O Pluris continua, nesta semana, a série sobre o desmonte do Estado de Bem-Estar Social e trata de como este tem se manifestado no setor educacional
Por Camila Machado
“A crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto”, já dizia Darcy Ribeiro. O desmonte do Estado de Bem-estar Social não tem poupado esta área e a cada ano que passa a educação brasileira vem sendo ainda mais sucateada. O desmantelamento da Educação Pública, em todas as suas formas, interessa apenas a uma elite que deseja se perpetuar no poder e a políticos que são eleitos com o dinheiro desses grandes empresários. Só interessa a quem não se compromete com a população e com o desenvolvimento do país, e que assim, direta ou indiretamente, financia o desmonte de nosso Estado de Bem-Estar Social.
Em 2019, o governo anunciava o congelamento de R$1,7 bilhões dos gastos com as universidades públicas do país. Segundo o Ministério da Educação (MEC), a medida foi tomada porque a arrecadação de impostos estava menor do que o previsto. O corte foi aplicado sobre gastos não obrigatórios, como água, luz, terceirizados, obras, equipamentos e realização de pesquisas. Despesas obrigatórias, como pagamento de salários e aposentadorias, não foram afetadas, mas ainda assim a Associação dos Reitores das Universidades Federais (Andifes) disse que aquele era o maior contingenciamento de verbas desde 2014.
O orçamento aprovado para todas as 63 universidades federais em 2019 foi de R$49,621 bilhões. Desse total, o pagamento de salários consumiu R$42,3 bilhões, o que representa 85,34%. Já as despesas discricionárias somaram R$6,9 bilhões (13,83%), e outros R$400 milhões (0,83%) provenientes de emendas parlamentares.
Desde que assumiu a presidência, Jair Bolsonaro não poupou esforços para atacar a escola e a universidade pública. Bilhões já foram cortados das verbas das universidades e institutos, e o MEC segue anunciando mais cortes. Bolsonaro já tentou impedir a aprovação do Fundeb Permanente, fundo responsável pelas verbas destinadas à educação básica, o que teria gerado um apagão na educação nacional sem precedentes, pois os recursos teriam se esgotado em 2020.
O desmonte das universidades públicas, em específico, vem se dando desde 2015, quando, ainda na gestão de Dilma Rousseff, tivemos os primeiros congelamentos de bolsas e programas de pesquisa. Muitos outros pedaços se perderam pelo caminho em 2016 e 2017, mas foi em 2018 que se evidenciou que tal desmonte não se tratava de um plano de partidos específicos da direita, mas sim de algo muito maior. Um projeto que visa privatizar, de ponta a ponta, nossa educação pública. Para tanto seguem, por meio de contingenciamentos e cortes permanentes de verba, sucateando cada vez mais rápido as instituições públicas até que estas não tenham outra alternativa senão fechar as portas. E não é difícil imaginar que para aquelas instituições que conseguirem sobreviver, provavelmente, será imposto um modelo específico de gestão que jogará por terra toda sua autonomia.
Especialistas há tempos vêm chamando a atenção para como cada vez mais o Ministério da Educação tem sido transformado em um aparelho a serviço da guerra ideológica travada por Bolsonaro. Temos que considerar que o sucateamento do ensino público serve e muito ao projeto privatizante de Paulo Guedes, pois facilita a implementação de uma educação voltada direta, exclusiva e explicitamente aos interesses e necessidades de diferentes setores privados, que já são acionistas de empresas privadas de educação.
Um projeto de desmonte bastante eficaz
Com bem alerta o sociólogo César Callegari, em entrevista à Carta Capital, além da asfixia financeira, existe a ameaça de fechar cursos de Sociologia e Filosofia, o combate do governo ao chamado “marxismo cultural” nas universidades, o projeto Escola Sem Partido. Todos se lembram de quando o presidente anunciou, em abril de 2019, que o governo iria deixar de investir em faculdades de cursos de humanas como filosofia e sociologia para dar mais dinheiro para cursos como engenharia, veterinária e medicina. Uma demonstração clara do desejo de fazer da cultura, da educação e da ciência, os principais alvos de ataques e de afirmação de uma visão restrita, não-humanista, daqueles que hoje detém o poder. O professor é tido agora como um inimigo e ao patrocinar, por exemplo, o projeto Escola Sem Partido, que sob esse título enganoso visa censurar e perseguir professores, o governo ataca os educadores.
O projeto de desmonte da educação brasileira mostra-se muito bem estruturado. Não há pontas soltas, nada acontece ao acaso. Quando um ministro anuncia, por exemplo, o corte de verbas para a sustentação das escolas que são mantidas nos assentamentos do MST, ele não apenas priva 200 mil crianças do seu direito à educação, como também busca enfurecer os pais e as mães dessas crianças, os trabalhadores sem-terra, para então atacá-los diretamente. Outro exemplo é quando editoras do Programa Nacional do Livro Didático, que fornecem 160 milhões de exemplares para as escolas públicas brasileiras, são pressionadas pelo MEC a reescrever suas obras didáticas. Pois assim fazem com que os editores e os próprios autores de tais obras façam uma autocensura e deixem de tratar de questões centrais para a formação dos estudantes do Brasil, como a ditadura ou temas relacionados à educação sexual.
A educação básica também não está fora da mira deste desmonte. Ao menos R$2,4 bilhões foram bloqueados pelo Ministério da Educação em 2019, recursos que seriam direcionados a programas da Educação Infantil ao Ensino Médio, segundo um levantamento realizado pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições de Ensino Superior (Andifes). O contingenciamento das universidades federais naquele ano estava na casa dos R$2,2 bilhões e o levantamento mostrou que o corte total para a educação já chegava, em maio, a R$7,98 bilhões.
Houve também bloqueios nos valores previstos para construção ou obras em unidades do ensino básico: o MEC bloqueou R$146 milhões dos R$265 milhões em 2019. E não pense que o ensino técnico e a educação a distância ficaram de fora, porque esta área também segue sendo sucateada. O Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico (Pronatec), também em 2019, teve todo o recurso de R$ 100,45 milhões bloqueado. Também houve contenção em programas importantes de permanência das crianças mais pobres na escola, como merenda (R$150,7 mil) e transporte escolar (R$19,7 milhões).
Manifestações recentes deste desmonte
Desde 2013, o orçamento das universidades vem sendo radicalmente cortado. Mas, em 2021, vimos o orçamento discricionário aprovado pela Lei Orçamentária para a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) ser reduzido a 38% daquele que era empenhado em 2012. Ao G1, o vice-reitor da instituição, Carlos Frederico Leão Rocha, afirmou que "não dá para manter" o funcionamento com o orçamento destinado e que era provável que ele fosse inviabilizado a partir de julho.
O orçamento discricionário é a verba reservada para pagamentos com gastos como água, luz, segurança, estrutura física das unidades, além de alimentação e alojamento de alunos. Segundo dados da assessoria de imprensa da UFRJ, esse orçamento da universidade caiu R$ 340 milhões em 10 anos: de R$ 639 milhões em 2011 para R$ 299 milhões em 2021.
Dos R$ 299 milhões reservados para 2021, ainda de acordo com a UFRJ, R$ 152,2 milhões ainda dependem de suplementação no Congresso Nacional. E, desse valor, R$ 41,1 milhões foram bloqueados pelo governo federal. O total de investimentos da universidade para 2021, portanto, seria de R$ 258 milhões, valor equivalente ao orçamento de 2008.
Em agosto de 2020, véspera do Dia dos Estudantes, o governo anunciava uma redução de R$4,2 bilhões no orçamento do Ministério da Educação para o ano de 2021. O Projeto de Lei Orçamentária Anual 2021, elaborado pelo Ministério da Economia, foi encaminhado para o Congresso Nacional com uma redução de 18,2% comparado ao ano de 2020. A previsão é que o impacto nas Institutos e Universidades Federais seja de R$ 1 bilhão.
De acordo com os números da Secretaria do Tesouro Nacional, anualmente o investimento na educação vem sendo reduzido. Em 2016, os gastos primários somaram mais de 103 bilhões em 2016 (valor corrigido pela inflação). Já em 2019, o valor era de cerca de R$92,37 bi.
Segundo a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições de Ensino Superior (Andifes), as universidades têm perdido anualmente, desde 2019, um acumulado de 25% dos seus orçamentos. As instituições federais já têm enfrentado grande dificuldade para não comprometer o funcionamento das atividades, e o novo corte causará ainda mais prejuízos para a pesquisa, extensão, assistência estudantil e manutenção dos campus.
Esse provavelmente é o texto com mais números que já escrevi, e nem foi preciso uma pesquisa muito aprofundada para que o desmonte da educação pública brasileira ganhasse forma. E a questão que surge é que não são e nunca foram apenas números. A cada novo corte, nossa educação pública é mais soterrada, asfixiada e condenada ao fim. O Brasil segue indo contra a maré, enquanto todos os países minimamente desenvolvidos (e não só financeiramente) reconhecem a educação como o ponto chave para a construção de uma sociedade promissora, financeira e socialmente.
O que temos é cortes e mais cortes. E de vez em quando uma dose de ironia que chega a ser cruel: em maio deste ano, por exemplo, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei (PL) 5.595/2020 reconhecendo a educação como "atividade essencial" para que se retorne às aulas presenciais. E assim, de repente, o governo parece se preocupar novamente com a educação, quando na verdade é só mais uma manobra para jogar por terra nossos direitos. Pois, com a ideia de atividade essencial, retira-se, por exemplo, o direito de greve e, ao mesmo tempo, condiciona o retorno imediato, sem vacinação, em um contexto de crise, se solicitado.
Comentei sobre isso no último texto desta série, mas volto a repetir pois ao que parece: nada acontece ao acaso na política brasileira. Em meio ao entra e sai de governos, o desmonte educacional se infiltra e ganha força. O projeto parece estar saindo melhor que o planejado e só me resta perguntar: até quando fecharemos os olhos para isso?