segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Ratched: uma linha tênue entre realidade e ficção sobre loucura


Diálogos e problematizações importantes que o recente seriado da Netflix traz em relação à loucura e suas abordagens ao longo da história

 

Por Camila Machado

 

Ratched - serie de Netflix - Crítica - CINEMAGAVIA

“Em todos os lados, a loucura fascina o homem.”

FOUCAULT

 

Ratched conta a história por trás da enfermeira de mesmo nome do romance Um Estranho no Ninho, de Ken Kesey, publicado em 1962. Na série lançada em 2020 pela Netflix, Sarah Paulson dá vida a Ratched de forma brilhante. É uma série sobre os limites entre loucura e amor, uma narrativa que busca, do começo ao fim, mostrar como a obsessão nos leva à insanidade. Ao mesmo tempo que nos chama a pensar como a loucura, em si, era generalizada e tratada de forma absurda até pouco tempo atrás.

Crítica | Ratched - 1ª Temporada • Mundo HypeA história se passa no hospital psiquiátrico administrado pelo Dr. Richard Hanover (Jon Jon Briones), na comunidade de Lucia (Califórnia, EUA), no qual Mildred Ratched (Sarah é contratada como enfermeira no final da década de 40.  Ao longo da série conseguimos descobrir o que a motivou a ir para o hospital: seu irmão Edmund, uma psicopata que havia matado dezenas de padres da cidade e que acabaria sendo executado em uma cadeira elétrica. 

  O surto psicótico de Edmund era resultado de inúmeros traumas e abusos na infância e isso é deixado claro logo no começo. Mas ao longo da série percebemos como Ratched também foi afetada pela infância problemática e a exploração sexual que passaram quando crianças. Ratched cresce e acaba desenvolvendo uma obsessão compulsiva pelo irmão, um desejo de protegê-lo a qualquer custo e isso a leva a cometer vários crimes. A cada episódio conseguimos enxergar mais claramente toda a perversidade, escuridão e confusão por trás da elegante e “bondosa” enfermeira. Chegamos ao final da temporada cientes de que os monstros são forjados em situações específicas de abandono e dor.

Leia on-line O Alienista de Joaquim Maria Machado de Assis, Franco de Rosa  e Arthur Garcia | LivrosA série explora uma característica curiosa em alguns personagens: uma vontade insana de querer ajudar aqueles que estão “loucos”, quando eles próprios não reconhecem suas “loucuras”. Vemos isso de forma muito clara em Ratched, mas também no Dr. Hanover, coordenador do hospital, que queria revolucionar o tratamento psiquiátrico com várias técnicas modernas, mas assume uma busca insana pela “cura” das pessoas que o leva a praticar técnicas de lobotomia e terapias com sofrimento controlado em seus pacientes. Ele fica tão obcecado por esse desejo de “cura” que não percebe o mal que causava em seus pacientes e como isso também o levou a se afastar de sua família e todos ao seu redor. A construção da narrativa da série lembra e muito o famoso conto de Machado de Assis: O Alienista. Um conto que narra a história de um médico que abre uma “casa de loucos” e julga que todos os habitantes da cidade precisam ser internados, porque sofriam de algum problema mental. Porém, no final ele percebe que o louco ali era ele mesmo, por ser o único “normal” da cidade. 

Outro ponto importante a ser considerado na série é a forma como ela aborda os antigos tratamentos psiquiátricos e como naquela época qualquer comportamento desviante eram automaticamente considerados doenças psicológicas. Isso se dá de forma muito clara no personagem de um garotinho, que provavelmente sofria com o transtorno de déficit de atenção (TDH), mas que acaba sendo submetido a uma lobotomia para ficar “mais calmo e concentrado”. Pode parecer coisa de ficção, mas esse “tratamento” foi realmente receitado para “curar” crianças desatentas e/ou hiperativas inúmeras vezes. A lobotomia era naquela época uma técnica que prometia revolucionar o campo da psiquiatria e das doenças mentais, que poderia curar problemas como perda de memória, devaneios, e até mesmo a homossexualidade, que na época era considerada uma doença.

Sarah Paulson divulga pôster inédito de “Ratched”, nova série da NetflixEm determinado momento, Ratched demostra como é feita uma lobotomia transorbital, prática na qual um picador de gelo é introduzido na órbita dos olhos, e com isso chega até às regiões mais profundas do cérebro. O procedimento ocorre sem sangramento visível, mas mesmo assim faz uma das enfermeiras presentes vomitar. A técnica, segundo a narrativa ficcional, teria sido “criada” pelo Dr. Hanover, mas por mais estranha e cruel que possa parecer ela é real. António Egas Moniz (que inclusive é citado em Ratched), criou a técnica nos anos 40, e foi premiado com o Nobel de Medicina em 1949 pelo procedimento. Hoje, o prêmio é considerado um dos mais controversos da história da organização do Nobel. O uso da lobotomia cresceu dramaticamente em apenas uma década. Em 1951, cerca de 20 mil lobotomias foram realizadas nos Estados Unidos, a imensa maioria em mulheres. Como a lobotomia transorbital simplesmente manipulava e cortava partes do cérebro sem análise prévia, os resultados variavam entre pacientes. Hoje, a lobotomia é considerada um procedimento bárbaro, desnecessário, e que traz mais problemas do que benefícios. O procedimento foi basicamente banido dos Estados Unidos em 1967, após uma paciente sofrer hemorragia cerebral durante a cirurgia.

Quem é Ratched, enfermeira da nova série da Netflix? | Coxinha Nerd 

O seriado nos chama atenção para os erros não apenas no tratamento, mas no próprio diagnóstico dos pacientes. O lesbianismo, como abordado na série, também era um “problema” a ser curado. Em paralelo a história de Ratched (que também era lésbica) acompanhamos a história duas mulheres que após uma lobotomia sem resultados, foram submetidas a um tratamento desumano para que fossem curadas: um banho fervente seguido de um resfriamento rápido. “Estão cozinhando essas mulheres vivas!”, protesta uma das enfermeiras. Mas, o tratamento segue e as mulheres voltam a ser submetidas a tal tortura mais algumas vezes até que exaltas de sem “cozidas” vivas, passam a responder que nunca mais iriam se aproximar de outra mulher novamente e o tratamento é considerado um sucesso pelo Dr. Hanover.

A série dialoga em muitos pontos diretamente com Michel Foucault e suas conceituações no livro A História da Loucura, no explica como surgiu a noção de loucura e como o comportamento desviante se tornou uma doença com a necessidade de internação e tratamento compulsório. Por meio do pensamento de Foucault, conseguimos ver como o discurso sobre a loucura durante os séculos XV a XIX era também uma forma de poder, isolamento e punição. Tanto o saber médico, quanto a internação psiquiátrica, tornaram-se alguns dos instrumentos de poderes institucionais da época e que, consequentemente, estabeleceram uma fronteira entre a racionalidade e a loucura sem ao menos ter total conhecimento de o que ela realmente seria. 


Navio dos loucos (Stultifera Navis)Num primeiro momento, a loucura seria tratada sobretudo na Idade Moderna, com exclusão: os loucos seriam colocados em navios, Stultifera Navis (A nau dos loucos), e lançados ao mar. Porém, após o século XVIII, quando a loucura deixa de ser apenas um erro ou ilusão para tornar-se uma ameaça, surge o internamento, uma ilha dentro da própria civilização cuja maior preocupação não seria talvez com a perturbação da mente do louco, mas sim, com a perturbação que este poderia causar socialmente. No entanto, no século XIX a Psiquiatria toma as rédeas da loucura e com promessas de cura justificavam as formas de asilamento, nos diz Foucault. Agora, a loucura estaria retida e segura. Não existe mais a barca, mas o hospital.

Na sociedade moderna, racionalista e sobretudo burguesa, eliminar estes elementos não sociáveis se torna um sonho. “O internamento seria assim a eliminação espontânea dos ‘a-sociais’.” (História da loucura, p. 79). Nesta dinâmica social, faz-se as exigências concretas dos asilos, prisões, hospícios e hospitais na afirmação de instituições que ordenam o sonho burguês de sociedade, promovendo assim, réplicas mais ferrenhas 

de uma exclusão já existente.

Michel Foucault, o Homossexual Pedófilo | Nova ResistênciaTemos que considerar ainda que, no contexto do século XVII, a preocupação maior com aqueles que “desrespeitavam a ordem social” era de simplesmente não deixar estes personagens vagarem livremente pelas ruas da cidade, sendo ou não estas pessoas loucas e carentes de internação. E é interessante observar como isso se deu quando as práticas de, por exemplo, queimar bruxas em praças públicas se tornaram incomuns - devido ao próprio esvaziamento de seu poder sombrio e de suas intenções malignas - e o internamento toma o lugar destas condenações.  Foucault cita como o Hospital Geral e as casas de internamento da época receberam em grande número pessoas que, supostamente, mexiam com feitiçaria, magia, adivinhação e até mesmo alquimia. Desta forma, a magia passa a pertencer também aos mares da insanidade.

Ratched |Sob este mesmo olhar, a psicanálise atribuirá, no século XX, à loucura o resultado de alguma sexualidade perturbada. “Sempre dentro dessas categorias da sexualidade, seria necessário acrescentar tudo o que se diz respeito à prostituição e à devassidão.” (História da Loucura p. 90). É assim, nestes desejos impuros, que se condena a sodomia e a homossexualidade que passariam então a também compor o campo da loucura. Vemos isso se manifestando de forma muito clara em relação a homossexualidade em Ratched. 

Toda conceituação de Foucault na obra monstra a ânsia das pessoas em querer julgar os comportamentos morais de todos ao seu redor em certos e errados, normais e anormais. Foucault revela que não existe padrão adequado para escolhas morais, mas sim que todos são construções históricas. Sendo assim, quando julgamos alguém por estar agindo errado, estamos na verdade defendendo a existência de um falso padrão de comportamento humano. E é incrível observar como traços da teoria de Foucault integram as sublinhas de Ratched e nos faz vislumbrar como o internamento de pessoas que em certa maneira “desrespeitavam a ordem social” da época era na verdade uma forma de poder e exclusão, com raízes estritamente políticas. É possível ainda ver como a loucura sempre foi uma incógnita para a psiquiatria e os erros dela ao tentar “curá-la” no passado.

Ratched é uma série que te prende do começo ao fim e ainda que seja uma série ficcional, aborda o passado real do tratamento da loucura nos séculos passados e nos faz questionar muitas das abordagens do tema que temos hoje. Pensando nisso o PLURIS decidiu estender esse diálogo e a cada semana trará uma análise sobre como o Brasil tem lidado com a loucura historicamente. 


Compartilhe:

terça-feira, 27 de julho de 2021

Você tem deja-vu?


 A volta das fake news que elegeram Jair Bolsonaro

 Por Talita Brandão 


Foto reprodução: Bolsonaro durante a posse.


A eleição presidencial de 2018 foi marcada pela disseminação de fake news nas redes sociais, principalmente Whatsapp e Facebook. Além de falsas, essas notícias foram fundamentadas em espetáculos e seu intuito foi afetar e trazer medo a temas já fragilizados em nossa sociedade. 

Apoiadas no conservadorismo, essas desinformações aumentaram a popularidade de Bolsonaro e influenciaram os resultados nas urnas. Dentre as fake-news em alta em 2018 se encontrava o “Kit Gay”, a fraude no voto eletrônico, a legalização da pedofilia e conspirações sobre um Brasil Comunista.  

Em entrevista para a El Pais em 2018, Tai Nalon, diretora da agência de checagem Aos Fatos, explicou: “Vimos a desinformação contra os adversários de Bolsonaro aumentar, em geral em torno de duas temáticas: colocar em dúvida, com teorias conspiratórias, a segurança do voto eletrônico no Brasil, e uma constante relação dos outros candidatos com pautas das minorias, como a agenda LGBT e o direito ao aborto”.

Viu algo parecido nos últimos dias?

 Desde 2015 a Lupa, primeira plataforma de checagem brasileira, apura a veracidade de notícias com grande engajamento nas mídias sociais. Com a aproximação das eleições de 2022, a agência desmentiu diversas fake news já verificadas anteriormente que voltaram à tona nos últimos meses.

No dia 14 de julho deste ano, a agência checou pela segunda vez o vídeo da ex-candidata a deputada federal Naomi Yamaguchi pelo PSL sobre irregularidades nas eleições presidenciais de 2014. Em sua investigação, a própria Lupa diz a respeito do vídeo ter sua primeira viralização em 2018.

“O vídeo viralizou pela primeira vez em 2018, às vésperas das eleições presidenciais, e o conteúdo foi desmentido na época. Na última quarta (7), Bolsonaro mais uma vez falou que apresentaria provas de que houve fraudes nas eleições de 2014 e 2018. Depois das declarações do presidente, o vídeo de Naomi Yamaguchi voltou a circular. Até hoje, não há qualquer comprovação das supostas fraudes alegadas por Bolsonaro nas eleições de 2014 e 2018.”

Outro vídeo que voltou a circular em 2021 foi do livro “Aparelho Sexual e Cia''. Na filmagem é afirmado que o livro fazia parte de uma cartilha entregue nas escolas públicas, porém a obra nunca foi distribuída pelo Ministério da Educação. No dia 9 de julho a Lupa  desmentiu o fato. E assim como no caso das fraudes nas urnas explicou a volta dessa fake-news.

Reprodução foto: Bolsonaro durante a campanha de 2018 para a globo


“Em 2018, o livro foi o centro de pelo menos duas polêmicas provocadas pelo então candidato à presidência Jair Messias Bolsonaro. Em 28 de agosto daquele ano, Bolsonaro mostrou um exemplar durante entrevista ao Jornal Nacional e afirmou, sem provas, que a obra era parte de um “kit gay” e que tinha sido comprado pelo MEC para ser distribuído nas escolas públicas. Bolsonaro foi desmentido na época pelo próprio MEC e pela Companhia das Letras, editora pela qual o livro foi publicado no Brasil. Ainda em 2018, em outubro, o @tsejus determinou que fossem suspensos os links de sites e de redes sociais com a expressão “kit gay” usados pela campanha de Bolsonaro, à época candidato pelo PSL.”

Essas desinformações não são publicadas aleatoriamente. Como acompanhado pelo inquérito das fake news, elas são financiadas por grandes grupos econômicos e suas consequências já se mostraram graves pela eleição de Jair Bolsonaro em 2018. 

O que são as fake news

As notícias falsas impactam a opinião pública e influenciam os eleitores a partir de uma percepção distorcida da realidade. Usá-las como estratégia política é um instrumento contra a democracia brasileira.

A pesquisadora Liliana Bounegru, desenvolve análises sobre as fake news, ela é professora em Métodos Digitais no Departamento de Humanidades Digitais, King's College London e também cofundadora do Public Data Lab. Para ela as fake news não são apenas as notícias falsas em si, mas também toda a infraestrutura atual que facilita a circulação delas. Assim, mesmo os boatos existindo desde sempre, as fake news é um fenômeno atual e dependente do online.

Ao contrário de 2018, hoje as plataformas sociais apresentam dispositivos contra a disseminação das fake news. Porém há o temor de que tais ferramentas não sejam suficientes para evitar a disseminação dessas mensagens - pois, ainda que desmentidas depois, a partir do momento em que são difundidas elas já impactam diversos usuários.


Compartilhe:

sexta-feira, 23 de julho de 2021

Cuba: o que a imprensa tem a dizer?

Por Maria Clara Ribeiro


Na última semana (12), protestos contra o governo ocorreram em vinte municípios de Cuba, mas, em contrapartida, um protesto em defesa da revolução nacional reuniu cerca de 100 mil cidadãos em Havana apenas no sábado (17). Entretanto, as mídias tradicionais narraram apenas as ações desfavoráveis ao governo, mostrando imagens de pessoas insatisfeitas com o governo e querendo mudanças. Aparentemente, nestes veículos, nada se veiculou sobre a grande parcela da população que se mobilizou ativamente na capital para defender o atual regime e seus governantes. Por quê? 


Contextualização

O presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel, reconheceu os problemas econômicos, mas sustentou que as manifestações foram parte de uma campanha contrária ao sistema anticapitalista, apontando o envolvimento dos Estados Unidos. Em declaração oficial, o governante classificou esta movimentação como uma “operação de desestabilização política”.

É inegável que há uma crise ocasionada pela atual situação econômica do país, aprofundada com o início da pandemia, pois quase 40% do PIB nacional é advindo do turismo – atividade reduzida ao máximo devido aos protocolos de segurança. Mas, além disso, é preciso ressaltar a escassez de mantimentos, fato diretamente ligado ao enrijecimento do bloqueio e das sanções contra Cuba impostas pelos EUA desde a década de 1960. 

Para não restar dúvida sobre a profundidade deletéria do bloqueio econômico estadunidense: todos os brasileiros se lembram bem da greve de caminhoneiros que paralisou o Brasil, de norte a sul, em 2018. O raciocínio é simples: se apenas um setor econômico fosse afetado pela greve, ela já seria suficiente para criar um efeito negativo profundo, já que um setor se alimenta de outro. Isso para o Brasil, que tem uma economia infinitamente mais diversificada que Cuba. O bloqueio econômico imposto pelos EUA a Cuba é como se fosse uma enorme greve de caminhoneiros - e que já dura 60 anos.

Segundo Iroel Sánchez, jornalista cubano e editor do La Pupila Insomne, apenas em 2020, a política do bloqueio à ilha resultou em prejuízos da ordem de US$5,5 bilhões e, apesar do cenário ter sido agravado com a presença de Donald Trump, é importante denunciar a sua manutenção sob o governo atual de Joe Biden. 


Tradição ou fabricação? 

As campanhas jornalísticas contra Cuba beiram a desinformação: as restrições impostas pelo governo estadunidense, somadas aos efeitos da pandemia, geraram uma situação de desabastecimento e dificuldades na vida da população, mas o problema se agrava quando grupos contrarrevolucionários (autônomos ou financiados, geralmente desde os EUA) aproveitam deste cenário para criar sua base para a disseminação de distorções. Esta “nova” forma de ataque à Revolução Cubana é chamada de ‘guerra de quarta geração’ ou ‘guerra não-convencional’. 

“Os atos de vandalismo e violência são parte de uma ação maior, coordenada desde uma feroz campanha nas redes sociais, com agitação e, especialmente, um oceano de notícias falsas. Toda a orquestração nas redes sociais escancara, inclusive, o enorme financiamento que há por trás desta ação. Esta combinação das dificuldades reais com a violência e a desinformação resulta em uma verdadeira guerra psicológica”, explica Sánchez. 


Dessa forma, como exemplo prático, podemos citar a Folha de São Paulo que, no último domingo (18), dedicou toda a capa de sua edição para efetivar sua campanha contra o governo vigente em Cuba e em defesa de alguns influenciadores do país - que também se movimentaram em ações desfavoráveis através de conteúdos humorísticos. Entretanto, vale ressaltar que o Brasil não se encontra em suas melhores condições ou em plena tranquilidade para que uma grande mídia nacional, advinda, aliás, de um dos mais importantes estados do território, dedique seu espaço mais importante para um acontecimento estrangeiro. Quais as vantagens adquiridas com esta pauta em repercussão? 

Por isso, é preciso defender o jornalismo independente como instrumento fundamental para a construção de sociedades democráticas. As mídias alternativas se tornam ainda mais necessárias quando há uma crise no modelo tradicional – tanto no sistema público, quanto no fazer jornalístico. O Jornalismo precisa atender a pluralidade das possibilidades sociais do indivíduo e da comunidade, assim como a amplitude da complexidade política nacional e internacional, tudo isso sem fazer juízo apenas aos seus interesses como organização lucrativa. 

A polarização dos debates provocou um processo de recrudescimento das bolhas sociais e, consequentemente, à superficialidade dos debates públicos. Além disso, vemos cotidianamente que as redes sociais corroboram com essa tendência. É neste cenário que o jornalismo de meios alternativos, não tradicionais, se tornam necessários: nestes veículos menos enraizados, a tarefa de não permitir que o financiamento e a politicagem interfiram no conteúdo se torna mais simples (mas não menos perigosa). 


Apoio não veiculado

Apesar das duras narrativas construídas pelos veículos nacionais sobre o cenário cubano, o consulado de Cuba em São Paulo recebeu manifestações político-culturais em solidariedade a ao país. Os protestos aconteceram no domingo (18), em frente ao prédio, e manifestantes de organizações de esquerda levaram faixas e bandeiras, como: MST, Marcha Mundial das Mulheres, Levante Popular da Juventude, PCO, PT, CTB, PCdoB, PSOL, FSM, MTST, PCB, MSC, Democracia Corinthiana e UJS. 

Em seu discurso, Cassia Bechara, da direção nacional do MST, fez uma associação entre a situação enfrentada atualmente nos dois países. "Cuba é dignidade, é solidariedade, é o povo vivendo bem. As ruas de Cuba, assim como as ruas do Brasil, são dos e das revolucionárias. Ninguém mais tomará as ruas de Cuba ou do Brasil", declarou. O ato foi transmitido ao vivo pelas redes sociais de vários destes movimentos, evidenciando, novamente, a importância das mídias alternativas para a cobertura de acontecimentos não narrados pela imprensa tradicional.


Compartilhe:

Reformas que desmontam: da previdência ao trabalho

Por Camila Machado


A aprovação da Reforma da Previdência, em outubro de 2019, juntamente com a Reforma Trabalhista de 2017 tem destaque no amplo pacote de maldades que vem sendo implementado no Brasil nos últimos anos. O desmantelamento do Estado de Bem-Estar Social ataca mais uma vez a Seguridade Social ao desmontar agora nossa previdência e fragmentar nossas relações de trabalho, nos condenando a uma precarização sem precedentes. 

A imposição de critérios mais rígidos para o acesso à Previdência Social e a redução do valor dos benefícios previdenciários e do Benefício de Prestação Continuada (BPC) da Assistência Social tiveram um impacto negativo na aposentadoria de trabalhadores e na vida dos brasileiros. As alterações propostas dificultaram o acesso à Previdência Social, principalmente para trabalhadores rurais, uma vez que agora o tempo mínimo de contribuição é 20 anos e sabemos como na área rural a jornada de trabalho é mais extensa, e o trabalho penoso e degradante faz com que os trabalhadores envelheçam precocemente. 

A reforma impactou diretamente na cobertura da população mais vulnerável pelo sistema de Seguridade Social. Entre 2015 e 2016 foi registrado um aumento dos índices de pobreza na América Latina: tivemos 18 milhões de pessoas a mais na pobreza, se comparado aos dados de 2014. Destas, 13 milhões vivem em situação de extrema pobreza. 

A Associação Internacional de Seguridade Social, entidade que congrega países e organismos públicos responsáveis pela proteção social, publicou em novembro de 2016 um relatório destacando os desafios da seguridade social no mundo atualmente, e entre eles estão: o enfrentamento das desigualdades dentro e entre países, os novos riscos sociais que devem ser cobertos e a necessidade de proteção a jovens com dificuldade de ingresso no mercado de trabalho. Tais desafios apontam, na verdade, para a necessidade de inclusão de mais pessoas em programas de seguridade e não a exclusão das que já fazem parte.

De tempos em tempos, reformas previdenciárias e trabalhistas são necessárias, é claro, não ignoro isso aqui. Afinal, o envelhecimento da população, as transformações no mercado de trabalho, a transição tecnológica, a economia digital, os processos migratórios entre outros fatores, com o tempo, tornam as regras estabelecidas obsoletas. Mas é preciso considerar as entrelinhas das reformas instauradas no Brasil com um pouco mais de atenção.


noticeOlhando para além do discurso oficial do déficit da previdência 

Quando a Reforma da Previdência ainda estava em processo de aprovação, o ex-presidente Michel Temer afirmou que o importante, simbolicamente, seria aprovar uma reforma; “Se é preciso fazer uma ou outra negociação, nós temos que realizar para aprová-la”. A reforma era apresentada como indispensável para resolver o problema fiscal do país e garantir a sustentabilidade do sistema previdenciário “para as presentes e futuras gerações”. E de fato, uma reforma era necessária, mas ela não tinha o poder de operar milagres nas contas públicas como o anunciado. Até porque esse também nunca foi o real objetivo.  O governo não queria garantir o futuro da previdência social, ele queria restaurar a confiança do "mercado” - leia-se: especuladores das bolsas de valores. Isso foi mencionado algumas vezes em falas oficiais e na própria proposta original entregue ao Congresso.

O problema é que junto com a reforma, aprovamos também uma intensificação da propaganda contrária ao sistema de proteção social estabelecido pela Constituição de 1988. O processo de desidratação da Previdência gerou o esvaziamento da seguridade e o fortalecimento da previdência privada. E é preciso refletir que fosse ela aprovada (como foi) ou não, logo a retórica do rombo, do ralo, da inviabilidade do sistema atual etc, retornará à cena. Pois não se tratava de uma reforma para garantir a sustentação das aposentadorias para as gerações futuras, ou para liquidar privilégios, e sequer para equilibrar as contas públicas e reativar a economia. Não se trata de reformar a Previdência, mas sim de revogar sua condição de sistema universal de direitos, transformando-a em um sistema pobre para os pobres.

O projeto partiu de argumentos absolutamente enganosos para justificar-se. Diziam que as pessoas haviam atingido condições de plena igualdade, mas na prática a sociedade e o mercado de trabalho brasileiro ainda são marcados por profundas desigualdades, sejam elas de gênero, de raça ou regionais. O sistema de seguridade brasileiro vinha permitindo, mesmo com limitações, que essas desigualdades fossem enfrentadas através de um sistema que trata os desiguais na exata medida de suas desigualdades, com deve ser. Mas, a cada “reforma” isso vem se tornando mais insustentável.

De acordo com nossa Constituição brasileira, a Seguridade Social, firmada no tripé da Saúde, Previdência e Assistência Social, deve ser financiada pelo Orçamento da Seguridade Social (artigos 194 e 195). Tal orçamento é formado por um conjunto de fontes próprias e exclusivas, tais como: as contribuições sociais pagas pelas empresas sobre a folha de salários, faturamento e lucro; e as contribuições pagas pelos trabalhadores sobre seus rendimentos do trabalho. Além da contribuição do governo, por meio de impostos gerais pagos por toda a sociedade, destacando-se aqui as contribuições sobre o faturamento (Cofins) e sobre o lucro líquido (CSLL). Assim, à luz da Constituição, não podemos falar em déficit na Previdência Social, pois na verdade sobram recursos, que acabam sendo utilizados em finalidades não previstas na lei. 

O projeto de desmonte da previdência social é ainda mais perverso ao desprezar os diferenciais de gênero, raça e desigualdades regionais e quando se trata das trabalhadoras urbanas, rurais, professoras, negras e idosas. Pois os seguros sociais instituídos para cobrir riscos associados à perda definitiva ou temporária da capacidade de trabalho (idade, invalidez, doença, maternidade) foram reduzidos a quase nada, com impacto quase imediato naqueles estratos sociais. É chocante ver como todas as mudanças previdenciárias levadas à frente em outros países são para aperfeiçoar o sistema, e não para destruí-lo como aqui, capturando os recursos para outras finalidades.

Além disso, a Reforma da Previdência criou um novo mecanismo que autoriza os futuros governos a alterarem o sistema da previdência sem precisarem alterar a Constituição Federal. Ao promover o desmonte da previdência e acabar com o conceito de seguridade social previstos na Constituição de 88, o governo compromete significativamente o presente e o futuro de gerações e gerações de brasileiros.


cltA “reforma” que gera informalidade:

A Reforma Trabalhista (LEI Nº 13.467/2017), aprovada em 2017, instituiu a informalidade como regra e dificultou que trabalhadores seguissem contribuindo com o sistema previdenciário ao desmontar a estrutura de direitos do trabalhador que vigorou no país por 74 anos.

A Reforma Trabalhista foi apresentada sob a falaciosa premissa de que ela modernizaria as relações de trabalho, mas o que tivemos foi a desvinculação do trabalhador do seu local de trabalho (trabalho intermitente). Com a ampliação da jornada de trabalho aumentaram-se também o esforço físico empregado nas atividades, o que leva de certo modo a um aumento das taxas de acidentes.

 A subordinação dos direitos trabalhistas aos pressupostos do direito civil funcionou, na prática, como mecanismo de bloqueio ao acesso à justiça trabalhista. A Reforma estabeleceu que o trabalhador que ingresse com ações na Justiça do Trabalho arque com as custas processuais caso perca a causa. Após um ano de vigência da nova legislação, por exemplo, o número de novos processos caiu 46%, uma queda diretamente relacionada ao medo da derrota judicial, fato que inibe acesso à Justiça mesmo quando as ações são absolutamente cabíveis. O que temos é uma situação de profunda desigualdade nas relações de trabalho que acaba por produzir uma desigualdade no tratamento judicial. Não há como falar de uma ampliação dos direitos. A Reforma Trabalhista não modernizou as relações de trabalho  - ela cortou direitos.

A proposta alterou as regras da jornada, fazendo com que à conquista das 8 horas diárias e 44 semanais, incorporada pela Constituição de 1988, saltasse para o limite de 12 horas diárias e 220 horas mensais. Uma afronta direta que ampliou de forma alarmante os riscos a que ficam submetidos os trabalhadores, em um país cujos índices de acidentes já são altíssimos. A intensificação da jornada e o aumento das incertezas quanto à manutenção do emprego repercutiram nas condições de vida e de subsistência das famílias, expandindo também os problemas de saúde como depressão.

Um dos argumentos apresentados na época, e que é sustentado até hoje por Jair Bolsonaro e seus apoiadores, era de que o desemprego era consequência do excesso de burocracia em torno do trabalho formal e de direitos dos trabalhadores - que ampliavam os custos. Para essas pessoas, retirar os direitos significaria diminuir custos de contratação e com isso ampliar o número de empregos formais. Esqueceram-se, todavia, de que o desemprego está intimamente ligado com a contração da economia diante da crise econômica que nos atinge há anos e também ao processo de concentração de capital nos circuitos especulativos, em detrimentos dos circuitos da produção. É falacioso e simplista demais dizer que o desemprego está relacionado ao excesso de direitos.

A reforma trabalhista de Temer prometeu gerar 6 milhões de empregos no país, mas se olharmos para os números de dois anos depois da aprovação da proposta, por exemplo, o que temos é um desemprego atingindo cerca 12,5 milhões de pessoas em 2019. E segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do terceiro trimestre daquele ano, entre as pessoas ocupadas: 44% estão na informalidade; 26% são trabalhadores e trabalhadoras por conta própria.  


Reformas e ações que precarizam

Além da Reforma da Previdência e a Reforma Trabalhista do Governo Temer, tivemos em 2019 novas alterações, principalmente nas Leis Trabalhistas brasileiras. A Lei da Liberdade Econômica ( 13.874/2019), sancionada por Bolsonaro com o pretexto de dar influências positivas para o mercado de trabalho brasileiro e a  MP 905/2019, o famoso Contrato Verde e Amarelo, foram quase uma “minirreforma trabalhista” que, assim como a de 2017, é marcada por fortes ataques aos nossos direitos trabalhistas.

A MP tentou a todo custo melhorar as condições das empresas, mesmo que o preço a se pagar tenha sido a precarização das condições do trabalhador. Fazendo as contas, ao empresariado coube aproximadamente uma economia de 70% dos encargos, de 39,5% para 12,1% sobre a folha.  Na prática a MP 905 formalizou o trabalho informal, transformando a força de trabalho brasileira num exército de trabalhadores informais. Mas, por apresentar muitos pontos controversos e grande desaprovação da oposição, a medida teve validade apenas até 20 de abril de 2020, sendo revogada após perder sua validade como Medida Provisória.

Mesmo com seu curto prazo de validade, é preciso questionar o quanto MP’s como esta nos empurram direto para Economia do Compartilhamento. Tal modelo econômico surge com promessas bastante entusiásticas de ajudar indivíduos vulneráveis a tomar controle de suas vidas tornando-os microempresários e assim os dando a chance de se auto gerenciar neste novo modelo flexível de trabalho, ajudando a montar o “nosso negócio na internet”. Promessas que a Economia do Compartilhamento nem se esforçou para tentar cumprir, uma vez que cada dia mais vem se mostrando um livre mercado inóspito e desregulado.

A economia do compartilhamento por meio de empresas como Uber, IFood, 99 etc., que se apresentam apenas como “mediadoras” da relação entre cliente e prestador de serviço- mas desempenham um papel cada vez mais invasivo nas trocas que intermedeiam-, tem criado novas formas de fiscalização para as vidas de seus trabalhadores. 

A ideia de “uma graninha extra” pela qual essas empresas se apresentam se tornou ainda mais “tentadora” em um país como o Brasil, com milhões de desempregados e um governo que parece querer “formalizar a informalidade”.  O problema é que essa informalidade não contribuirá em nada para nosso desenvolvimento, apenas nos condenará ainda mais a desigualdade e pobreza. Me pergunto até que ponto as ações “reformistas” do governo e o crescimento destas empresas da economia do compartilhamento são apenas coincidências. Bom, de qualquer forma, é de coincidência em coincidência que a uberização do trabalho ganha força. Tudo parece estar saindo como o planejado.


Compartilhe:

quinta-feira, 22 de julho de 2021

"Não é depressão, é capitalismo"

Cobertura midiática de saúde mental oculta o adoecimento geral causado pelo neoliberalismo


Por Ana Laura Corrêa



No Brasil, os dados sobre saúde mental já eram preocupantes antes da pandemia: em 2019, o país liderava rankings de depressão e ansiedade. No ano passado, os números pioraram. Diante de um problema tão expressivo para a sociedade brasileira, como se dá a cobertura das questões de saúde mental na mídia?


Observemos, por exemplo, a matéria “Ansiedade: confira dicas para controlar esse transtorno”, publicada no site Terra em 8 de julho de 2021 ‒ selecionamos aqui de uma notícia cujo tema é a ansiedade, mas a análise também poderia se desenvolver sobre qualquer outra reportagem relacionada a transtornos mentais (depressão, álcool e outras drogas, por exemplo) e as observações provavelmente seriam as mesmas. 


Segundo o texto, as causas da ansiedade estão ligadas à pandemia, a um instinto natural do ser humano de medo, além de outros medos gerados por aquilo que a reportagem chama de “a vida moderna”: errar nas atividades do trabalho, ser demitido, não atender expectativas de chefes exigentes demais, não conseguir educar bem crianças desafiadoras, incertezas econômicas, doenças, violência urbana, insucesso nos relacionamentos amorosos.


Assim, a reportagem reduz a explicação das causas da ansiedade a cenários individuais, mesmo que o Brasil seja o país com maior prevalência de ansiedade no mundo. O que estaria por trás de todos esses casos individuais de ansiedade? Somente esses episódios cotidianos da vida de cada pessoa? Senão, qual seria a causa maior desse problema que atinge milhões de pessoas no Brasil?  Isso o texto não traz. Seria possível, por exemplo, problematizar o que se entende por “vida moderna”.


Além disso, a matéria apresenta os sintomas mais comuns da ansiedade e aponta “dicas” para enfrentar o problema. Embora seja um transtorno que atinge milhões de pessoas, as “dicas” apresentadas também se reduzem a contextos individuais: atividades físicas, controles do pensamento e da respiração. Será que essas estratégias são mesmo suficientes?


Por meio da apresentação das causas individuais (com motivos ligados a situações cotidianas, como “errar nas atividades do trabalho”) e com o foco na descrição dos sintomas e de soluções também individuais, é possível afirmar que a reportagem se prende àquilo que o Adelmo Genro Filho nomeia em sua teoria do jornalismo de singularidade, da descrição dos fatos soltos, tidos fora de um contexto. 


Não há, como o autor sugere em sua abordagem, uma explicação, na matéria jornalística, relativa a um cenário mais amplo, que problematize as questões de saúde mental com o desemprego em massa (que vem aumentando a cada dia no país), a perda de direitos trabalhistas, a dificuldade de comprar o básico e pagar as contas para viver, o crescimento da fome, enfim, o aprofundamento das políticas neoliberais no país.


Compartilhe:

Jornalismo policial é outra coisa

 

Por Ana Laura Corrêa


(Foto: Divulgação/PM)



O fenômeno é geral. Basta acessar os sites de notícias da cidade e fazer uma leitura mais atenta dos textos da cobertura policial para observar: a polícia (geralmente a Militar) é a única fonte consultada nas matérias ‒ e, nos raros momentos em que os suspeitos aparecem, o jornalista parece ser, na verdade, o juiz. Outras vezes, a cobertura policial busca mobilizar os afetos dos leitores ou telespectadores, despertando a raiva ou a comoção dos ouvintes/leitores/telespectadores. 


Acreditamos, no entanto, que nenhuma dessas coberturas corresponde ao que se espera do exercício do jornalismo em uma sociedade democrática. Mas como fugir dessa cobertura sensacionalista?


Por que os suspeitos não têm voz?

Temos uma hipótese: as matérias policiais veiculadas pelos meios de comunicação da cidade são, na verdade, textos prontos enviados pelas polícias (Civil ou Militar) aos jornalistas, que apenas editam (se editam) o conteúdo. Se jornalismo é apuração, daí já podemos afirmar que essas notícias não são jornalismo policial. Bem longe disso… Talvez apenas uma assessoria de imprensa generalizada para a polícia, feita de graça (?) pelos sites de notícias.


Qual o resultado dessa cobertura policial em que apenas a polícia é quem fala?

O Brasil é um país que tem dificuldade em elaborar seu passado autoritário, eivado de ditaduras de todo tipo, inclusive a mais recente, militar, de tal modo que ainda hoje há quem peça a volta do autoritarismo. Além disso, muitos defendem que “bandido bom é bandido morto”. É preciso questionar qual a participação da mídia na elaboração desses discursos ‒ afinal, manchetes que sempre destacam as ações da PM (“Polícia apreende drogas”, “Polícia recupera animais roubados”, “Policiais localizam foragido”, “Polícia deflagra operação”) mostram sempre uma suposta eficiência da polícia, que se associa, assim, aos imaginários de segurança e proteção. Será que ela é sempre isso, para todo mundo?


Qual o grau de noticiabilidade das matérias policiais?

Se a seleção das reportagens a serem publicadas se guia por um suposto interesse público, qual é esse interesse, por exemplo, em matérias sobre apreensão de pés de maconha, recuperação de celulares roubados ou apreensão de drogas, em textos que raramente passam de dez linhas?


Jornalismo policial é outra coisa

Em sua teoria do jornalismo, o teórico Adelmo Genro Filho propõe que o jornalismo deve reinverter a pirâmide invertida. Assim, as notícias devem partir do lead, dos fatos imediatos, para uma explicação do contexto mais amplo relacionado ao acontecimento principal.


No caso do jornalismo policial, a aplicação da teoria marxista de Genro Filho consistiria em trazer para o texto o debate sobre o fracasso da guerra às drogas, desigualdade social ou sobre o fato de que entidades cristãs receberam quase 70% da verba para comunidades terapêuticas no primeiro ano do mandato de Jair Bolsonaro, por exemplo. 

Mas não é isso que vemos por aqui: as notícias apresentam apenas o fato imediato, o lead, de tal modo que os acontecimentos parecem estar desconectados de um contexto mais amplo ‒ um sensacionalismo que reduz toda a complexidade do mundo a uma simples oposição entre o bem (a polícia) e o mal (os suspeitos).


Para um bom jornalismo policial, além de Adelmo Genro Filho

  • No livro reportagem “Rota 66: A História da Polícia que Mata”, Caco Barcellos dá uma aula de jornalismo investigativo. O autor mostra a ligação Ronda Ostensiva Tobias de Aguiar (Rota) com as mortes de milhares de inocentes, principalmente pretos, pobres e periféricos.

A Plataforma Brasileira de Política de Drogas, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim) e a Catalize lançaram, em 2017, um Guia sobre Drogas para Jornalistas. O material traz um glossário, com diversos termos recorrentes na cobertura jornalística sobre drogas, e também uma sequência de fichas com informações por substâncias ou grupos de substâncias, listando mitos e verdades, dados relevantes e informações correlatas. Disponível neste link.
Compartilhe:

sábado, 17 de julho de 2021

Descoberta de túmulos de crianças indígenas escandaliza Canadá

 Passado sangrento, presente brilhante: o aniquilamento indígena canadense era tido apenas como cultural, mas agora põe a “nação exemplo” à beira do abismo de suas próprias facetas genocidas. Seria esta uma política de institucionalização da morte?


Por Maria Clara Ribeiro


É a terceira vez, desde maio, que túmulos de crianças indígenas são descobertos no Canadá. As últimas sepulturas foram encontradas no terreno de uma antiga escola, desta vez com os restos mortais de 182 pessoas, mas líderes indígenas consideram que mais sepulturas serão encontradas com o avanço das investigações, pois em apenas cinco semanas de busca os vestígios já apontam mais de 1.100 crianças. Essas descobertas lançaram luz sobre a política do silêncio praticada por décadas pelo governo canadense, em colaboração com a Igreja Católica, que culminou na morte de incontáveis crianças por décadas – talvez em tentativa de acentuar o escândalo. 

Os achados desencadearam uma onda de reações para que o governo e a instituição Católica forneçam toda a ajuda possível para encontrar, identificar e homenagear os menores. Diversas pessoas exigem que o Papa se desculpe pelo ocorrido em nome da Santa Sé, além de pagar indenizações e abertura de arquivos (para apoiar pesquisas e buscas). O governo canadense se desculpou oficialmente, mas a Igreja Católica ainda não emitiu um pedido formal de desculpas.


“Já disse antes e direi novamente: este é o começo destas descobertas. Peço a todos os canadenses que se unam às Primeiras Nações para exigir justiça” - Perry Bellegard, chefe da Assembleia de Primeiras Nações do Canadá, no Twitter. 

"Nos obrigaram a refletir sobre as injustiças históricas e contínuas que os povos indígenas enfrentam" - Justin Trudeau, primeiro-ministro do Canadá. 


O achado mais recente ocorreu na véspera do Dia do Canadá, o feriado de fundação do país, quando as três colônias britânicas se uniram, em 1867. A celebração nacional não foi suspensa, mesmo com inúmeros protestos, mas em alguns municípios houve desde o cancelamento de eventos à revolta popular incluindo episódios de estátuas vandalizadas e removidas.

Muitas comunidades indígenas do Canadá nunca reconheceram a data, atitude que se expandiu a outros grupos à medida que mais túmulos foram encontrados. Da mesma forma, memoriais improvisados foram criados em todo o país por índios, atingindo proporções notáveis. Pode-se dizer que se instaura um processo de reexame da consciência nacional sobre o legado nacional, tido como exemplo em escala mundial às demais nações. 

A última busca foi feita pela própria comunidade “ʔaq'am”, uma das quatro tribos da Nação Ktunaxa, através de aparelhos eletromagnéticos aos arredores de St. Eugene. A comunidade disse que é cedo para dizer se os restos mortais pertencem a ex-alunos, mas alguns restos mortais foram encontrados em covas rasas, costume incomum - os cemitérios costumavam ser marcados com cruzes de madeira e seguiam os tradicionais rituais católicos de exumação.

"Mas isso não é surpreendente. Os sobreviventes vêm dizendo isso há anos e anos, mas ninguém acreditava neles." – Chefe da Assembleia das Primeiras Nações, Perry Bellegarde. 


O Centro Nacional para Verdade e Reconciliação, criado por meio de um acordo entre o governo e as nações indígenas, descobriu que um grande número de crianças nunca voltou para suas comunidades, mesmo com relatos de fuga. O relatório da comissão, publicado em 2015, disse que a prática equivale a um genocídio cultural. O documento de 4 mil páginas detalhou falhas abrangentes no cuidado e segurança das crianças, além da cumplicidade entre igreja e governo. 


O que foi a St. Eugene?

A St. Eugene foi uma Escola Missionária, como era denominada, operada pela Igreja entre 1912 até o início dos anos 1970 - responsável por 70% das instituições oficiais. Porém, este foi apenas um dos mais de 125 internatos financiados pelo governo canadense e administrados pelas autoridades religiosas locais durante os séculos 19 e 20. Tem-se que seu objetivo era moldar os jovens indígenas para serem “cidadãos civilizados” que condissessem à “estatura da nação”.

Entre 1863 e 1998, mais de 150 mil crianças indígenas foram tiradas de suas famílias e colocadas nessas escolas e, segundo registros, não tinham permissão para falar sua língua ou praticar os rituais de sua cultura. Quando a matrícula nestas instituições se tornou obrigatória na década de 1920, os pais enfrentavam até ameaça de prisão se não cumprissem a ordem, tendo que entregar os pequenos à força. 

Estima-se que 6 mil crianças morreram enquanto frequentavam essas escolas e, até o momento das investigações, mais de 4,1 mil crianças foram identificadas. As mortes eram tidas como consequência das péssimas condições de infraestrutura: alojados em instalações mal construídas, mal aquecidas e pouco higiênicas.  Em 1945, a taxa de mortalidade de crianças nos internatos era quase cinco vezes maior do que a média de crianças brancas canadenses. Na década de 1960, o número dobrou, ou seja, a taxa chegou a ser dez vezes maior. Abusos físicos e sexuais cometidos pelos regentes escolares também foram impulsionadores que levaram muitos a fugir. 

"Eles nos fizeram acreditar que não tínhamos alma. [...] Eles estavam nos rebaixando como pessoas, então, aprendemos a não gostar de quem éramos." - ex-estudante. 


Descobertas anteriores

Essa é a terceira vez que túmulos não marcados são encontrados nestes locais desde maio. Em 27 de maio, Rosanne Casimir, chefa da reserva “Tk’emlups te Secwépmc”, anunciou a descoberta dos restos de 215 menores indígenas no terreno do antigo internato de Kamloops, na província da Colúmbia Britânica. Menos de um mês depois, 24 de junho, o chefe da reserva “Cowessess”, Cadmus Delorme, informou a descoberta de 751 tumbas não identificadas em terrenos do antigo internato Marieval Indian Residential School, em Saskatchewan. 

Dos restos mortais encontrados, acredita-se que 50 crianças já tenham sido identificadas, disse Stephanie Scott, diretora executiva do Centro Nacional para Verdade e Reconciliação, comissão lançada em 2008 para documentar os impactos desse sistema. Acredita-se que as mais jovens tinham cerca de três anos e que, dentre as poucas mortes registradas, datam de 1900 a 1971 – ocorrido ainda muito recente. 


Institucionalização do genocídio?

É preciso construir suspeitas sobre este silêncio ensurdecedor que encaixa o Canadá nos moldes de uma faceta política genocida: acobertar a mortandade de seu povo, em detrimento dos que chegavam em navios. Estaria realmente acabado esta possibilidade ou seria apenas mais uma omissão do sistema? 

Este questionamento se dá tanto sobre a igreja, que continha os arquivos seculares sobre os altos números de morte e desaparecimento das crianças sob sua responsabilidade (visto que ainda não há evidências sobre mortes propositais), quanto ao governo canadense que omitiu sua história sangrenta através do seu presente quase invejável. 

Não é preciso ir muito longe para citar narrativa semelhante: nos Estados Unidos também houve o extermínio da população indígena originária. Entretanto, é de conhecimento geral, não só dos seus cidadãos, que houve este episódio na história do país. Pode-se citar neste ponto uma frase de Edmund Burke, a qual “um povo que não conhece sua História, está fadado a repeti-la”, mas ainda mais que isso, está fadado à plena ignorância e falso porte de juiz alheio.  

Isto é, esta é uma política de algo mais profundo, um possível genocídio institucionalizado. Estamos libertos dessa realidade?


Compartilhe:

Sobre o Observatório