sexta-feira, 2 de abril de 2021

AmarElo – é tudo pra ontem

Por Camila Machado                

O documentário “AmarElo – é tudo pra ontem” , lançado em 2020 pela Netflix, é uma viagem que te faz imergir na história, ou melhor dizendo, em muitas histórias. A trama gira em torno do novo álbum do rapper brasileiro Emicida, ou apenas Leandro para os íntimos. Enquanto apresenta as histórias por trás das músicas e a composição delas, o próprio Emicida faz uma contextualização que nos faz adentrar na história do rap, do samba e nos mostra como a história do Brasil é por natureza uma história negra.


A narrativa é construída de forma a mostrar, na prática, o significado do ditado preferido do rapper: “Exu matou um pássaro ontem com a pedra que só jogou hoje”. Chegamos ao final entendendo não só como as heranças negras estão intrinsecamente conectadas a nossa cultura, mas também como as nossas chances de consertar os desencontros e desacertos do passado moram no agora.

É um documentário que fala de raça, mas sobretudo de luta, respeito, união, e necessidade de igualdade. Uma trama que dá voz e forma aos que por tempo demais foram apagados e sufocados nas narrativas da História, da música, do cinema, das artes. É um olhar para a grandiosidade e a força do povo que formou esse país. É ver a marca do povo negro na nossa arquitetura, na arte, na música, na culinária e em tudo que somos e construímos. É uma crítica ao racismo estrutural, a segregação de corpos negros de espaços específicos da cidade. É uma dose de realidade em relação a nossa sociedade brasileira. Uma narrativa que a mostra como ela é: racista. Uma sociedade que tem cor e que humilha e segrega “pessoas de cor”.

A coletividade é a base de AmarElo, não apenas do documentário, mas também do álbum que conta com colaborações preciosas que vão de Zeca Pagodinho à Fernanda Montenegro. O documentário nos permite conhecer as pessoas e histórias que deram origem a cada faixa do álbum lançado em 2019. Os trechos arrepiantes do show no Teatro Municipal de São Paulo em conjunto com a narração do próprio rapper ao explicar o porquê de realizar seu show no Municipal, simboliza a ocupação da comunidade negra aos lugares que sempre lhes foram negados e nos mostra como os espaços artísticos sempre excluíram a população negra. O estar em um teatro para a maioria daquelas pessoas era, e continua sendo para muitas outras, algo inimaginável.

AmaElo fala de amor e do elo que sempre manteve viva a esperança e a luta da comunidade negra. Do elo que une suas culturas, sua música, suas vidas e a nossa história. O filme cria uma narrativa que nos permite visualizar a linha - ou melhor o elo- que perpassa e une arte, política minorias e movimentos coletivos. Como o próprio Emicida afirma, o documentário foi pensando com base no triângulo “AmarElo + Samba + Modernismo”, construindo com muita sensibilidade e excelência uma história que une o passado, o presente e o futuro. Temos uma história de luta e esperança dando um novo contorno para a História.

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“Quando um cidadão é calado no exercício do seu legítimo direito de expressão, a voz da democracia se enfraquece”

Por Camila Machado                

Problematizações acerca do caso do Felipe Neto: Intimidação, tentativa de silenciamento, confusão entre liberdade de expressão e discurso de ódio marcaram o caso

 

O Youtuber Felipe Neto surpreendeu a todos ao compartilhar nas suas redes sociais imagens da intimação que havia acabado de receber em sua casa pela Polícia Civil do Rio de Janeiro no dia 15 de janeiro. Felipe estava sendo intimado a depor por um suposto crime de calúnia previsto na Lei de Segurança Nacional (LSN), depois de chamar o presidente Jair Bolsonaro de "genocida", diante das ações pouco eficazes do Governo Federal no controle da pandemia do Coronavírus. “Minha atribuição do termo "genocida" ao Presidente se dá pela sua nítida ausência de política de saúde pública no meio da pandemia, o que contribuiu diretamente para milhares de mortes de brasileiros. Uma crítica política não pode ser silenciada jamais!”, disse o youtuber em suas redes sociais.

Ainda no dia em que foi intimado Felipe Neto postou um vídeo dizendo que o objetivo da família Bolsonaro e todas as pessoas que moveram processos contra ele e seus posicionamentos políticos era amedrontar as pessoas. “Querem que você tenha medo, não apenas eu, você. Porque eles sabem que eu tenho como me defender, que tenho recursos para isso. Eles sabem que não vai dar em nada essa acusação completamente descabida e ilegal. Mas, eles querem propagar o medo e o povo não deve jamais temer o seu governo! O governo é que deve ter medo do seu povo”, afirmou o youtuber. O caso do Felipe é um exemplo entre muitas outras tentativas de silenciamento da liberdade de expressão crítica ao governo atual. E chama a atenção para problematizações necessárias.


Uma herança da ditadura?

A Lei de Segurança Nacional é um instrumento legal remanescente do período da Ditadura Militar (1964-1985) que voltou a ser utilizado nos últimos anos. O instrumento foi aprovado durante os anos de João Figueiredo na ditadura militar e só nesse mês de março a lei já foi usada três vezes. O caso do Felipe Neto, claro, trouxe mais visibilidade e problematizações sobre o tema, mas a LSN também chegou a ser usada na ordem de prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ). O deputado, que atualmente encontra-se em prisão domiciliar, teve sua prisão decretada em flagrante durante o carnaval, após ameaças a ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e invocar o AI-5. Muitos internautas começaram a comparar os dois casos e isso traz à tona a frágil compreensão da sociedade civil dos limites da liberdade de expressão.

Há uma grande diferença entre liberdade de expressão e discurso de ódio. Pessoas que protestam politicamente contra o atual governo, de forma virtual ou não, não podem ser perseguidas e igualadas a aquelas que fomentam a agressão, desqualificando ou agredindo violentamente alguém. As manifestações que chamam o presidente de "genocida" refletem as ações do presidente Jair Bolsonaro que caminham cada dia mais para essa conclusão. A perseguição destes casos não pode ser vista sob o mesmo enquadramento do deputado Daniel Silveira na legislação.

As tentativas de silenciamento pela intimidação do pensamento crítico se mostram cada vez mais crescentes por parte da família Bolsonaro e aliados. Além do caso do Felipe Neto e de Daniel Silveira, o Ministério da Justiça também abriu inquérito, com base na LSN, contra Hélio Schwartsman, colunista da Folha, depois dele publicar um texto intitulado “porque quero que Bolsonaro morra”. Dias depois do caso do Felipe, a Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) prendeu cinco pessoas que faziam uma manifestação contra o presidente da República no dia 18 de março. O ato foi realizado na Praça dos Três Poderes, em frente ao Palácio do Planalto e os manifestantes chamaram Jair Bolsonaro novamente de genocida. Segundo a denúncia, os manifestantes infringiram a Lei de Segurança Nacional, pois "expõem a perigo de lesão" a integridade e a soberania nacional.

Foto reprodução twitter


Outro caso polêmico é o do sociólogo Tiago Costa Rodrigues e do microempresário Roberval Ferreira de Jesus. O ministro da Justiça André Mendonça pediu que Polícia Federal que os investigue, depois que ambos espalharam outdoors afirmando que o presidente Jair Bolsonaro vale menos que um "pequi roído" (algo sem valor ou importância) pelas avenidas de Palmas/ TO. As mensagens foram espalhadas em agosto do ano passado, e o inquérito contra Tiago e Roberval foi aberto no dia 6 de janeiro pela Diretoria de Inteligência Policial (DIP) da direção-geral da Polícia Federal de Brasília.

Tiago Rodrigues afirmou em entrevista para o Jornal do Tocantins que a intenção dos outdoors era fazer um contraponto a placas de apoio ao presidente espalhadas por bolsonaristas pela cidade e criticar as ações "ineficazes" do governo durante a pandemia. O sociólogo fez uma vaquinha virtual para arrecadar o valor necessário e colocou duas placas que ficaram 30 dias em exposição pelas ruas da cidade. Uma dizia "cabra à toa, não vale um pequi roído. Palmas quer impeachment" e a outra "Aí, mente! Vaza Bolsonaro Tocantins quer paz".

Foto reprodução twitter



Desdobramentos do caso Neto

Apenas dois dias após caso do Felipe Neto ganhar visibilidade o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, classificou o evento como “flagrantemente ilegal”. “Ele pediu uma audiência com o chefe da Polícia Civil para discutir o meu caso. Não deixem que ninguém espalhe por aí que o meu caso é igual ao caso de criminosos condenados, como Daniel Silveira, Sara Winter e Oswaldo Eustáquio. Chamar um genocida de genocida não é comparável com propagar desinformação intencionalmente, ameaçar ministros, incitar a violência e propagar mensagens pedindo um golpe de Estado. Tudo que a família Bolsonaro quer é que você acredite que o nosso lado comete os mesmos crimes q eles. É mentira. Não caia nessa falácia”, afirmou Felipe Neto em seu perfil o Instagram no dia 17 de março.

No dia seguinte a juíza Gisele Guida, da 38ª Vara Criminal do Rio, suspendeu a investigação feita a pedido de Carlos Bolsonaro contra Felipe. A magistrada reconheceu a ilegalidade da instauração do procedimento criminal e determinou a imediata suspensão da investigação. Em decisão, a juíza fala em 'flagrante ilegalidade' e disse que o caso é de competência da Justiça Federal, por se referir a suposto crime contra a segurança nacional e o depoimento do youtuber, previsto para a tarde do dia 18 foi suspenso.

Muitas pessoas influentes demostraram apoio ao youtuber e uma delas foi a advogada criminalista e comentarista política Gabriela Prioli. Em suas redes Prioli disse: “Polícia e judiciário gastando tempo com uma investigação flagrantemente ilegal como se ninguém tivesse nada mais importante pra fazer. Inacreditável e absurdo o que fizeram com você [Felipe]. Inacreditável e absurdo que nós precisemos desperdiçar o tempo do judiciário com absurdos enquanto tem tanto crime precisando de solução. Quem deseja um país mais seguro deveria desprezar uma família que instrumentaliza a polícia para atender aos seus interesses em detrimento dos interesses do povo brasileiro”.


Cala Boca já morreu!


Foto: reprodução website do projeto


A investigação considerada ilegal e suspensa pela Justiça inspirou o youtuber a criar o movimento "Cala-Boca já Morreu", uma forma de assistência jurídica a qualquer investigado ou processado por criticar autoridades. O movimento se propõe a lutar contra o autoritarismo e, segundo o youtuber, será movido pelo “princípio de que quando um cidadão é calado no exercício do seu legítimo direito de expressão, a voz da democracia se enfraquece”.

“A liberdade de expressão está sob ataque de uns poucos, porém violentos inimigos da democracia brasileira querem calar aqueles que criticam autoridades públicas, eleitas pelo povo, e em cujo nome exercem o poder que têm. E para isso, se armam da Lei de Segurança Nacional, herança insepulta da Ditadura. O autoritarismo é como um vírus, que vai se espraiando pelo corpo, matando-o aos poucos. A democracia, todavia, conhece várias vacinas. Uma delas é o controle pelo Judiciário dos avanços ilegais; um outra é a solidariedade. Aquele sentimento humano profundo, que faz sentir a dor do outro como sua. Se você está sendo investigado criminal ou administrativamente por ter expressado uma ideia ou criticado uma autoridade pública, e não encontrou meios, públicos ou privados, para se defender, o Cala Boca Já Morreu vai ajudar na sua defesa e, se o caso, provocar o Ministério Público competente para apurar eventual abuso por agente público”, afirma o youtuber na carta aberta exposta no website do movimento.

Em entrevista ao jornal O Tempo, Felipe disse que a ideia do movimento surgiu na madrugada após ser intimado. “Eu sabia que a ação contra mim daria em nada, justamente pela minha rede de apoio e defesa, mas entendi que o problema era muito mais profundo. Eles queriam colocar medo na população, nos jornalistas, nos professores. Então decidi procurar os melhores advogados que conheço e perguntar se eles topariam utilizar seus escritórios para defender todo mundo que sofresse essa tentativa de silenciamento absurda que eu sofri. Eles toparam na hora”, disse.

Felipe ainda chamou a atenção para as mais de vinte pessoas que foram intimadas pela Polícia Federal em Uberlândia por postagens contra o governo e outros casos de repressão. “Quatro rapazes foram presos em Brasília por estenderem uma faixa criticando Bolsonaro. Um homem está sendo perseguido judicialmente por ter colocado um outdoor comparando o presidente a um pequi roído. Casos não param de surgir por todo o País. Não adianta esperar sentado que as coisas serão cuidadas pelos próprios poderes públicos. É imprescindível que a sociedade civil aja para enfrentar o autoritarismo”, afirma. Ainda nessa entrevista o youtuber disse estar trabalhando em um denúncia internacional contra o presidente acerca da sua “política genocida” durante a pandemia.


A prática de intimidação judicial já levou à prisão algumas pessoas e muitas outras seguem sendo intimadas por postagens em redes sociais ou interação com algum post crítico ao presidente. Felipe Neto e o ex-governador Ciro Gomes (PDT-CE) são os casos famosos, mas não podemos nos esquecer das pessoas anônimas que também são intimidadas.

E todos esses casos deflagram um outro problema: O acesso desigual à Justiça no Brasil. As defensorias públicas fazem um trabalho excepcional, mas não dão conta da demanda. Assim, quem não pode arcar com uma defesa privada fica à mercê do autoritarismo. A iniciativa “Cala Boca Já Morreu” vem na tentativa de auxiliar exatamente essas pessoas, para que não sejam silenciadas e intimidadas. Formada por especialistas de escritórios de advogados reconhecidos como André Perecmanis, Augusto de Arruda Botelho, Davi Tangerino e Beto Vasconcelos a iniciativa oferecerá defesa gratuita não só para aqueles que criticarem o presidente como também qualquer autoridade pública.
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Por uma mídia do povo

 Por Ana Laura Corrêa                


Grande parte dos veículos de comunicação que conhecemos são empresas privadas. E, assim sendo, estão submetidas à lógica do mercado: precisam de lucro, de anunciantes que depositem dinheiro e mantenham a coisa funcionando. Às vezes esses anunciantes exigem algo em troca: certos assuntos se tornam proibidos, algumas palavras não podem ser ditas, ou precisam ser ditas de outra forma ‒ o que é certamente problemático.

Soma-se a isso, ainda, o fato de que grande parte da mídia brasileira é comandada por poucas famílias. De acordo com a pesquisa Monitoramento da Propriedade da Mídia, financiada pelo governo da Alemanha e realizada em conjunto pela ONG brasileira Intervozes e a Repórteres Sem Fronteiras (RSF), cinco famílias controlam metade dos 50 veículos de comunicação com maior audiência no Brasil ‒ família Saad - Bandeirantes; família Frias - Grupo Folha; família Marinho - Grupo Globo; família Sirotsky - Grupo RBS; família Macedo - Record ‒ o que torna o cenário da mídia no país ainda mais problemático.

Assim, nos meios de comunicação brasileiros, pouca gente fala e pouca gente determina o que pode ser falado. Tudo isso ocorre em um cenário em que a Constituição, em seu Capítulo V (da Comunicação Social), proíbe que os meios de comunicação sejam objeto de monopólio ou oligopólio. Além disso, em relação às televisões e rádios, a Constituição determina a coexistência de meios públicos, privados e estatais.


Diante da legislação que não é cumprida, entidades (http://fndc.org.br/) propõem uma nova regulação que acabe com a concentração ‒ tais iniciativas, porém, sempre são taxadas por alguns (especialmente os donos dos grandes veículos de comunicação) de “censura”, sem trazer ao debate público a urgente necessidade de uma mídia plural no Brasil. Mas isso rende assunto para outro post.

Comunicação pública
Nesse cenário de famílias mandando nas empresas de comunicação, de anunciantes determinando o que deve ou não ser dito, o que se verifica são notícias guiadas pelos interesses de uns poucos ‒ a não ser pelas iniciativas de jornalismo alternativo ou independente, que, no entanto, geralmente não têm o mesmo alcance dos grandes veículos.

Diante disso, onde fica a coisa pública - a res-publica?

Como vimos, a Constituição determina a complementaridade entre público, privado e estatal. Em relação à comunicação pública, do povo, temos como principal representante, no país, a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) ‒ veja livro sobre as iniciativas públicas de outros países no link https://www.intervozes.org.br/arquivos/interliv004spcmepb.pdf.

A EBC foi criada há pouco mais de dez anos, em 10 de outubro de 2007, tem veículos on-line, de rádio e TV, e “contribui para o objetivo de ampliar o debate público sobre temas nacionais e internacionais, de fomentar a construção da cidadania, com uma programação educativa, inclusiva, artística, cultural, informativa, científica e de interesse público, com foco no cidadão”.

Além da programação de caráter educativo, especialmente na televisão ‒ o que também é determinado pela Constituição (mas quantas empresas privadas cumprem?) ‒, a EBC é responsável por ser (ou pelo menos deveria ser, considerando o atual governo) uma fonte confiável de informação a outros empreendimentos de comunicação, que republicam seus conteúdos, gratuitamente ‒ o que pode ser visto aqui mesmo em Divinópolis.

Porém…
Mesmo jovem, a EBC já vem sofrendo com o desmonte promovido pelo governo de Jair Bolsonaro. Inicialmente, funcionários denunciaram interferência do governo no conteúdo publicado pela emissora (https://emdefesadaebc.wordpress.com/2020/09/22/dossie-aponta-138-denuncias-de-censura-e-governismo-na-ebc-sob-bolsonaro/), como já mostramos aqui no Pluris.

Na última semana, no entanto, a EBC foi incluída no Programa Nacional de Desestatização. A empresa de comunicação do povo pode até mesmo ser extinta, “caso não haja "ativos" e como "agregar valor"”. Trata-se de um risco ao já frágil cenário da comunicação no país, marcado pela concentração de mídia.

Mobilização
Em 17 de março, funcionários concursados da EBC entregaram ao ministro das Comunicações ‒ e genro de Silvio Santos ‒, Fábio Faria, a "Carta à Sociedade: por que a EBC não deve ser privatizada". A empresa pública também tem realizado mobilizações nas redes sociais. Acompanhe no Twitter (https://twitter.com/ficaebc), Facebook (https://www.facebook.com/ficaEBC e https://www.facebook.com/emdefesadaEBC) e blog (https://emdefesadaebc.wordpress.com/). É urgente defender um patrimônio público de comunicação do desmonte.

#FicaEBC
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Guerra da Síria completa dez anos e população realiza manifestações pró-democracia

Por Maria Clara Ribeiro                 


Uma revolta pacífica contra o presidente da Síria, Bashar al-Assad, ganhou novos significados e eclodiu em uma guerra civil. O conflito já deixou mais de 380 mil mortes, devastou e esvaziou cidades do país.


Manifestações na Síria ocorreram no dia 15 de março deste ano, no marco de dez anos da guerra civil que assola o país, em uma das maiores crises humanitárias da história moderna. A comunidade internacional viu a movimentação de pessoas nas ruas de Idlib como um apelo ao encerramento do conflito, que já devastou e esvaziou as cidades do país.


Fonte: Estadão-Internacional

Sob o governo do presidente Bashar al-Assad, empossado em 2000, os altos níveis de desemprego, corrupção e restrição à liberdade política tornaram-se insuportáveis e a população se uniu para garantir seus direitos básicos. Em março de 2011, as primeiras manifestações a favor da democracia foram organizadas. Esses levantes foram fortemente influenciados pelos movimentos da Primavera Árabe, no qual países da região lutavam contra os regimes opressivos.

O governo sírio coibiu com violência os protestos, ato que intensificou as proporções da manifestação e a população ocupou as ruas do país exigindo a renúncia do presidente. Entretanto, a repressão se intensificou e a oposição começou a se armar. Vale destacar que o processo de armamento começou com a necessidade de autodefesa, mas evoluiu ao interesse de alguns grupos em eliminar as forças de segurança nacional.

A partir de então, a violência dos ataques aumentou em níveis perigosos, marcando o início da guerra civil no território. Porém, mais que um conflito entre sírios - a favor ou contra o governo -, se instaurou uma batalha entre rebeldes e potências estrangeiras, fato que proporcionou aplicação de capital no conflito e, consequentemente, o aumento de armamento e combatentes.

O caos se estabeleceu por completo quando organizações extremistas, cada qual com seus interesses próprios, se envolveram no conflito. A participação de grupos como o Estado Islâmico (EI) e a Al-Qaeda aumentou a preocupação internacional sobre o acontecimento. Além destes, os curdos da Síria, grupo étnico que almeja o direito de autonomia, trouxeram ainda outra dimensão ao conflito - principalmente em detrimento do seu poderio quantitativo, com cerca de 25 a 35 milhões de indivíduos pelo globo.

Envolvidos no conflito
É perceptível a participação de inúmeros grupos e países neste conflito. As principais nações apoiadoras do governo são a Rússia e o Irã. A Rússia, que já possuía base militar no país antes da guerra, lançou campanha aérea a favor de Assad, em 2015, e este fato foi crucial para levar a balança do conflito em benefício do governo. Por sua vez, o Irã mobilizou centenas de soldados e movimentou bilhões de dólares para ajudar Assad, incluindo a contratação e envio de milicianos armados para lutar no exército sírio.

A Turquia, junto a países do Golfo, é grande apoiadora da oposição, mas sua principal ação foi mobilizar facções rebeldes para conter a milícia curda - sob acusação de serem a extensão de um grupo rebelde banido do país turco. Suas tropas tomaram trechos ao longo da fronteira norte da Síria e interviram para impedir um ataque das forças do governo na última barricada da oposição. Com um contexto similar, a Arábia Saudita, com intuito de inibir a influência iraniana, armou e financiou rebeldes no início da guerra. Enquanto isso, Israel tem realizado ataques aéreos com frequência crescente para limitar o poderio militar e de armas do Irã.

Entretanto, há uma grande influência dos países de cultura ocidental desde o início do conflito, cada qual com seu interesse econômico e geopolítico singular. Os EUA, Reino Unido e França, em primeiro instante, ofereceram apoio aos grupos rebeldes "moderados", mas priorizaram o apoio não bélico. Entretanto, com o avançar da guerra, uma coalizão internacional liderada pelos norte-americanos organizou ataques aéreos e enviou forças especiais ao país para dar suporte às alianças das Forças Democráticas Sírias (FDS). Estes grupos estavam em territórios dominados pelo Estado Islâmico e eram alvos por defender um governo democrático-federalista.

Consequências trágicas
Além do extenso número de mortes, a Guerra da Síria deixou mais de 2,1 milhões de civis feridos ou incapacitados, segundo o Observatório Sírio para os Direitos Humanos. Mas, o fator destaque desta situação é o grande fluxo de imigrantes. Antes da eclosão da guerra, o país tinha uma população de 22 milhões de pessoas. Metade destes cidadãos já saíram ou foram obrigados a deixar suas casas no território, outros 6,7 milhões estão desabrigados no território e, muitos, vivendo em campos temporários.

Além disso, 5,6 milhões de pessoas já se encontram com registro de refugiadas no exterior. A maior parte destes, 93%, estão alocados em países vizinhos, como Líbano, Jordânia e Turquia. As nações que recebem estes imigrantes encontram problemas para lidar com a situação, haja visto que este é um dos maiores êxodos de refugiados da contemporaneidade. Um exemplo deste desafio é o nascimento de um milhão de crianças em exílio - apenas das famílias sírias.

De acordo com a ONU, em janeiro de 2022, 13,4 milhões de sírios necessitavam de alguma assistência humanitária, incluindo seis milhões em situação de extrema carência. Foi relatado que mais de 12 milhões tinham dificuldades em se alimentar diariamente e que 500 mil crianças sofriam de desnutrição crônica. Em grande parte, esta situação foi agravada em 2020, com a desaceleração econômica, levando à queda drástica da moeda síria e ao aumento exorbitante dos preços, inclusive dos alimentos.

A estrutura vital da nação, assim como bairros inteiros, está destruída. Uma análise da ONU via satélite sugere que mais de 35 mil estruturas foram danificadas ou completamente em ruínas apenas em uma cidade, Aleppo - antes da nova invasão pelo governo em 2016. Os danos culturais também são extensos e incalculáveis. A herança síria está significativamente abalada, principalmente após a destruição dos seis Patrimônios Mundiais da Unesco localizados no país e os ataques à Palmira – antiga cidade semita.

Guerra em números

Fonte: ICRC ORG

Um grupo de monitoramento do Reino Unido com redes de fonte na Síria, denominado Observatório Sírio dos Direitos Humanos, registrou o número de mortes pelo conflito. Até dezembro de 2020, foram 387.118 mortes e, destas, 116.911 de civis. Entretanto, esses dados não fazem referência às 205.300 pessoas desaparecidas no país, incluindo 88 mil que, presumivelmente, teriam morrido em centros de tortura e prisões do governo.

Em contraste, o Centro de Documentação de Violações, grupo de monitoramento de informações de ativistas sírios, registrou 226.374 mortes, incluindo a de 135.634 civis - também até dezembro de 2020. Além disso, o Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para a Infância (Unicef) apontou números espantosos. Cerca de 12 mil crianças foram mortas ou feridas, mas os índices mais graves indicam até 22 mil.

O Centro de Documentação de Violações divulgou, nesta mesma data, um índice com as mortes registradas de civis e combatentes por grupo responsável: Governo da Síria, 156.329; grupos de oposição, 34.606; Estado Islâmico, 13.996; forças russas, 7.290; outros, 7.271; coalizão liderada pelos EUA, 3.330; Exército da Turquia, 1.662; Forças Democráticas da Síria, 1.364; e outros grupos jihadistas, 528.

Em relação aos refugiados sírios, a Eurostat, Serviço de Estatística da União Europeia, fez uma análise sobre a questão. Sobre os dez países europeus com mais pedidos de asilo, tem-se: Alemanha, 674.655; Suécia, 127.935; Grécia, 80.395; Hungria, 78.285; Áustria, 58.285; Países Baixos, 47.505; Bélgica, 28.450; França, 27.505; Bulgária, 22.960; e Dinamarca, 21.980. Outra questão apontada no relatório foi a quantidade de imigrantes sírios registrados em países vizinhos até o final de fevereiro de 2021. A Turquia encontra-se destacadamente em primeiro lugar, com 3.655.067 refugiados, seguida por Líbano (865.531), Jordânia (664.603), Iraque (243.121) e Egito (130.577).

Situação atual
A última barricada da oposição está localizada em Idlib e partes das províncias de Hama e Aleppo. O território é dominado por alianças extremistas e facções rebeldes. Porém, na região vivem cerca de 2,7 milhões de civis desabrigados, incluindo um milhão de crianças. Neste contexto, em março de 2020, Rússia e Turquia interromperam uma ofensiva na região para que o governo pudesse recuperar a área. Desde este episódio, o conflito conta com baixa atividade militar - apesar de que esta relativa pausa pode cessar a qualquer momento.

O governo de Assad recuperou o controle das maiores cidades da Síria, mas a maior parte do país ainda está sob controle de rebeldes e grupos opositores. Assim, não há como prever o fim do conflito. A Rússia, o Irã e a Turquia fizeram um acordo, em 2017, e formaram um comitê para criar uma nova constituição supervisionada pela ONU. Entretanto, em janeiro deste ano, a organização lamentou que não havia sido iniciado qualquer segmento do documento. Outra observação foi que, com cinco exércitos estrangeiros ativos no país, a comunidade internacional não pode responsabilizar apenas os sírios pela persistência do conflito.

Pandemia em meio à guerra
Fonte: Monitor do Oriente
Instalações médicas também foram alvos de ataques por toda a Síria. Cerca de 350 hospitais sofreram 595 ataques até março do ano passado, levando à morte de 923 médicos e, consequentemente, ao funcionamento de apenas metade dos hospitais do país - segundo análise dos Médicos pelos Direitos Humanos. Para agravar ainda mais a situação, desde março do ano passado, a crise humanitária foi agravada com a pandemia da Covid-19, pois o sistema de saúde do país está completamente fragilizado. Segundo os dados compartilhados pela Covid-19 Data Repository by the Center of Systems Science and Engineering at Johns Hopkins University (CSSE), atualizado em 24 de março, o país compreende 17.743 casos da doença, 11.794 pacientes já recuperados e 1.183 mortes. A média de novos casos por semana chega a 155 por dia.

A ONG Médicos Sem Fronteiras divulgou um relatório, em novembro de 2020, indicando a criticidade na região de Abu Dali – região de campos de refugiados. No local, há cerca de 16 residentes e, dentre estes, 7.059 casos de coronavírus, com o auge de 524 novos casos em um único dia. A fácil propagação do vírus diz respeito às condições precárias em que vivem tais famílias, divididas em barracas lotadas, algumas com apenas seis metros quadrados, e apenas três blocos de banheiros.

Fonte: Agência Brasil

Ainda segundo a MSF, a Síria conta com apenas nove hospitais de combate à Covid-19 para atender 4 milhões de habitantes. Além disso, o país dispõe de apenas 36 centros de isolamento e tratamento para oferecer o cuidado básico, isto é, voltado apenas aos pacientes com sintomas leves. Para ajudar no combate à escassez de estrutura e condições básicas de saúde, a MSF fornece kits de higiene para tentar amenizar a situação. Neste kit, a instituição consegue fornecer sabonete, detergente e balde.

Para tentar diminuir o crescimento potencial dos casos, foi instituído no país o “Bloqueio Planejado”, no qual a maior parte dos possíveis centros de aglomeração estão fechados, como mercados públicos, universidades e escolas. Contudo, pequenos comércios, farmácias e clínicas locais seguem com funcionamento habitual.
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Ineditismo histórico: Papa Francisco visita Iraque

 Por Maria Clara Ribeiro                


Março marcou a história do Cristianismo e do Islamismo, as maiores religiões da atualidade



Na primeira sexta-feira do mês março, o Papa Francisco, líder mundial da Igreja Católica Apostólica Romana e maior autoridade política-cristã, deu início à 33ª viagem internacional de seu pontificado rumo ao Iraque, berço de muitas comunidades muçulmanas. Foram três dias de uma agenda repleta de encontros com autoridades religiosas locais, envolvendo líderes e membros de ambas as doutrinas.
O pontífice se inspirou na necessidade de se estabelecer a paz em todo território, independentemente das crenças religiosas. Para efetivar esse compromisso, o tema escolhido para a visita oficial foi o lema 'Sois Todos Irmãos'. A citação é extraída do Evangelho de Mateus. "Vou como peregrino da paz mendigando fraternidade, animado pelo desejo de rezamos juntos e caminharmos juntos", proclamou o papa em uma mensagem oficial divulgada pelo Vaticano.




Fonte: El Pais

A visita marca a trajetória de ambas as religiões. Ultrapassando os limites do contexto geopolítico do Oriente Médio, a atual pandemia deposita uma dose ainda maior de ineditismo a esse evento de panorama internacional e caráter histórico.

A pandemia da Covid-19 tornou 2020 o primeiro ano, desde 1978, sem viagens pontífices internacionais. Assim como afirmam as estatísticas diárias ao redor do mundo, por governos e órgãos oficiais de integração multinacional, ainda não há uma previsão concreta para o cessar da disseminação do coronavírus. Em contrapartida, o Vaticano considerou que o presente panorama, aliado à imunização de Francisco e aliados da delegação, já instaurou um ambiente minimamente seguro para restabelecer as viagens papais.

Nesse cenário, o Papa presidiu a primeira missa pública em território iraquiano. A celebração foi realizada na Igreja de São José, na capital do país, Bagdá. O encontro foi limitado devido às precauções contra o coronavírus, com público estimado em cem pessoas, mas o santuário registrou a presença de uma multidão – sem a divulgação de números exatos. Apesar do uso obrigatório de máscara, o distanciamento social não foi respeitado.

A visita por si já tem grande valor, mas ganha ainda maior dimensão com encontro do pontífice e aiatolá Ali Al Sistani, maior autoridade xiita iraquiana e que tem poderosa e decisiva voz política nas decisões do país. O encontro sucedeu-se em Najaf, ao sul da capital, caracterizada como a "cidade santa" do islamismo xiita e onde reside o grupo segundo maior componentes crentes islâmicos - também considerados os mais tradicionalistas, segundo Mirticeli Medeiros, vaticacionista e pesquisadora de história do catolicismo na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.

O encontro dos líderes durou cerca de 55 minutos e teve como assunto central a segurança da população cristã do país, que é uma minoria ameaçada. Essa pequena parcela iraquiana é parte dos alvos dos conflitos na região, onde as guerras e a violência de grupos extremistas - como o Estado Islâmico (EI) - ainda assolam todos, mas principalmente as famílias mais desamparadas.

O líder Católico afirmou a importância da criação de laços entre as comunidades religiosas e as vantagens desta relação ao Iraque e ao Oriente Médio. Já o Aiatolá reforçou o papel das lideranças religiosas no combate a violência e mandou um recado às grandes potências, pedindo que abandonem o desejo à guerra, que está presente no cotidiano do país há mais de 40 anos.

Outro local visitado por Francisco durante sua viagem foi Ur, conhecido como Berço de Abraão, cuja razão reside em ser a região de nascimento do profeta em cujo sistema de crenças se baseiam as religiões monoteístas - além de cristianismo e islamismo, a originária judaísmo. Para além dessa razão, nesta mesma região, em 2014, Francisco apoiou a campanha militar internacional para intensificar as forças iraquianas e, em 2019, condenou a repressão de uma revolta popular contra o rígido poder regente.

Para a recepção do Papa, as cidades próximas a Bagdá prepararam mensagens de boas-vindas e apelos de uma boa relação com o país. Mas o destaque foram as mudanças na infraestrutura da região: estradas foram pavimentadas, pontos de segurança foram reforçados e obras de renovação foram instauradas até mesmo em locais que não estavam delimitados como centros de encontros oficiais da visita. Todas estas melhorias foram implantadas para os apenas três dias de visita do pontífice.


Religião em números
O islão é a segunda maior religião do globo em número de adeptos, com cerca de 1,5 bilhão de mulçumanos, compreendendo cerca de 24% da população mundial, estando atrás apenas do cristianismo, com 31%, correspondente a 2,3 bilhões de fiéis – dados de 2012, divulgados pela The Word Factbook, elaborados pela Central Intelligence Agency (CIA).

Fonte: The Word Factbook


A comunidade cristã iraquiana é uma das mais antigas e diversas em todo o planeta, incluindo a existência de caldeus (conhecemos como católicos), ortodoxos e protestantes. Entretanto, em meio às constantes ameaças e riscos que esses grupos enfrentam, o número destes religiosos apresentou uma queda significativa nos últimos anos.

Segundo dados da ONG Hammurabi, focada na propagação e garantia dos Direitos Humanos no país, em 2003, os cristãos compunham 6% de todos os habitantes nacionais - cerca de 1,5 milhões. Já neste ano, os números apontam para 400 mil iraquianos cristãos, aproximadamente apenas 1% da população total. Entretanto, os dados apontados pela fundação pontifícia Ajuda à Igreja que Sofre (ACN) são ainda mais espantosos. Seus números indicam que a população cristã do país caiu de 1, 5 milhão, em 2003, para menos de 250 mil atualmente.

Ambos os números coincidem com o fim do governo ditatorial de Saddam Hussein (1937-2006), vigente até 2003, e seguido pela ascensão do grupo jihadista extremista Estado Islâmico. Além disso, atualmente os xiitas são 64% dos iraquianos, seguidos pelos sunitas, com 32%. A importância destes números reside em seu potencial histórico, pois é a primeira vez que um papa visita uma nação de maioria xiita.

Riscos reais

Ataques violentos são comuns na região central do Iraque, alvo da visita pontifícia. Apenas em 2021, ocorreram dois ataques de grande dimensão: em janeiro, um ataque terrorista deixou mais de 30 mortos em Bagdá; já no início de março, apenas cinco dias antes da visita papal, dez foguetes atingiram uma base militar norte-americana. Por esta razão, o Vaticano afirmou em reuniões de assessoria que essa seria a viagem mais arriscada do pontificado de Francisco.

Fonte: BBC Brasil

Apesar de ser seguido por seus próprios agentes do Corpo de Gendarneria em viagens internacionais, a segurança do pontífice também deve ser garantida pelo país anfitrião. Ao contrário da preferência de Francisco, o Vaticano fez o uso de um automóvel blindado para transportar o papa em detrimento dos possíveis atentados riscos sanitários.

Aos nossos olhos
Enquanto é preciso unir forças internacionais para garantir a segurança dos cristãos no Oriente Médio, pelo simples fato de serem uma minoria, no Brasil é perceptível uma posição ambígua.

Em janeiro de 2020, uma pesquisa instituto de pesquisa Datafolha sobre a religião dos brasileiros constatou que 50% da população é católica, um número de proporções grandiosas, seguido por 31% evangélica e 10% sem religião definida. Os menores dados são respectivos à espírita (3%), umbanda, candomblé ou outras religiões afro-brasileiras (2%), ateísta (1%) e judaica (0,3%). Outras religiões não citadas no relatório ocupam, juntas, 2% de toda a população brasileira.

Em consonância com este fato, as denúncias de intolerância religiosa aumentaram 56% no país em 2019, segundo relatórios do Balanço Disque 100 – Disque Direitos Humanos. Antes de apresentar números, vale ressaltar que este é um serviço de informações sobre os direitos básicos sociais, em destaque aos grupos mais vulneráveis, e denúncias de violações. A plataforma realiza atendimentos 24h de forma gratuita e anônima, podendo ser usada por qualquer cidadão.

Fonte: cebi.org.br

Os dados apontam que, entre 2015 e 2019, houve 2.722 casos de intolerância religiosa no país, gerando uma média de 50 ataques por mês. Entretanto, este número assusta especialistas pela possibilidade de serem ainda mais expressivos, pois deve ser considerado o medo dos fiéis em efetivar sua denúncia. Esta insegurança pode se basear na constante ameaça de repetição do ato, seja de violência ou discurso de ódio, ou receio de que as autoridades não concedam o suporte necessário.

É importante destacar que nos casos identificados, os ataques a religiões de matriz africana são os mais numerosos, apesar de serem uma das minorias no país.

Mas, apesar do que afirmam os fatos, Jair Bolsonaro, em um discurso na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em agosto de 2020, contradisse a laicidade e secularidade constitucional do país, afirmando que o Brasil é uma nação cristã. Além desse grave erro, o atual presidente realizou, ainda, um apelo internacional “pela liberdade religiosa e combate à cristofobia”.

Em uma entrevista concedida à BBC News, Renan Quinalha, professor de Direito da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), afirmou: "É evidente que cristãos são perseguidos em outros países, mas isso não acontece no Brasil, onde eles são a esmagadora maioria". No mesmo encontro, Marco Cruz, secretário-geral da ONG Portas Abertas - que auxilia cristãos sob perseguição religiosa -, apresenta sua perspectiva como cristão. “Nós podemos expressar nossa fé livremente, ninguém é expulso de algum local por ser cristão, nenhuma pessoa morre ou é presa no Brasil por ser cristã", exemplifica.

Além disso, a ONG Portas Abertas produz, há 25 anos, um ranking de 50 países onde os fiéis adeptos ao cristianismo são perseguidos com mais intensidade. A lista é construída a partir de relatos de ataques e violência religiosa. Desde sua criação, o Brasil nunca apareceu na lista.
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Nova York anuncia proposta para legalizar uso da maconha

Por Maria Clara Ribeiro                

Como uma das regiões de maior influência e importância no país, a remoção das sanções penais sobre a maconha no estado de Nova York pode repercutir em novos debates. A proposta partiu de iniciativa do governador Andrew Cuomo. Em dezembro de 2018, o político afirmou que o processo estava entre suas prioridades legislativas e, assim, junto aos legisladores, chegou em comum acordo acerca do documento de legalidade.

O histórico nova-iorquino não é recente: o Estado discute a descriminalização da maconha desde 1977. Em 2014, Nova York regulamentou a planta para uso medicinal e a atual legislação, que compreende a descriminalização da erva, consiste no pagamento de multas. Pela legislação em vias de ser modificada, cidadãos flagrados com posse de menos de 20g devem pagar US$50,00. Já a posse de 28g a 56g de maconha se torna passível de multa de até US$200,00 - com condições variáveis. Vale ressaltar a alcance da alteração, haja vista que, anteriormente, o cidadão era enquadrado como contraventor Classe B.

Fonte: G1 Globo
Atualmente, mais de 30 dos 50 unidades federativas estadunidenses permitem o uso da erva para fins medicinais. Em contrapartida, segundo o grupo ativista Marijuana Policy Project e o The GrowthOp, dez estados, mais o Distrito de Columbia (DC), já optaram pela legalização.

Propostas do Projeto
O projeto visa a permissão do uso legal e recreativo da maconha para adultos com mais de 21 anos de idade, incluindo a compra de produtos derivados de varejistas licenciados. Inclui-se também o cultivo de até seis pés da planta para uso pessoal, das quais apenas três podem ser amadurecidas concomitantemente. Além disso, o projeto permite a abertura de centros comerciais dedicados ao consumo do produto. Vale ressaltar que os municípios não podem proibir estas medidas, apenas impor regulamentos.

Sobre as delimitações comerciais, as dez operadoras de maconha medicinal do estado podem funcionar com três lojas cada. Os produtos serão tributados em 13% e, destes, 9% iriam para os cofres do estado e 4% para os municípios.

Fonte: Reprodução


Caso aprovada, as vendas devem ter início apenas em dezembro de 2022 de acordo com os prazos necessários para o estabelecimento de normas do novo mercado. O Marijuana Business Daily projeta a circulação de US$2,3 bilhões anuais em até quatro anos de instauração do novo comércio. Se correto, o estado se tornará o maior mercado de maconha dos Estados Unidos, ultrapassando a Costa Leste.


Impacto Econômico
De acordo com a apuração do Money Times, NY estipula a arrecadação de mais de US$350 milhões em impostos anuais com a comercialização legal de canabis. A questão principal é quanto deste total será repassado às comunidades mais atingidas pela guerra às drogas, além de recuperar o déficit de US$15 bilhões durante a pandemia. Outra questão que entra na disputa financeira do estado é a redução de aluguel e a recuperação de pequenas empresas.

Em janeiro deste ano, Cuomo solicitou que US$100 milhões da nova receita tributária possa ser destinada ao Fundo de Equidade Social da Cannabis por um período de quatro anos e US$50 milhões nos anos seguintes. Ao perceber a delicadeza da situação, é possível inferir que, nos próximos tempos, será travada uma batalha fiscal. A negociação se baseia na Lei de Regulamentação e Tributação da Maconha, de 2013, que define o repasse de maior parcela do dinheiro às minorias.

Segundo dados da proposta oficial, 40% da receita seriam destinados a comunidades formadas por minorias, 40% para investimentos de educação pública e os demais 20% para programa de tratamento de prevenção às drogas. O texto também prevê a concessão de créditos para fomentar a criação de empregos e garantias de participação a pequenos fazendeiros, mulheres e veteranos de guerra portadores de deficiência física, assim como membros de grupos minoritários.


Racismo estrutural e sistema carcerário
Segundo o diário The New York Times, cerca de 160 mil pessoas com condenações em primeiro grau passarão por revisão de caso e terão a ficha limpa. Segundo especialistas do jornal, a decisão poderá beneficiar, principalmente, negros e hispânicos. Essas comunidades são as mais afetadas na guerra às drogas do país norte-americano, sendo também os mais impactados pelas rígidas leis contra o consumo da erva.

Fonte: Reprodução


Negros e latinos correspondem a 86% dos população do sistema carcerário em Nova York. Segundo dados da União de Liberdades Civis de Nova York, esse número equivale a mais de 800 mil pessoas. A taxa de prisão de negros foi cerca de 14 vezes superior ao de brancos - em casos de prisão por porte e/ou uso da maconha, entre 2000 e 2008. No mesmo período, a prisão de hispânicos correspondia a sete vezes mais. Apenas em 2018, a Big Apple prendeu mais de 17,5 mil pessoas por posse da erva.

Segundo Jeffrey Miron, professor de Harvard, os índices de assassinatos nos EUA aumentaram massivamente quando o álcool foi banido e, diretamente relacionado, caíram quando voltou a ser legalizado. Segundo o especialista, não é possível que nenhum país imponha leis de drogas a todos os cidadãos que as infringem e cita que 50% da população já agiu fora da lei. Isto é, nenhum país pode aprisionar metade de sua população.


Enquanto isso, no Brasil
O Estado usa a “guerra contra as drogas” como pretexto para reprimir parcelas da população, motivado por seus interesses político-econômicos. No Brasil, é perceptível que estes grupos se referem à população mais pobre, vitimando principalmente jovens negros de periferia. Com este pretexto, as operações invasivas e extremamente violentas se tornem aceitáveis por grande parcela da sociedade e como resultado direto desta “guerra”, acarretada pela proibição das drogas, como afirma a juíza Maria Lucia Karam, tem-se a média anual de 30 mil dos assassinatos no Brasil (2019).

Os buracos nas paredes das casas confirmam a constante ameaça a todos das comunidades, mas, ainda assim, a população brasileira apresenta posição majoritariamente contrária à legalização de drogas. Segundo uma apuração do mesmo veículo, dois a cada três brasileiros se dizem contrários à liberação recreativa da maconha, em 2018. Contudo, o governo federal tenta instituir propostas de flexibilização, como o encaminhamento do projeto de lei 399/2015 que propõe a legalização da Cannabis para uso medicinal no país.

Dentre as principais queixas contra o documento, temos a preocupação com os efeitos nocivos do uso crônico da erva e a possibilidade de um grave problema de saúde pública. Porém, estudos epidemiológicos psiquiátricos apontam rasas alterações no uso de maconha nos estados americanos nos quais houve permissão para o uso medicinal. Segundo pesquisa do Levantamento Nacional sobre Uso de Drogas e Saúde dos Estados Unidos (NSDUH), mesmo em estados com liberação de uso recreativo, o aumento foi mínimo.

No Brasil, é preciso encarar outro problema central: o preconceito. Há uma intensa criminalização dos usuários.

Números brasileiros da guerra às drogas
Segundo o Atlas da Violência de 2020, os negros são 75% das vítimas de homicídios no país, apesar de constituírem 56% da população brasileira. Este dado mostra que esta parcela de brasileiros apresenta 2,7 mais chances de serem assassinados. Dados da pesquisa Datafolha de 2018, mostram que o Rio de Janeiro apresentava uma taxa de 37,6 homicídios a cada 100 mil habitantes, maior que a média nacional – de 31,6. Apesar dos conflitos entre facções criminosas, que disputam entre si por controle de territórios, as forças policiais são responsáveis por 1/3 das mortes. Na capital fluminense, em 2019, a polícia matou 726 pessoas.

Mas este alto número não é cabível apenas neste estado, pois 11% das mortes violentas intencionais, em 2018, foram provocadas pelas forças policias. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, dos 57.358 homicídios, 6.220 foram ocasionados por estes profissionais – sendo 99,3% homens, 77,9% entre 15-29 anos e 75,4% negros. Estes dados estão intrinsicamente relacionas à presença violenta do estado nas regiões mais carentes do país.

Fonte: Agência Brasil

Os estados de São Paulo e Rio de Janeiro gastaram cerca de R$5,2 milhões para aplicação da Lei das Drogas, em 2017. Este valor equivale a 12% das despesas de segurança pública, segundo o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec), divulgados nesta segunda-feira (29). Como instrumento de comparação, especialistas afirmam que os gastos seriam suficientes para comprar mais de 90 milhões de doses da vacina contra a Covid-19 desenvolvidas pelo Instituto Butantan e, consequentemente, imunizar 21% da população brasileira.

Economistas estimam que, apenas em 2017, o governo federal tenha gasto R$15,4 bilhões com a “guerra às drogas”, caracterizando 5.9% no PIB nacional. Este valor é tido como extremamente alto, principalmente por equivaler a apenas 0,57% do mercado de droga no planeta – mesmo estabelecendo relações de fronteira com os três maiores produtores de cocaína do mundo (Colômbia, Peru e Bolívia).

Além disso, o Brasil tem a terceira maior população carcerária do globo, com 750 mil indivíduos encarcerados, estando atrás apenas dos EUA (2,1 milhões) e China (1,7 milhões). O número pode espantar ainda mais ao estabelecer a seguinte correlação: são 350 presos para cada cem mil pessoas. Dentre as teorias dos especialistas, a explicação mais aceita é a atual Lei de Drogas, de 2006, que permite margem para enquadrar usuários como traficantes.

O tráfico de drogas é o segundo crime com maior incidência no sistema carcerário brasileiro, correspondendo uma a cada cinco prisões, mas o índice apresenta dados crescentes entre as mulheres (51%), jovens de até 29 anos (45%) e negros (67%). O mais agravante da situação é que 30% dos presos brasileiros ainda não foram a julgamento.

Com o início da pandemia da Covid-19, as operações policiais nas comunidades foram limitadas pelo Supremo Tribunal Federal, o qual exige justificativa e comunicação ao Ministério Público. O interessante é que, após essa limitação das forças policiais e sua política de repressão, houve uma redução de 20% dos números de assassinatos no mesmo período, 798 pessoas mortas entre junho-agosto contra 1.001 no mesmo período do ano anterior.
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Esvaziamento de pautas: forma como a questão racial no BBB é positiva ou negativa?

 Por Camila Machado                


O Big Brother Brasil 21 causou raiva e revolta em muitos telespectadores do reality show da Rede Globo. A rapper eliminada Karol Conká, cujas falas contra nordestinos e visões preconceituosas e desconexas sobre modos de ser das pessoas pretas geraram uma forte rejeição. Conká mostrou no pouco tempo em que esteve no programa que os ‘canceladores’ também podem ser ‘cancelados’. O termo cancelar – usado nas mídias sociais para repudiar uma atitude negativa de algum famoso – tomou uma grande proporção diante das atitudes problemáticas da rapper, a “internet” se emprenhou em tirá-la do programa e assim foi feito. Karol saiu com 99,17% de rejeição. Muitas são as perspectivas de análise desse caso, mas chamo a atenção para a questão racial que envolveu a participação e repercussão da Karol no reality.

Vários internautas, anônimos e intelectuais, foram às redes sociais manifestar sua preocupação quanto aos efeitos que as atitudes desses influenciadores estão tendo sobre a compreensão da questão racial pelo público. Vários intelectuais pensavam que a atuação de Karol Conká causaria um grande dano aos esforços do movimento negro nos últimos anos. E certamente causou, embora tal edição do programa tenha sido a que mais teve participantes negros e uma das que mais discutidas na casa é sobre questões raciais e envolvendo minorias.


Mas, não podemos nos esquecer das vezes em que a identidade racial de algumas pessoas da casa foi questionada, como o economista Gilberto que sofreu piadas quando disse que se considerava negro. Acusações e julgamentos sempre acompanharam a história do reality e isso não está sendo diferente agora. A participante Lumena virou meme por “fazer militância errada" e foi acusada de ser hipócrita e incoerente diversas vezes como quando questionou a sexualidade de um participante que se assumiu bissexual, embora falasse o tempo todo sobre direitos LGBTQIA+. O problema não se encontra nas críticas feitas aos participantes, mas sim na generalização das atitudes, vistas como erradas, dos participantes como se fossem representativas do movimento negro (que é formado por muitos grupos e inúmeras entidades). É preciso ter em mente que eles estão ali representando a si mesmos e não um movimento, embora muitas vezes a linha tênue que separa esses dois campos se rompa. A problematização se encontra no fato de que as pessoas pretas, principalmente as que são figuras públicas, tendem a ter seus erros coletivizados, como se sempre estivessem agindo como ativistas, como parte de um movimento.

A forma como a questão racial é apresentada ao público também é algo a ser discutido. Tudo no reality responde a um critério de consumo fácil e efêmero. Nada precisa perdurar. As opiniões sobre desconstrução das imagens raciais são sempre diretas, superficiais e às vezes até brutais. Tudo isso acaba por banalizar temas de extrema importância e que deveriam ser tratados de forma séria e não como "polêmica". As ofensas contra nordestinos, pretos e mulheres ditas no programa são sempre apresentadas de forma suscetível a se perder com o tempo, esvaziando pautas importantes e discussões necessárias.

A pergunta que fica é se a representatividade negra e as outras múltiplas pautas “levantadas” no programa estavam melhor vistas antes do BBB21 ou  ficaram piores no imaginário nacional? Mas, uma coisa se mostrou evidente como aponta Serge Katembera, doutorando em Sociologia pela UFPB: “Seja na política ou no BBB, a falta de pudor precisa sempre estar acompanhada de um certo glamour”.
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Estatuto da Gestante: O que há de problemático nesse projeto de lei?

Por Camila Machado                

Um símbolo do retrocesso na discussão do estupro no Brasil que coloca em risco a já baixa autonomia e controle da vítima sobre seus corpos


Está em tramitação no Senado o projeto de lei 5.435/2020 para a criação do "Estatuto da Gestante". A proposta de autoria do senador cearense Eduardo Girão (Podemos) serviria, segundo o senador, para proteger integralmente as gestantes desde o momento da concepção. A ideia de Girão é que um programa de "suporte subsidiário que assegure o nascimento da criança concebida", mas a proposta apresenta pontos problemáticos. O projeto desconsidera as vítimas de estupro e parece querer, na prática, incentivar as vítimas de estupro a não abortarem mediante ao pagamento de um auxílio financeiro.


Esta PL é fruto do conservadorismo e não de uma análise social e de saúde pública, simboliza um retrocesso na discussão do estupro no Brasil. Apesar de não se tratar de um projeto que fala de forma direta sobre a interrupção da gravidez, é importante questionar objetivo por trás desta proposta que acaba por restringir a possibilidade de aborto, mesmo nos casos legais, ao incluir a proteção de direito à vida "desde a concepção".

A PL 5.435/2020 se mostra legislativamente contraditória e coloca em cheque até as três as situações em que o aborto é legalizado no Brasil. Além da gravidez que decorre do estupro, a intervenção pode ser realizada para salvar a vida da gestante ou quando o feto é anencefálico. Mas, o projeto em seu art. 8º proíbe que “particulares causem danos à criança por nascer em razão de ato ou decisão de qualquer de seus genitores”, o que na prática significa que os médicos ficam proibidos de realizar o aborto. Portanto, se aprovado, o art. 8º entrará em contradição com o Código Penal, que garante o direito ao aborto em caso de gravidez resultante de estupro (art. 128, inciso II). Com duas leis válidas a segurança jurídica será colocada em risco.


Outro ponto problemático diz respeito à “paternidade do estuprador” defendida no projeto. A proposta é “obrigar” o genitor a cuidar do feto e também da gestante (art. 4º, §2º), e garantir que ele, além de pagar a pensão alimentícia, tenha o direito de conviver com a criança após o nascimento (art. 10º). O problema se encontra exatamente nessa narrativa que desconsidera totalmente o fato de que quando uma gravidez é resultante de estupro, esse “genitor” é o estuprador. O estupro é um crime hediondo que viola gravemente os direitos humanos da mulher e é impensável que esteja em tramite legal um projeto de lei que dá direito à paternidade a um estuprador, um agressor. A PL desconsidera todo o sofrimento da vítima de estupro e deseja forçá-la a lidar não só com as lembranças e os danos psicológicos da violência, mas também conviver com seu abusador.



Mas, a parte que ganhou mais repercussão foi a que se refere a chamada “bolsa estupro”. A proposta defende que caso a gestante vítima de estupro não disponha de meios econômicos suficientes para cuidar da vida, da saúde, do desenvolvimento e da educação da criança, o Estado arcaria com os custos pagando um salário-mínimo até que a criança completasse 18 anos. O senador na justificativa da proposta diz que o Estado arcaria com as despesas da criança "até que se efetive o pagamento da pensão alimentícia por parte do genitor ou outro responsável financeiro especificado em lei, ou venha a ser adotada a criança, se assim for a vontade da gestante, conforme regulamento".

A PL volta a desconsiderar um fato importante: As mulheres, mesmo as que vivem em uma situação vulnerável financeiramente, não querem ter um filho fruto de um estupro devido a sua condição econômica, mas exatamente por aquele feto representar a violação que sofrera. Fora isso, se hoje as vítimas de estupro já são responsabilizadas socialmente por serem abusadas, as acusações só aumentarão com a aprovação deste projeto de lei. Não é difícil imaginar como, em pouco tempo, as vítimas de estupro teriam de lidar com comentários como: “mentiu que foi estuprada só para ficar com o dinheiro”, “saiu com essa roupa só pra ser estuprada, porque sabia que ia ganhar dinheiro depois” etc.


O assunto ganhou repercussão nas redes sociais por meio da hashtag #GravidezforçadaÉTortura e no dia 23 de março, após pressão feita pelo movimento das mulheres, a senadora Simone Tabet disse que vai excluir a "bolsa-estupro" e restrição a aborto legal do projeto de Estatuto da Gestante. No site do senado, 53.716 pessoas votaram contra a proposta até às 18h daquele dia. Entretanto, o parecer não impede a votação e a senadora apenas antecipou esta mudança. O simples fato de um projeto de lei como esse estar sendo colocado em votação reflete as dimensões da misoginia desse país. Uma proposta que obriga a vítima de um crime hediondo como o estupro a se responsabilizar por ele e carregar os traumas dessa violência para o resto da vida é no mínimo desprezível.

Envolver o Estado nessa naturalização da violência contra mulheres é retroalimentar a cultura que estimula esse crime. Tirar ainda mais a autonomia e o controle da vítima sobre seus corpos é grave, mas o Senado parece não ter consciência dessa gravidade. A própria apresentação desse projeto desconsidera o fato de que estupro é crime e, portanto, um estuprador que engravida alguém não pode jamais ser chamado de pai. Impedir o aborto em caso de estupro é permitir que estupradores continuem tendo imunidade jurídica sobre seus crimes, é dar direitos ao estuprador, é tortura.
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Acesso à tecnologia: Pré-requisito para aprovação no Enem 2020?

 Por Camila Machado                

As provas do Exame Nacional do Ensino Médio que aconteceriam em novembro de 2020, foram adiadas para os dias 17 e 24 de janeiro deste ano. O Enem 2020 teve o  maior número abstenção desde 2009: dos 5,7 milhões inscritos, 51,5% dos estudantes não compareceram. O aumento no número de casos de Coronavírus e o agravamento das desigualdades socioeconômicas pelo isolamento social podem justificar tais números. Foram dez meses sem aula presencial, com milhares de estudantes de escolas públicas dentro de casa e muitas vezes em estado de vulnerabilidade social. Com as escolas fechadas, alunos de baixa renda tiveram dificuldades no acesso à internet para estudar. Um preocupante aumento da desigualdade educacional se desenhou novamente no horizonte brasileiro.


Um levantamento da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) mostra que a maior parte dos estudantes das universidades federais tem renda mensal per capita de até um salário e meio (70,2%) e é negra (51,2%). Em 2010, apenas 37,5% dos estudantes das instituições federais de ensino superior haviam cursado todo o ensino médio em escolas públicas. Em 2018, esse percentual subiu para 60,4%. Mas, existe agora uma preocupação com o impacto que a pandemia trazer nesses números, já que boa parte dos alunos da rede pública não tiveram condições de estudar à distância e o Enem é a principal porta de entrada para o ensino superior no Brasil.

A pandemia agravou a precariedade das condições socioeconômicas de muitos candidatos e tudo indica que criou ainda mais obstáculos para aqueles que já enfrentavam a desigualdade educacional brasileira.  Não terá o Enem 2020 contribuído para restringir as vagas ao ensino superior aos estudantes que têm acesso a internet? Uma pesquisa Juventude e Pandemia do Coronavírus, divulgada em junho de 2020 pelo Conselho Nacional da Juventude, mostrou que 49% dos jovens entrevistados já tinham pensado em desistir do Enem. Daqueles que pretendiam fazer o exame, 56% estavam muito preocupados com seu desempenho na prova e 67% não estavam conseguindo estudar desde que as aulas foram suspensas. Não podemos nos esquecer de que uma coisa é utilizar o smartphone para trocar mensagens, postar fotos nas redes sociais, que demanda um pacote mínimo de dados de internet. Outra coisa é usar o aparelho para estudar em plataformas pesadas que necessitam de um tráfego maior.

O Enem ajudou, em conjunto com uma série de outras políticas, a democratizar o acesso ao ensino superior. Na edição de 2019, foram ofertadas 237.128 vagas em 128 instituições de ensino superior públicas de todo o país, segundo dados do Inep.  Mas, a preocupação é que essa democratização tenha sido colocada em risco com a prova de 2020. É inegável que a pandemia contribui para este quadro, mas o Inep tinha a opção de cancelar ou adiar o exame. O ministério da Educação, como um todo, realmente fez tudo o que podia para diminuir os impactos negativos que a pandemia trouxe para os alunos de baixa renda? O Inep considerou os obstáculos impostos a estes alunos devido à falta das aulas e como isso impactaria no rendimento destes na prova? E ainda, será que realmente podemos falar de democratização do acesso ao ensino superior? Ou tudo que temos são cortinas de fumaça que tentam mascarar a desigualdade educacional existente no país?

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