Por Camila Machado
O Brasil está sufocando. E dessa vez o Covid-19 não é o único a nos deixar sem ar. Nosso pulmão natural está sendo condenado ao fim: a Amazônia tem gritado por socorro há um bom tempo. Tentarei abafar os ruídos das serras do desmatamento e mostrar aqui a face deste desmonte ambiental que nos condenará à morte em poucos anos.
Com flexibilização de regras de preservação e proteção de áreas ambientais e indígenas, cortes no orçamento de áreas estratégicas, demissões e perseguições, o governo segue cumprindo à risca seu discurso de campanha em favor do agronegócio latifundiário, ainda que o preço a se pagar seja ambientalmente destrutivo.
UM DESMANTELAMENTO MASCARADO DE REFORMAS:
O Brasil inicia, em 2019, um processo de inversão da lógica e do conceito de políticas públicas ambientais sustentáveis. Com um discurso reformista, o governo passa anunciar diversas ações, tidas como “necessárias para reformular as políticas ambientais”, que na prática apenas querem implantar valores econômicos e ideológicos na esfera da preservação ambiental. O desmantelamento das políticas públicas ambientais se tornou mais do que um projeto, é hoje a própria política do governo.
É preciso que fique claro e por isso repito: o governo não está propagando reformas, mas sim atentando contra políticas socioambientais quando decide, por exemplo, suprimir no Ministério do Meio Ambiente:
políticas voltadas para o combate do desmatamento, das queimadas e da desertificação;
políticas de gestão territorial e produção de comunidades indígenas;
políticas de responsabilidade socioambiental, de produção e de consumo sustentável;
e políticas de interlocução com a sociedade na pauta ambiental.
E para além destas supressões, é preciso falar de como o Ministério do Meio Ambiente perdeu poder sobre as negociações internacionais e capacidade de fixar e editar normas ambientais com as inúmeras transferências de órgãos para outros setores. Isso aconteceu no:
Deslocamento das políticas públicas envolvendo o serviço florestal Brasileiro, o Cadastro Ambiental Rural e a Economia da floresta para o Ministério da Agricultura;
Deslocamento das políticas públicas envolvendo as mudanças climáticas para os Ministérios da Agricultura, da Ciência e Tecnologia e da Economia e Comunicação.
Deslocamento das políticas públicas envolvendo recursos hídricos e a Agência Nacional de Água para o Ministério do Desenvolvimento Regional.
A saída de Ricardo Salles do Ministério do Meio Ambiente, no dia 24 de junho, foi vista como uma vitória para quem quer a floresta Amazônica de pé, por exemplo, mas sua exoneração não apaga o rastro de destruição de polícias ambientais articuladas na sua gestão. Pois, por mais irônico e conflitante que pareça, nosso desmonte ambiental tem sido articulado pelo próprio Ministério do Meio Ambiente.
SALLES, O PORTA-VOZ DO DESMONTE
Após a chegada de Ricardo Salles ao Ministério, em 2019 , o desmonte ambiental brasileiro decolou. Salles cumpriu sua missão destrutiva com sucesso. Logo no começo de sua gestão, dois importantes órgãos de fiscalização, o Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade (ICMBio) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) passaram por reestruturações que visavam, de certa forma, um alinhamento destes com ideias do agronegócio.
Salles defendia “soluções capitalistas” para preservação da Amazônia e chegou a realizar uma revisão em todas as Unidades de Conservação do país, desde o Parque Nacional de Itatiaia (criado em 1934) até o Refúgio da Vida Silvestre da Ararinha Azul (criado em 2018). Segundo o ex-ministro, as unidades foram feitas "sem critério técnico" e por isso deveriam ter os traçados revistos e/ou extintos, ignorando os impactos positivos que tais unidades tiveram na redução dos índices de desmatamento na região.
Em abril de 2020, Salles determinou o corte de 24% do orçamento anual previsto para o Ibama. Com o corte, o órgão teve seu orçamento reduzido de R$368,3 milhões, conforme constava na Lei Orçamentária (LOA), para R$279,4 milhões. Um número estupidamente insuficiente, pois só as despesas fixas do órgão ficam em R$285 milhões. O ex-ministro fez do Ibama seu saco de pancadas e principal alvo nesse desmonte, chegando a recriminar publicamente fiscais do órgão que queimaram equipamentos de criminosos acusados de retirar madeira ilegal de uma Unidade de Conservação no Pará, apesar de decreto federal autorizar o procedimento.
O número de multas aplicadas pelo Ibama por desmatamento ilegal teve queda de 34% entre janeiro e maio deste ano. E em abril, o governo criou órgão regulatório com o poder de perdoar ou revisar multas ambientais. Tal medida visa combater o que Bolsonaro chama de "indústria das multas" que, segundo o Presidente, ameaça a subsistência de agricultores e pecuaristas.
O desmonte também se deu de forma acentuada por meio do esvaziamento da pasta ambiental no governo. Ainda que a ideia de acabar com o ministério do Meio Ambiente não tenha se concretizado, a transferência de importantes políticas públicas ambientais para outros ministérios manifesta esse esvaziamento. Um exemplo disso foi a extinção do departamento de Educação Ambiental do Ministério do Meio Ambiente, incorporado pela Secretaria de Ecoturismo no início de janeiro. A educação ambiental era um pré-requisito para que áreas de preservação sejam exploradas pelo setor de turismo de forma equilibrada, pois assim os interesses econômicos estariam regulados por interesses ambientais de longo prazo.
AS CONSEQUÊNCIAS EM NÚMEROS:
Diante do desmonte das políticas ambientais, as consequências batem à porta com números preocupantes. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apontou que entre agosto de 2019 e julho de 2020, o desmatamento nos estados da Amazônia Legal tiveram um aumento de 9,5%, o que corresponde a 11.088 quilômetros quadrados de árvores desmatadas.
O Observatório do Clima, rede formada por 56 organizações não governamentais e movimentos sociais, avalia que os números do desmatamento anual "refletem o resultado de um projeto bem-sucedido de aniquilação da capacidade do estado Brasileiro e dos órgãos de fiscalização de cuidar de nossas florestas e combater o crime na Amazônia". O balanço, divulgado em novembro passado, é o pior dos últimos doze anos. E alertas mensais por satélite mostram que os números deste ano podem ser ainda piores.
Salles disse que pretendia eliminar o desmate ilegal na sua gestão, mas ao que tudo indica o que conseguiu foi apenas facilitar a ilegalidade. O desmate continua e os 11 mil km² desmatados mostram bem isso.
Também não podemos nos esquecer da crise de queimadas no Pantanal que o Brasil enfrentou, em agosto de 2019, e que nos fez perder mais de 26% para as chamas. As consequências do garimpo ilegal em terras indígenas também são preocupantes. Apenas na terra indígena Yanomami há cerca de 20.000 garimpeiros devastando a floresta, parte deles sob o comando do Primeiro Comando da Capital (PCC), uma das maiores facções do crime organizado do Brasil.
Repito aqui algumas das consequências elencadas pelo Observatório do Clima a respeito dos serviços prestados por Salles: foram “dois anos de desmatamento em alta, dois recordes sucessivos de queimadas na Amazônia, 26% do Pantanal carbonizado, omissão diante do maior derramamento de óleo da história do Brasil, emissões de carbono em alta e a imagem internacional do país na lama. Para não dizer que só destruiu tudo, Salles acrescentou uma expressão ao léxico do português brasileiro: ‘boiada’, como sinônimo de destruição ambiental”.
EXONERAÇÃO DE SALLES: MAIS UM JEITO DE “PASSAR A BOIADA”
Um dos momentos marcantes da gestão de Salles foi uma frase que ele pronunciou durante um explosivo Conselho de Ministros em abril de 2020. Em um vídeo divulgado da reunião ele diz: “Agora que estamos em um momento tranquilo porque a mídia está focada na covid-19, temos que aproveitar para aprovar a boiada e simplificar as regras”. Boiada, neste contexto, foi usada como sinônimo de mudanças legais para afrouxar a regulamentação ambiental brasileira (o que de fato ele fez com sucesso).
Salles se mostrou expert nessa coisa de “passar a boiada” até mesmo na sua exoneração do cargo de ministro. Enquanto a imprensa e as redes sociais repercutiam sua saída do Ministério do Meio Ambiente, no dia 24 de junho, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara, aprovava por 40 votos a 21 o Projeto de Lei 490/2007. Tal projeto representa um retrocesso nos direitos indígenas ao dificultar novas demarcações de terra — já paralisadas pelo governo Jair Bolsonaro.
O PL 490/2007, defendido pela base bolsonarista e pelo agronegócio, facilitará a grilagem de terras e o aumento da exploração de florestas e de áreas protegidas, uma vez que ele permite a legalização de empreendimentos em áreas de reserva, como garimpos ilegais e hidrelétricas.
Um dos pontos mais críticos do texto é a exigência da comprovação da posse e ocupação do território reivindicado pelos povos tradicionais antes do dia 5 de outubro de 1988 (data da promulgação da Constituição Federal). Atualmente a legislação sobre o tema não impõe nenhum marco temporal, e a demarcação é feita por uma equipe multidisciplinar da Fundação Nacional do Índio (Funai). O projeto aprovado também flexibiliza a possibilidade de contato com povos isolados —pela doutrina indigenista em vigor estes grupos devem ser mantidos em suas condições atuais, a não ser em caso de risco à sua integridade.
O projeto é considerado por muitos especialistas o maior ataque à floresta amazônica e aos povos originários articulado pelo Governo Jair Bolsonaro e pelos parlamentares ligados ao bolsonarismo. É preciso ter em mente que este ataque à Amazônia e a seus povos é articulado. O desmonte das políticas ambientalistas é um projeto que se manifesta sorrateiramente, assim como o desmonte de outros setores que venho tratando nessa série.
A aprovação do projeto de lei aconteceu no mesmo dia em que Salles se despediu formalmente do Governo no Diário Oficial, para que não se comentasse tanto, para que ficasse nas linhas de baixo dos noticiários ou nem aparecesse. A exoneração de Salles foi apenas mais uma cortina de fumaça para o desmantelamento de nossas políticas ambientais.
Os ataques, mascarados de reformas, estão cada vez mais ofensivos e nos condenarão cedo demais a um cenário irreversível. Com a maior floresta tropical do mundo, a grande reguladora do clima, sob ataque, o que acontece neste momento no Congresso brasileiro ameaça o planeta. Em 2020, a Amazônia sofreu o maior desmatamento dos últimos 12 anos: 1.085.100 hectares de florestas desapareceram, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Nos dois primeiros anos do Governo Bolsonaro, o desmatamento aumentou quase 48% nas áreas protegidas da Amazônia, segundo levantamento do Instituto Socioambiental.
O PL 490 é um ataque fatal, desencadeado numa região já extremamente fragilizada por Ricardo Salles e suas inúmeras ações para o enfraquecimento da fiscalização, o estímulo à invasão de terras públicas, inclusive as que são formalmente protegidas por lei, e incentivo aos depredadores ―grileiros, madeireiros e garimpeiros que formam a base de apoio de Bolsonaro na Amazônia.
Se a Amazônia deixar de ser o que é ―uma grande reguladora do clima― será muito difícil, talvez impossível, controlar o aquecimento global, afetando radicalmente o futuro da espécie humana. Cientistas do clima têm alertado repetidamente que a Amazônia está cada vez mais perto do ponto de não retorno. O PL 490 é a maior ofensiva contra a Amazônia e seus povos e ainda que seja uma ofensiva que não se iniciou com Bolsonaro nem com os parlamentares ligados a ele, só chegou a este desfecho porque Bolsonaro ocupa o poder.
O desmonte de nossas políticas ambientais também tem impactos econômicos graves. O investimento internacional no Brasil está despencando e não nos surpreende, afinal nem o mais convicto capitalista quer negociar com quem ameaça a vida na terra. Pois, é isso que temos aqui. Quando o governo faz de nossas florestas alvo de ataque ele declara guerra contra nossas próprias condições de existência.