGBTQIA + no mundo. Porém você reparou que todos dados mostrados até agora partem de entidades da sociedade civil? Estas iniciativas contabilizam as mortes violentas de LGBTQIA+ a partir de casos divulgados pela imprensa, elas têm um papel essencial no combate à LGBTfobia. Ainda assim, esta responsabilidade não deveria ser somente destas organizações.

Foto reprodução. Parada LGBTQIA+ de São Paulo.

Na esfera pública os dados para mapear crimes contra pessoas LGBTQIA + apresentam subnotificações, como é o caso do Anuário Brasileiro de Segurança Pública divulgado no último mês. O anuário é baseado nas informações fornecidas pelos órgãos de Segurança Pública do país, segundo o relatório “Direito trancados no armário: LGBTFobia e racismo no Brasil”, tais subnotificações podem ser evitadas com inserção de políticas públicas.

“Como destacado na edição anterior deste Anuário, há meios para contornar dificuldades inerentes à identificação de vítimas LGBTQI+ a serem empregados por profissionais da Saúde e da Segurança Pública, que poderiam ser incorporados enquanto protocolos de investigação, contudo sua implementação requer vontade política. Os dados oficiais expressam aumento nos registros de lesão corporal dolosa (20,9%), homicídio (24,7%) e estupro (20,5%) de LGBTQI+, todos superiores a 20%. Os dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais, contudo, sinalizam para um aumento significativo (41%) no número absoluto de mortes de pessoas trans auferido pela organização, que saltou de 124 em 2019 para 175 em 2020 (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2021).” . Explica Dennis Pacheco no relatório. 


A pesquisa não obteve informações sobre os homicídios dolosos contra pessoas LGBTQIA + em 8 estados, entre eles Minas Gerais. A pasta mineira declarou sobre a subnotificação que "Trata-se de uma informação autodeclarada e que não é de preenchimento obrigatório, o que dificulta a extração das estatísticas".

Entre as barreiras encontradas pelo Anuário para o reconhecimento institucional da criminalização da LGBTFobia, foram identificadas a falta de vontade política das instituições e a falta de produção de dados. Assim como o caso de Crismily Pérola, no mapeamento institucional destes crimes de ódio os órgãos viram, sabiam, mas nada fizeram.

Quais as consequências?

Sem dados precisos sobre a comunidade LGBTQIA + as políticas públicas para o enfrentamento do preconceito não são aplicadas ou não apresentam a qualidade necessária para inclusão efetiva da população queer brasileira.

Pesquisas como o  Anuário Brasileiro de Segurança Pública são importantes para que o contexto social do Brasil seja compreendido. É a partir das estatísticas que as necessidades da população são identificadas, com elas os direitos humanos são assegurados.


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terça-feira, 10 de agosto de 2021

A obrigação do jornalista é olhar pela janela

Por Ana Laura Corrêa


“Se uma pessoa diz que está chovendo, e outra diz que não está, a obrigação do jornalista não é citar os dois lados, mas olhar pela janela e descobrir a verdade.”


É com essa famosa frase de Jonathan Foster, professor de jornalismo da Universidade de Sheffield, no Reino Unido, que iniciamos este texto para tratar da cobertura da mídia sobre a retomada das aulas presenciais na rede municipal de ensino em Divinópolis.


A volta dos alunos às escolas ocorrerá a partir de 4 de agosto. O retorno, no entanto, deve ser cercado de cuidados por parte dos estudantes, pais ou responsáveis, e instituições de ensino.


Mas quais cuidados são esses? A mídia não fala.

A volta, neste momento, é segura? Não há nem sinal dessa discussão.


Verificamos as matérias publicadas por três veículos de comunicação da cidade: Divinews, Jornal Agora e Sistema MPA. Os textos são adaptações de um release distribuído pela Prefeitura.


De acordo com as matérias, “A retomada das aulas presenciais será realizada com turmas reduzidas, carteiras afastadas e ambientes higienizados, de acordo com os protocolos sanitários ‒ em cada unidade escolar, há comissão interna para acompanhar o cumprimento das normas”.


E é aqui que entra a frase do início deste texto. Afinal, embora a Prefeitura tenha escrito em um release que está seguindo, em tese, todas as normas de prevenção, será que tais ações estão sendo/serão efetivamente colocadas em prática?


Os três textos citam uma cartilha “Retorno às aulas presenciais”, que traz ações para prevenir, minimizar ou eliminar os riscos de contaminação, mas nenhum dos três disponibiliza um link para o material ou diz de que maneira ele pode ser acessado.


Desse modo, além de não trazer à tona a importante discussão sobre se este é um momento realmente adequado ou não para o retorno das aulas, a imprensa ainda não aponta nem mesmo os cuidados básicos a serem adotados por estudantes, pais ou responsáveis, e instituições de ensino.


Enquanto isso, a médica infectologista divinopolitana Rosângela Guedes, em sua página no Instagram, ocupa o enorme vácuo deixado pela mídia e pela Prefeitura e esclarece em posts e nos stories as dúvidas de muitos pais e responsáveis desesperados à procura de informações. É uma excelente dica de pauta e fonte para os jornalistas. E pode render muitos cliques.


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segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Ratched: uma linha tênue entre realidade e ficção sobre loucura


Diálogos e problematizações importantes que o recente seriado da Netflix traz em relação à loucura e suas abordagens ao longo da história

 

Por Camila Machado

 

Ratched - serie de Netflix - Crítica - CINEMAGAVIA

“Em todos os lados, a loucura fascina o homem.”

FOUCAULT

 

Ratched conta a história por trás da enfermeira de mesmo nome do romance Um Estranho no Ninho, de Ken Kesey, publicado em 1962. Na série lançada em 2020 pela Netflix, Sarah Paulson dá vida a Ratched de forma brilhante. É uma série sobre os limites entre loucura e amor, uma narrativa que busca, do começo ao fim, mostrar como a obsessão nos leva à insanidade. Ao mesmo tempo que nos chama a pensar como a loucura, em si, era generalizada e tratada de forma absurda até pouco tempo atrás.

Crítica | Ratched - 1ª Temporada • Mundo HypeA história se passa no hospital psiquiátrico administrado pelo Dr. Richard Hanover (Jon Jon Briones), na comunidade de Lucia (Califórnia, EUA), no qual Mildred Ratched (Sarah é contratada como enfermeira no final da década de 40.  Ao longo da série conseguimos descobrir o que a motivou a ir para o hospital: seu irmão Edmund, uma psicopata que havia matado dezenas de padres da cidade e que acabaria sendo executado em uma cadeira elétrica. 

  O surto psicótico de Edmund era resultado de inúmeros traumas e abusos na infância e isso é deixado claro logo no começo. Mas ao longo da série percebemos como Ratched também foi afetada pela infância problemática e a exploração sexual que passaram quando crianças. Ratched cresce e acaba desenvolvendo uma obsessão compulsiva pelo irmão, um desejo de protegê-lo a qualquer custo e isso a leva a cometer vários crimes. A cada episódio conseguimos enxergar mais claramente toda a perversidade, escuridão e confusão por trás da elegante e “bondosa” enfermeira. Chegamos ao final da temporada cientes de que os monstros são forjados em situações específicas de abandono e dor.

Leia on-line O Alienista de Joaquim Maria Machado de Assis, Franco de Rosa  e Arthur Garcia | LivrosA série explora uma característica curiosa em alguns personagens: uma vontade insana de querer ajudar aqueles que estão “loucos”, quando eles próprios não reconhecem suas “loucuras”. Vemos isso de forma muito clara em Ratched, mas também no Dr. Hanover, coordenador do hospital, que queria revolucionar o tratamento psiquiátrico com várias técnicas modernas, mas assume uma busca insana pela “cura” das pessoas que o leva a praticar técnicas de lobotomia e terapias com sofrimento controlado em seus pacientes. Ele fica tão obcecado por esse desejo de “cura” que não percebe o mal que causava em seus pacientes e como isso também o levou a se afastar de sua família e todos ao seu redor. A construção da narrativa da série lembra e muito o famoso conto de Machado de Assis: O Alienista. Um conto que narra a história de um médico que abre uma “casa de loucos” e julga que todos os habitantes da cidade precisam ser internados, porque sofriam de algum problema mental. Porém, no final ele percebe que o louco ali era ele mesmo, por ser o único “normal” da cidade. 

Outro ponto importante a ser considerado na série é a forma como ela aborda os antigos tratamentos psiquiátricos e como naquela época qualquer comportamento desviante eram automaticamente considerados doenças psicológicas. Isso se dá de forma muito clara no personagem de um garotinho, que provavelmente sofria com o transtorno de déficit de atenção (TDH), mas que acaba sendo submetido a uma lobotomia para ficar “mais calmo e concentrado”. Pode parecer coisa de ficção, mas esse “tratamento” foi realmente receitado para “curar” crianças desatentas e/ou hiperativas inúmeras vezes. A lobotomia era naquela época uma técnica que prometia revolucionar o campo da psiquiatria e das doenças mentais, que poderia curar problemas como perda de memória, devaneios, e até mesmo a homossexualidade, que na época era considerada uma doença.

Sarah Paulson divulga pôster inédito de “Ratched”, nova série da NetflixEm determinado momento, Ratched demostra como é feita uma lobotomia transorbital, prática na qual um picador de gelo é introduzido na órbita dos olhos, e com isso chega até às regiões mais profundas do cérebro. O procedimento ocorre sem sangramento visível, mas mesmo assim faz uma das enfermeiras presentes vomitar. A técnica, segundo a narrativa ficcional, teria sido “criada” pelo Dr. Hanover, mas por mais estranha e cruel que possa parecer ela é real. António Egas Moniz (que inclusive é citado em Ratched), criou a técnica nos anos 40, e foi premiado com o Nobel de Medicina em 1949 pelo procedimento. Hoje, o prêmio é considerado um dos mais controversos da história da organização do Nobel. O uso da lobotomia cresceu dramaticamente em apenas uma década. Em 1951, cerca de 20 mil lobotomias foram realizadas nos Estados Unidos, a imensa maioria em mulheres. Como a lobotomia transorbital simplesmente manipulava e cortava partes do cérebro sem análise prévia, os resultados variavam entre pacientes. Hoje, a lobotomia é considerada um procedimento bárbaro, desnecessário, e que traz mais problemas do que benefícios. O procedimento foi basicamente banido dos Estados Unidos em 1967, após uma paciente sofrer hemorragia cerebral durante a cirurgia.

Quem é Ratched, enfermeira da nova série da Netflix? | Coxinha Nerd 

O seriado nos chama atenção para os erros não apenas no tratamento, mas no próprio diagnóstico dos pacientes. O lesbianismo, como abordado na série, também era um “problema” a ser curado. Em paralelo a história de Ratched (que também era lésbica) acompanhamos a história duas mulheres que após uma lobotomia sem resultados, foram submetidas a um tratamento desumano para que fossem curadas: um banho fervente seguido de um resfriamento rápido. “Estão cozinhando essas mulheres vivas!”, protesta uma das enfermeiras. Mas, o tratamento segue e as mulheres voltam a ser submetidas a tal tortura mais algumas vezes até que exaltas de sem “cozidas” vivas, passam a responder que nunca mais iriam se aproximar de outra mulher novamente e o tratamento é considerado um sucesso pelo Dr. Hanover.

A série dialoga em muitos pontos diretamente com Michel Foucault e suas conceituações no livro A História da Loucura, no explica como surgiu a noção de loucura e como o comportamento desviante se tornou uma doença com a necessidade de internação e tratamento compulsório. Por meio do pensamento de Foucault, conseguimos ver como o discurso sobre a loucura durante os séculos XV a XIX era também uma forma de poder, isolamento e punição. Tanto o saber médico, quanto a internação psiquiátrica, tornaram-se alguns dos instrumentos de poderes institucionais da época e que, consequentemente, estabeleceram uma fronteira entre a racionalidade e a loucura sem ao menos ter total conhecimento de o que ela realmente seria. 


Navio dos loucos (Stultifera Navis)Num primeiro momento, a loucura seria tratada sobretudo na Idade Moderna, com exclusão: os loucos seriam colocados em navios, Stultifera Navis (A nau dos loucos), e lançados ao mar. Porém, após o século XVIII, quando a loucura deixa de ser apenas um erro ou ilusão para tornar-se uma ameaça, surge o internamento, uma ilha dentro da própria civilização cuja maior preocupação não seria talvez com a perturbação da mente do louco, mas sim, com a perturbação que este poderia causar socialmente. No entanto, no século XIX a Psiquiatria toma as rédeas da loucura e com promessas de cura justificavam as formas de asilamento, nos diz Foucault. Agora, a loucura estaria retida e segura. Não existe mais a barca, mas o hospital.

Na sociedade moderna, racionalista e sobretudo burguesa, eliminar estes elementos não sociáveis se torna um sonho. “O internamento seria assim a eliminação espontânea dos ‘a-sociais’.” (História da loucura, p. 79). Nesta dinâmica social, faz-se as exigências concretas dos asilos, prisões, hospícios e hospitais na afirmação de instituições que ordenam o sonho burguês de sociedade, promovendo assim, réplicas mais ferrenhas 

de uma exclusão já existente.

Michel Foucault, o Homossexual Pedófilo | Nova ResistênciaTemos que considerar ainda que, no contexto do século XVII, a preocupação maior com aqueles que “desrespeitavam a ordem social” era de simplesmente não deixar estes personagens vagarem livremente pelas ruas da cidade, sendo ou não estas pessoas loucas e carentes de internação. E é interessante observar como isso se deu quando as práticas de, por exemplo, queimar bruxas em praças públicas se tornaram incomuns - devido ao próprio esvaziamento de seu poder sombrio e de suas intenções malignas - e o internamento toma o lugar destas condenações.  Foucault cita como o Hospital Geral e as casas de internamento da época receberam em grande número pessoas que, supostamente, mexiam com feitiçaria, magia, adivinhação e até mesmo alquimia. Desta forma, a magia passa a pertencer também aos mares da insanidade.

Ratched |Sob este mesmo olhar, a psicanálise atribuirá, no século XX, à loucura o resultado de alguma sexualidade perturbada. “Sempre dentro dessas categorias da sexualidade, seria necessário acrescentar tudo o que se diz respeito à prostituição e à devassidão.” (História da Loucura p. 90). É assim, nestes desejos impuros, que se condena a sodomia e a homossexualidade que passariam então a também compor o campo da loucura. Vemos isso se manifestando de forma muito clara em relação a homossexualidade em Ratched. 

Toda conceituação de Foucault na obra monstra a ânsia das pessoas em querer julgar os comportamentos morais de todos ao seu redor em certos e errados, normais e anormais. Foucault revela que não existe padrão adequado para escolhas morais, mas sim que todos são construções históricas. Sendo assim, quando julgamos alguém por estar agindo errado, estamos na verdade defendendo a existência de um falso padrão de comportamento humano. E é incrível observar como traços da teoria de Foucault integram as sublinhas de Ratched e nos faz vislumbrar como o internamento de pessoas que em certa maneira “desrespeitavam a ordem social” da época era na verdade uma forma de poder e exclusão, com raízes estritamente políticas. É possível ainda ver como a loucura sempre foi uma incógnita para a psiquiatria e os erros dela ao tentar “curá-la” no passado.

Ratched é uma série que te prende do começo ao fim e ainda que seja uma série ficcional, aborda o passado real do tratamento da loucura nos séculos passados e nos faz questionar muitas das abordagens do tema que temos hoje. Pensando nisso o PLURIS decidiu estender esse diálogo e a cada semana trará uma análise sobre como o Brasil tem lidado com a loucura historicamente. 


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