O Circo Voador é mais que um movimento, tornou-se um símbolo do poder da arte.
Por Maria Clara Ribeiro
Do calçadão do Arpoador até o México, o documentário mostra a geração que revolucionou a cena cultural brasileira: o Circo Voador. A obra cinematográfica foi lançada em 2013, sob direção de Pedro Bronz e Roberto Berliner, e está disponível gratuitamente em plataformas de streaming, como a Netflix (https://bit.ly/3dd7pZm). A produção tem duplo impacto: tanto na narrativa que discorre sobre o movimento político-cultural de tamanha significação, quanto no formato de reprodução escolhido que contraria a monotonia das telas digitais.
Parte verdadeiramente emblemática (e mais interessante) se dá em seu final, quando retrata-se a ida da trupe à Copa do Mundo de 1986, no México. Perfeito Fortuna, um dos idealizadores do Circo, tornou possível a empreitada em Guadalajara por meio de um acordo entre o governo brasileiro e a Coca-Cola – sob o qual a empresa garantia os investimentos necessários, como US$500 mil e o cachê dos artistas. Entretanto, o projeto não seguiu as expectativas.
A aventura começou quando metade do grupo precisou deslocar-se para o país em um avião de carga da Força Aérea Brasileira junto aos equipamentos. Apesar do pouco espaço, as imagens mostram a alegria dos membros que foram se divertindo com “sexo, drogas e rock’n’roll”, como relembra Perfeito, até o local (com direito à parada no meio da rota por falta de combustível). A viagem teve cobertura dos jornais brasileiros e “Esquadrilha da Fumaça” foi o apelido carinhoso delegado à trupe – mas a farra estava só começando.
Como o local destinado ao projeto estava longe do centro e dos estádios, onde acontecia toda a movimentação da Copa, os artistas decidiram levar música, dança, teatro e poesia para onde, verdadeiramente, estava o povo - e se você se chocar com o fato de terem conseguido até trio elétrico para desfilar pela cidade, não vai querer ver quando se juntaram ao protesto contra o uso de energia nuclear. Assim este era o Circo: intenso e indefinível.
O problema residiu no fato de a Coca-Cola ainda não saber disso.
Após três semanas em terras mexicanas, veio o comunicado do final do projeto. A cena é melancólica – neste ponto do documentário, já se sente enorme carinho pelo Circo e se lamenta por não ter feito parte desta era -, é impossível não sentir a decepção dos participantes em não poder efetivar sua missão artística. Quando se tornou aceitável uma empresa abandonar sua responsabilidade sob 240 indivíduos? Em justificativa à retirada do patrocínio, a Coca-Cola alegou falta de organização da equipe. Seria realmente desordem ou negação de ser formatado?
A arte não cabe em garrafas e a vida não tem modelo de produção (ainda).
Quebra do Olhar – Imagem
O documentário apresenta formato peculiar. Através de registros temporais criados pelos próprios membros do projeto, a produção é montada a partir de gravações analógicas em Video Home System, popularmente conhecida como VHS. Com isso, vale ressaltar que a obra representa uma quebra do olhar com os quais estamos habituados: telas brilhantes e com imagens bem delineadas.
A quebra da expectativa do olhar pode ser incômoda, um obstáculo para acompanhar as 1h34min de documentação. Mas, em contrapartida, há de se relevar que a peculiaridade pode assumir características de unicidade, sendo de tamanha competência cinematográfica que estimula, em sua estranheza, o acompanhamento da narrativa.
Ressurreição da vitalidade urbana-cultural
Na década de 1980, extensão do movimento artístico do Circo, o Brasil se desprendida das amarras limitantes da ditadura militar - após o tempo de repressão, a liberdade ressuscita. A cultura brasileira reencontra suas primeiras marcas renascimento atrás da música, sob forte influência da disseminação do rádio, principalmente sem censura, e dispositivos móveis, como Walkman.
Por isso, figuras como Cazuza, Caetano, Barão Vermelho, Legião Urbana, Blitz, Os Paralamas do Sucesso, Capital Inicial, Lobão, Débora Colker, Engenheiros do Hawaii, Intrépida Trupe e muitas outras novidades surgiram, no picadeiro do Circo, para o cenário musical. Em conjunto, artistas experientes também se valeram do palco para impulsionar a missão, como Luiz Gonzaga, Adoniran Barbosa e Cauby Peixoto. Tratava-se de uma luta, um processo de construção da redemocratização da cultura através da multiplicidade de vozes e estilos artísticos.
História do Circo Voador
Em 1982, o Circo Voador foi inaugurado na praia do Arpoador, localizada em Ipanema. A tenda teve como principal motivador o desejo de jovens artistas em construir um lugar para criar, divulgar e ensinar suas artes. Membros de grupos teatrais da época – figuras bem conhecidas atualmente -, como Evandro Mesquita, Regina Casé e Luís Fernando Guimarães, impulsionaram os primeiros passos deste projeto.
A ideia inicial do Circo era manter seu funcionamento por um mês, mas se estendeu por três - até desmonte do local pelas equipes de fiscalização da prefeitura. Contrariando as expectativas, o grupo não encerrou suas atividades. Liderados por Perfeito Fortuna, os artistas membros se movimentaram pela capital fluminense, em destaque ao Morro do Alemão, fazendo mutirões de reforma, instituindo creches e associações para auxiliar moradores – como a criação de uma horta para atender a comunidade local.
Em outubro do mesmo ano, após muita luta, a prefeitura carioca destinou um terreno para instalação da sua sede. Fixada na Lapa, próximo aos Arcos, o Circo ganhou forma e seu palco popular ajudou a promover o trabalho de muitos artistas até 1996 – ano de demolição da estrutura. Por quê? César Maia, então prefeito do Rio de Janeiro, decretou fechamento do local após alegação de irregularidades.
Em 2002, um movimento passou a lutar pelo retorno do Circo Voador e, após determinação judicial, a prefeitura reconstruiu a antiga sede. Sob comando de Maria Juçá Guimarães, nos últimos anos – até interrupção da pandemia -, o Circo voltou a ser palco de artistas, incluindo os que haviam marcado presença no início do projeto. Dando continuidade aos motivadores originais, a instituição dedica tempo-espaço para a realização de cursos e projetos sociais.
Fotos: Festival do Rio/ Caleidoscópio/ Caleidoscópio/ Circo Voador