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quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

O vício em games e a gamificação: entretenimento e dependência

Por Antônio C.M. Mesquita

O vício em games e o universo dos e-sports são fenômenos interligados, que revelam tanto o lado prazeroso e competitivo dos jogos eletrônicos quanto os riscos do uso excessivo e descontrolado. Enquanto os e-sports representam uma evolução dos jogos para o cenário competitivo e profissional, o vício em games é um transtorno comportamental que vem ganhando atenção crescente no campo da saúde mental.

Sua principal característica é uma necessidade compulsiva de jogar, levando o indivíduo a negligenciar responsabilidades pessoais e sociais. Esse transtorno pode trazer consequências físicas e mentais, como problemas musculares, aumento da ansiedade e isolamento social. O desenvolvimento dessa dependência é complexo e pode ser influenciado por fatores biológicos, como predisposição genética, e fatores psicológicos e sociais, como impulsividade, baixa autoestima e o ambiente de isolamento.

O uso de recursos eletrônicos, como redes sociais e videogames, pode ser uma ferramenta de alívio do estresse e proporcionar satisfação, especialmente para jovens que enfrentam desafios na vida real. No entanto, conforme alerta o psiquiatra Renato Silva, essa busca por satisfação digital pode se transformar em um problema quando o uso excessivo começa a substituir atividades essenciais, como manter uma rotina de sono saudável, estudar, trabalhar e socializar.

Segundo Silva, apesar dos benefícios potenciais dos jogos eletrônicos, como o desenvolvimento de habilidades cognitivas e motoras, o uso exacerbado pode estar ligado a vulnerabilidades pessoais. Jovens com baixa tolerância à frustração, ansiedade social e baixa autoestima podem ser mais suscetíveis ao uso excessivo dos jogos e redes, na busca de um alívio para essas dificuldades emocionais.

Além disso, existe uma relação entre o vício em tecnologia e transtornos mentais, como depressão, transtorno bipolar e TDAH. Contudo, a relação de causa e efeito entre esses transtornos e o vício ainda não é totalmente clara: a ciência ainda investiga se a dependência digital pode ser um gatilho para o desenvolvimento de certos transtornos ou se, ao contrário, esses problemas de saúde mental tornam o indivíduo mais propenso ao uso excessivo.

Esse cenário ressalta a importância do equilíbrio. Embora a tecnologia possa ser uma aliada para aliviar o estresse e desenvolver habilidades, a conscientização sobre o uso excessivo e a busca por alternativas de bem-estar na vida offline são essenciais para a saúde mental e o bem-estar dos jovens. O tratamento desse transtorno pode envolver psicoterapia, como a terapia cognitivo-comportamental, além de medicação para tratar sintomas associados, e grupos de apoio, que proporcionam suporte de pessoas com vivências semelhantes.

E-sports: A Nova Era do Esporte

Os e-sports, ou esportes eletrônicos, surgiram como competições de jogos eletrônicos disputadas por jogadores profissionais. Com uma estrutura similar à de esportes tradicionais, os e-sports possuem ligas, campeonatos e torcidas. Esse universo conquistou um público global, impulsionado por fatores como a acessibilidade dos jogos, a formação de comunidades, e a transmissão ao vivo em plataformas de streaming como Twitch e YouTube.

Para alcançar um alto desempenho, os jogadores de e-sports têm acompanhamento psicológico, treinam intensivamente, seguem uma rotina e são avaliados por equipes de gestão e recrutamento. Essa estrutura competitiva espelha as demandas físicas e mentais de esportes tradicionais, diferenciando-se apenas pelo meio virtual.

A prática dos e-sports já é reconhecida como esporte em diversos países, como Itália, Rússia, Finlândia, Malásia, Coreia do Sul e China, onde competições e eventos atraem milhões de espectadores e são economicamente relevantes. Jogos como xadrez, pôquer e Go também passaram a ser considerados esportes por possuírem estruturas competitivas, campeonatos e um desenvolvimento de habilidades complexas.

Gameficação e sociedade

Os jogos, que antes eram vistos apenas como passatempo, estão se revelando ferramentas poderosas para transformar a sociedade. Através de mecânicas que ensinam habilidades valiosas e narrativas que abordam temas sociais relevantes, os games estão ganhando um papel cada vez mais importante em nossa cultura.

A ascensão dos jogos eletrônicos como forma de entretenimento e interação social trouxe consigo uma série de desafios e oportunidades para a sociedade. É fundamental analisar ambos os lados da moeda para entendermos o impacto real dessa transformação.

Os jogos online facilitam a criação de comunidades globais, onde pessoas com interesses em comum podem se conectar e interagir, permitindo também a expressão sua criatividade de diversas maneiras, seja através da criação de conteúdo, da participação em comunidades online ou da construção de mundos virtuais. Essas comunidades podem promover a inclusão e o apoio social. Outro ponto a se considerar é o fato da indústria de jogos ser um dos setores que mais crescem no mundo, gerando empregos e movimentando a economia.

Conclusão

Os e-sports são uma expressão moderna de competição e cultura que transformam os jogos eletrônicos em um espetáculo profissional. Ao mesmo tempo, a conscientização sobre os riscos do vício em games é fundamental, para que o universo dos jogos possa ser aproveitado de forma saudável e equilibrada. A popularidade dos e-sports e a crescente preocupação com a saúde mental dos jogadores mostram que os jogos eletrônicos, quando bem geridos, podem ser uma fonte de entretenimento e realização. Ao compreendermos os desafios e oportunidades que eles apresentam, podemos trabalhar para maximizar seus benefícios e minimizar seus riscos, construindo um futuro mais justo e equitativo para todos.





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terça-feira, 7 de novembro de 2023

O apagamento das dores sociais: quando o espetáculo ofusca as necessidades reais

 Por Maria Eduarda Salgado 

Na era da informação instantânea e da torrente incessante de notícias, uma preocupação surge com mais clareza do que nunca: a influência da mídia na formação da percepção pública. Recentemente, um contraste marcante entre dois casos ilustrou como a mídia pode direcionar a atenção do público para narrativas menos significativas em detrimento de questões sociais que poderiam ser julgadas como de maior urgência.

Em um lado dessa dicotomia, tivemos o término do relacionamento de curta duração (um mês) entre a cantora Luísa Sonza e o influenciador Chico Moedas. Embora relacionamentos pessoais sejam, sem dúvida, dignos de respeito, o circo midiático formado em cima deste episódio, em comparação com assuntos mais prementes, chama bastante a atenção. A dramatização exagerada de tal evento na mídia desviou a atenção de grande parte do público de quaisquer pautas sociais relevantes que ocorriam em paralelo.

Como um exemplo trágico, na mesma época, ocorreu a morte prematura e chocante de Maria Clara, a indígena de 15 anos, vítima de estupro e afogamento em uma área de pântano no município de Oiapoque, na região de fronteira no norte do Amapá. A vítima era do povo karipuna e vivia na aldeia do Manga. Esse evento trágico coincidiu com a 3ª Marcha das Mulheres Indígenas em Brasília, momento crucial de mobilização para destacar a violência enfrentada pelos povos originários, principalmente as mulheres. No entanto, a mídia parecia mais interessada em abordar o drama de um relacionamento entre subcelebridades do que em ampliar a conscientização sobre a luta dos povos indígenas.

Essa disparidade na cobertura midiática demonstra como a privatização do espaço público e a busca incessante por audiência podem prejudicar e empacar a discussão e o debate acerca das questões sociais importantes e de interesse público. Quando as histórias pessoais de figuras caricatas são priorizadas em relação a eventos reais e significativos, a sociedade perde a oportunidade de porfiar pautas cruciais, como a violência de gênero e a insegurança dos povos indígenas.

O verdadeiro desafio agora é repensar o papel da mídia na sociedade e buscar maneiras de superar a priorização inadequada de narrativas menos significativas. A sociedade deve participar de um debate coletivo sobre o que merece destaque e como podemos garantir que questões importantes não sejam negligenciadas em prol do entretenimento vazio.

Embora as soluções possam não ser evidentes em um contexto marcado pelo sensacionalismo midiático embebido do capitalismo tardio, é fundamental começar esse diálogo. Somente através de uma análise crítica do estado atual da mídia e do esforço coletivo para redefinir nossas prioridades informativas, podemos esperar que assuntos relevantes não sejam mais ofuscados por entretenimento superficial.

Esta é uma chamada à reflexão sobre a influência da mídia na percepção pública e um apelo para que a sociedade reafirme seu compromisso com questões que realmente importam, especialmente em momentos cruciais, como a Marcha das Mulheres Indígenas, quando a voz das vítimas de violência deve ser ouvida, respeitada e ampliada.
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quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Narciso acha feio o que não é espelho

A miséria do jornalismo brasileiro em dois atos

Por Gilson Raslan Filho

Princípio básico do código de ética, de conduta e do exercício técnico e profissional dos jornalistas, a realidade, os fatos reais, o que de fato aconteceu é imprescindível para repórteres e editores, colunistas e articulistas.

É bem verdade que os dois últimos têm, sobre os dois primeiros, o privilégio de ter sua opinião sobre os fatos como um valor de composição. Mas ainda assim, lá estão eles: os fatos! Isso quer dizer que, a despeito do que eu ache deles (e os consumidores terão a possibilidade de discordar de minhas análises e opiniões), meu ponto de vista não pode prescindir da tarefa magistral e elementar de todo e qualquer jornalista: esclarecer sobre os fatos reais.


Eis que o jornalismo brasileiro fez surgir um novo espécime: o colunista analista sem compromisso com os fatos. Pior: colunistas tão apartados da realidade, que enxergam a sua própria visão do mundo, não o próprio mundo. E mais: acreditam que essa visão é a realidade.

A bem da verdade, é preciso dizer que esse não é um fenômeno novo – mas ele tem se tornado especialmente virulento em tempos de redes sociais e aprofundamento da crise da empresa jornalística fundada no século 20. Tampouco podemos generalizar: há bons jornalistas, que cuidam para que os fatos estejam sempre no centro da cena – não a opinião que analistas, colunistas e articulistas emitem.

Dois casos, todavia, merecem destaque e apontam para uma real falência do jornalismo feito a partir da lógica empresarial burguesa, montada no século 19 e consolidada no século 20. Ambos ocorrem quase no mesmo instante, no mesmo programa, “Em Pauta”, do Canal Globo News, e envolve os jornalistas Guga Chacra, comentarista de geopolítica internacional do canal; e Jorge Pontual, velho comentarista de generalidades, radicado em Nova Iorque.

Uma imagem contendo Interface gráfica do usuário

Descrição gerada automaticamente
Ambos tratavam do mesmo fato: o discurso do Presidente brasileiro Luís Inácio Lula da Silva, em seu retorno à abertura da Assembleia Geral da ONU, em 19 de setembro. Havia um clima de verdadeiro entusiasmo com o discurso que Lula acabara de pronunciar – pelas circunstâncias: o discurso marcava o fim do pesadelo de quatro anos de Bolsonaro; e pelo impacto do discurso mesmo, muito aplaudido e elogiado por inúmeros políticos, empresários e jornalistas ao redor do mundo.

Jornalistas, no entanto, precisam manter uma postura crítica, enxergar além das paixões, relativizar o consenso. Em dois atos, Chacra e Pontual, no esforço por fazer jornalismo crítico, só reforçaram que aquele jornalismo em que militam já morreu. Só eles não sabem.

Ato 1: O absoluto sou eu

Guga Chacra criticou, na fala de Lula sobre ameaças à democracia na Guatemala, a ausência de crítica a regimes “ditatoriais” da China e da Rússia. Assim, de maneira generalista. Mas o que chama a atenção mesmo é a intencionalidade da análise do jornalista: tomar a democracia europeia e estadunidense como planos acabados da experiência democrática. Se Lula tinha a obrigação de denunciar todas as ameaças à democracia, também não deveria fazer em relação aos EUA, à França, à Alemanha etc etc?
 
Assista a um corte do programa:


 
 
Eis o fato: a democracia é ameaçada continuamente – por restrições políticas ou econômicas – em todos os locais. Eis a realidade vista por Guga Chacra: democracia é o que o ocidente entende por democracia.

Ato 2: O mundo para mim

O caso da análise de Jorge Pontual é ainda mais grave de tão simplória, quase grosseira. Para o jornalista, o sucesso do discurso de Lula se dava porque foram usadas palavras-chave de fácil compreensão para... jornalistas. Em outras palavras: para Pontual, o impacto do discurso do presidente brasileiro se deu por ter sido “manchetável”.

Assista a um corte do programa: 
 
 
 
A análise do jornalista beira o primário, porque não se dá conta que a esfera pública já não se limita à mediação do próprio jornalismo e que, por óbvio, a realidade não se realiza a partir do tecido jornalístico. Mas há um fato incontornável aí: analistas como Jorge Pontual nos dão a certeza de que não é desse tipo de analistas, comentaristas, colunistas que o mundo precisa.
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segunda-feira, 2 de outubro de 2023

A vida privada como produto

Por Matheus Antônio Vieira

Caso da separação entre Luísa Sonza e Chico Moedas revela como a midiatização da vida pessoal é uma estratégia construída com auxílio de páginas de fofoca

No último dia 20, a cantora Luisa Sonza (25) anunciou o término de seu namoro com Chico Moedas, durante sua participação no programa Mais Você da Rede Globo. Ao lado de Ana Maria Braga, a cantora leu um texto que escreveu após o fim do relacionamento, destacando uma traição sofrida pelo ex-namorado.
A cantora foi convidada ao programa para falar sobre a repercussão do seu álbum “Escândalo Íntimo”, lançado no dia 29 de agosto. Durante a exibição ao vivo, a cantora decidiu expor a traição de Chico Moedas. Os fãs esperavam ver a cantora falar sobre seu mais novo álbum, “Escândalo Íntimo” , que inclui a faixa “Chico”, composta por Sonza para seu então namorado.


Luísa Sonza no programa Mais Você. Foto: Globo.

Apesar da entrevista não ter resultado no aumento audiência do programa naquele dia, marcando 7,5 pontos no Ibope, o assunto viralizou nas redes sociais, se tornando Assunto do Momento no X (Twitter), e sendo divulgado amplamente nos perfis de fofocas no Instagram, o que abordaremos mais à frente. A música “Chico”, presente no novo álbum de Sonza, subiu 5 posições na plataforma Spotify, se tornando a 4º música mais ouvida do país no dia 21 setembro, com mais de 1 milhão de ouvintes diários.

Durante a leitura da carta Ana Maria Braga chegou a chorar com as palavras da cantora:

“Como se a traição já não bastasse, nos colocam como loucas, dão risada da nossa intuição, literalmente falam que a realidade é um detalhe pra você, invalidando tudo o que a gente pensa, acredita, vê, tudo o que é real.”

A vida pessoal como estratégia para a música

A vida pessoal de Luisa Sonza sempre foi assunto midiático, desde que ela se tornou conhecida pelo público. Em 2020, Luisa Souza se separou do comediante e influencer digital Whindersson Nunes, com quem foi casada por 2 anos. A separação foi muito comentada na internet, principalmente em razão da popularidade de Nunes na época. Entre 2020 e 2021 a cantora também namorou “Vitão”, com quem havia lançado a faixa “Flores”, também em 2020.

A midiatização da vida privada da cantora tem se apresentado como muito vantajosa. Estima-se que, depois da revelação do término com Chico Moedas, a cantora teria ganhado mais meio milhão de seguidores, informa o G1, totalizando 31,5 milhões de seguidores somente no Instagram. Houve também o aumento significativo do número de ouvintes da cantora na faixa.

Nas redes sociais, alguns internautas questionaram se a atitude de Luísa Sonza era uma “estratégia de marketing”. Em resposta aos comentários, ela ironizou no Instagram: “Claro gente eu fui corna de propósito faz todo o sentido parabéns”.

Comentário feito pela cantora no Instagram, no dia 21 de setembro. Foto: Reprodução Instagram.

O que levou Sonza à declaração pode não ter sido planejado. Mas há um planejamento em como comunicar. Não se tratava apenas de um comentário em resposta à pergunta de Ana Maria Braga. A cantora pediu o espaço para ler uma carta, escrita previamente para aquele momento. Ela se posiciona estrategicamente, criando uma narrativa sobre a traição, e desta forma, aproveita da exposição para liderar como o assunto será abordado. Para lidar com tais assuntos serão abordados, Sonza conta com uma das maiores empresas de marketing digital do país, a Music2/Mynd8.

A empresa que gerencia Luiza Sonza

Por trás da cantora Luisa Sonza está a empresa Music2/Mynd8. O grupo de empresas tem como fundadora Fátima Pissara, empresária da cantora, e especialista em marketing de influência, atualmente também CEO do portal Billboard Brasil. A empresa é responsável pelo gerenciamento de um longa lista de cantores e influencers no país, entre eles Luisa Sonza. A empresa também é responsável por uma “banca digital”, uma lista de perfis de perfis com fofocas e memes de celebridades.

As páginas de fofoca são centrais para garantir a exposição necessária para Luisa Sonza, e os outros influencers gerenciados pela Music2/Mynd8. Essas páginas comumente não possuem linhas editoriais, nem compromisso com a ética jornalística, o que não permite o público estabelecer com elas uma relação de transparência com aquilo que é informado. Dessa forma, as páginas podem escolher falar sobre determinado assunto de acordo com a demanda da Music2/Mynd8, sem sequer ser informado sobre a possibilidade de conflito de interesses. Cabendo a audiência realizar o processo crítico sobre o conteúdo consumido.

Listagem de perfis gerenciados pela Music2/Mynd8. Foto: Music2/Mynd8.

São 34 (trinta e quatro) perfis gerenciados pela Music2/Mynd8, a maioria acumulam entre 1 milhão a 20 milhões de seguidores. Com exceção dos perfis “modaparameninas”, “instacinefilos”, “omusojoao”, “perregue_chique”, “sincerooficial”, “soldadoferido”, todos outros perfis gerenciados pela empresa são sobre a vida das celebridades. Sendo que 28 dos 34 perfis fizeram ao menos uma publicação sobre o término de Luísa Sonza e Chico Moedas, seja replicando as reações de usuários, os comentários na mídia e as reações de outros influencers.

As polêmicas que esses influencers se envolvem incentivam as pessoas a procurarem mais informações, inclusive em suas redes sociais. O processo de engajamento em polêmicas pode parecer contraditório, uma vez que uma polêmica poderia acarretar na difamação, ou “cancelamento”, da figura pública. Entretanto, dominando parcialmente como a informação circula, a Music2/Mynd8 pode garantir que seus agenciados sejam retratados de acordo com seus interesses.

Durante a produção deste texto, a BBC publicou o artigo “Luísa Sonza e Chico Moedas: como desabafos públicos de celebridades podem ser um bom negócio” no qual abordou sobre a possível estratégia de marketing. O portal entrou em contato com Fátima Pissara, empresária de Sonza, que negou os comentários reproduzidos na internet: “É tão ofensivo achar que uma menina de 25 anos vai ter uma estratégia de marketing por trás de uma traição de um namorado para o qual ela fez uma música em homenagem”, afirmou em tom de desabafo Pissara a BBC.

Apesar do artigo destrinchar o aumento da popularidade de Sonza no Instagram e o aumento dos ouvintes da faixa “Chico”, a BBC não destrinchou sobre a relação da empresa Music2/Mynd8 com os portais de fofoca no Instagram.

Sonza havia sido processada em 2020 pela advogada Isabel Macedo, após a cantora pedir um copo de água para a mulher negra, confundindo-a como garçonete, em Fernando de Noronha.

Na terça-feira o assunto voltou a circular após o UOL publicar com exclusividade sobre o arquivamento do caso devido um acordo entre as partes. Na manhã (20) antes do programa, Isabela Macedo postou no Instagram: “O que eu pensava já ter ficado para trás, visto que o processo já estava arquivado, veio à tona. E mais uma vez me trouxe as dores, as quais estou tratando ainda.” O caso de racismo perdeu espaço midiático em meio a grande cobertura que foi realizada sobre o término.

Transparência e leitura crítica das mídias

O caso da Luisa Sonza revela o uso do poder da mídia na criação de demandas e audiência sobre determinados assuntos. Destaca que as particularidades da vida privada é um elemento utilizado pelas celebridades ou influencers, para garantir o engajamento do público.

Essa estratégia tem sido chamada por profissionais da área como marketing de influência e é uma variação da teoria fundada por Iwan Setiawan e Philip Kotler, do marketing humanizado, referências no campo de tendências de consumo e marketing. As imagens abordadas pelos artistas e influencers se tornam mais humanizadas, na medida que sofrem de problemas como o nossos, criando determinada conexão com o público. E mesmo a considerável parcela que não tomará o lado da cantora, continuará engajado na tentativa de combater a sua imagem.

A humanização da imagem do artista também pode fazer com que eles pareçam transparentes, mas por trás dessa humanização há um processo de escolhas e de muito dinheiro. Contraditoriamente, apesar de muito compartilhar sobre sua vida pessoal, Sonza tem evitado falar com o público sobre o racismo.

O caso de Sonza não se trata necessariamente de forjamento (ou invenções) da sua traição. Mas o declarado aproveitamento das situações pessoais como meio de garantir a propagação de suas imagens, e tendo como fim, o aumento do alcance e o retorno financeiro. Uma estratégia que ampliou seu público das páginas de fofoca gerenciadas pela Music2/Mynd8, para a televisão aberta. Ainda, esse poder midiático, pode garantir quais e como os assuntos serão abordados, ocasionando o apagamento de outras pautas.

Por se tratar de uma indústria, neste caso, a indústria da música, para que ocorra essa midiatização do artista, é necessário investimento monetário. E os valores normalmente não são publicizados. Em maio deste ano, Sonza teria assinado com a Sony Music, gravadora multinacional, em um contrato estimado de 100 milhões de dólares, de acordo com o colunista Leo Dias no Metropolés, mas a informação não foi confirmada.

As páginas de fofoca são responsáveis por ampliar a midiatização da vida privada desses artistas, e que quando controlados por uma empresa que possui interesses conflitantes podem permitir o falseamento da relevância do assunto e do interesse público sobre aquela informação. Além de criar uma falsa sensação de diversidade de perfis, apesar de se tratarem de meios gerenciados pela mesma empresa.

Nosso engajamento com as vidas privadas dos influencers e artistas partem das estratégias bem estabelecidas. Elas reconhecem o interesse público nessas histórias que se parecem com a dramaturgia de horário nobre brasileiro, e que como estas, são um produto com uma exuberante audiência a ser monetizada.
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segunda-feira, 18 de setembro de 2023

O que revela a cobertura do caso Larissa Manoela

 Aumento da audiência de casos que envolvem personalidades do mundo do espetáculo pode indicar um ciclo vicioso cujo resultado é a democracia ferida de morte

Por Vitor Faria Silveira

Nas duas últimas semanas de agosto o caso de desgaste entre a atriz Larissa Manoela e seus pais foi o assunto de maior audiência nos noticiários. A atriz concedeu uma entrevista exclusiva para a Jornalista Renata Capucci que foi ao ar no programa Fantástico, no dia 13 de agosto. O contexto da entrevista foi o rompimento da relação com seus pais Silvana e Gilberto Taques. Na entrevista, a artista revela que havia deixado todo seu patrimônio construído em 18 anos de carreira para os pais e que, a partir daquele momento, assumiria o controle de suas finanças.

Repercussão do caso Larissa Manoela na imprensa/Imagem: F5

A revista eletrônica dominical, apresentada por Maju Coutinho e Poliana Abritta, teve um crescimento de 12% em seu Ibope nas edições em que o caso ganhou destaque. A média anual do programa, que é de 17,9 pontos na Grande São Paulo, foi para 20 pontos nos dois últimos domingos. Cada ponto equivale a 207 mil indivíduos.

Quem também melhorou sua visibilidade abordando o assunto foi o Domingo Legal, do SBT. No dia 20 de agosto, com uma prévia de 15 minutos de entrevista feita por Chris Flores com a mãe da jovem, Silvana Taques, o programa semanal marcou 7,4 pontos de média e 9,3 pontos de pico —os maiores índices de 2023. É um número 20% maior que a média do ano, atualmente na casa dos 6 pontos. Durante a exibição dos trechos da entrevista, o programa ficou na liderança, à frente da Globo.

Com a íntegra da entrevista, o programa diário do SBT, Fofocalizando, alavancou seus números no dia 21 de agosto. Ao colocar Silvana Taques por mais de meia hora no ar, a atração marcou 3,5 pontos de média com picos de 5. Foi o maior número alcançado pelo programa às segundas, com um crescimento de 17% em relação à média que o programa acumulou nesse dia da semana em 2023.

Na Record, quem se beneficiou foi o Balanço Geral, que mostrou uma entrevista com a suposta ex-empregada da família de Larissa Manoela, que afirmou que Silvane batia na filha e em animais de estimação.

Na segunda, quando mostro a entrevista, o programa teve 7 pontos de média entre 12h e 15h30. No momento em que a reportagem foi ao ar, das 14h50 às 15h, o programa alcançou 8,4 pontos com picos de 8,6. Na terça (22), um ibope ainda maior quando foi exibida uma outra entrevista sobre o assunto: 9,3 pontos, ficando a menos de um ponto da Globo —que marcava 9,9 pontos naquele momento.

Figura 2: entrevista de Larissa Manoela para o Fantástico/Imagem: site F5

Nas opiniões sobre o assunto, houve quem se posicionasse a favor da atriz, houve quem se posicionasse a favor dos pais dela e houve quem se posicionasse contra a abordagem do caso. A apresentadora da RedeTV, Sônia Abrão, criticou a Globo por exibir a polêmica no dia 13 de agosto, data em que foi celebrado o Dia dos Pais - que já foi tema do Pluris.

Sônia argumentou que o assunto não era apropriado para ser tratado em uma data como o Dia dos Pais, o que, no posicionamento da apresentadora, transpareceu inveja da mesma, já que a revista eletrônica dominical alcançou muitos pontos de audiência enquanto exibia a entrevista.

Vale destacar a diferença de pico na pontuação entre Globo e demais emissoras na abordagem do mesmo caso. Enquanto a primeira bateu 20 pontos de ápice na entrevista com a atriz, a emissora de Sílvio Santos somente alcançou 9,3 pontos de pontuação máxima, levando em conta que o programa Domingo Legal disputa audiência com programas de menor audiência de outras emissoras no mesmo horário de domingo.

Podem-se apontar, pelo menos, três motivos causais para esse acontecimento: o primeiro que, por anGlobo ter abordado o caso primeiro, o SBT, por meio do Domingo Legal, tentou responder à grande repercussão da entrevista da atriz no Fantástico ao entrevistar a mãe de Larissa sobre o caso. As demais emissoras tentaram atrair a atenção de seu público repercutindo ambas as entrevistas.

O segundo motivo seria a comoção do público com a situação da atriz, que apresentou elementos que comprovam as queixas da atriz contra seus pais, enquanto a progenitora de Larissa foi entrevistada por Chris Flores sem apresentar elementos que a pudessem defendê-la contra as acusações da artista e somente utilizou de um questionável sentimentalismo para convencimento do público quando a mesma se emociona durante a entrevista e diz querer se reaproximar da filha.

O terceiro possível motivo do maior alcance de público por parte da emissora global pode ser a tradicional e mais que conhecida grande audiência que a Globo, historicamente, possui contra as demais emissoras de TV Aberta do país.

Embora em números absolutos a TV Globo tenha consolidado sua liderança, relativamente o crescimento alcançado pelo SBT foi maior: 12% a 20%. Os números, todavia, vistos isoladamente revelam pouco sobre o fenômeno.

O espaço dado pelas emissoras de TV aberta brasileiras ao caso revela algo óbvio, mas que também é preocupante. O óbvio: os produtores de mídia profissionais têm se pautado - e pautado a agenda de cobertura midiática - de olho no burburinho das redes sociais e seus algoritmos. O que gera engajamento vira pauta.

De um lado, a mídia “tradicional” se alimenta das mídias digitais - e de outro as mídias digitais ganham com o aumento do alcance do engajamento alimentado pela mídia “tradional”.

Se isso não é novo, não deixa de ser preocupante, dado o alcance invisível e impenetrável dos algoritmos das chamadas big techs, as grandes e poderosas empresas de comunicação digital. Pautar a agenda de cobertura a partir da repercussão agenciada e muitas vezes deliberadamente planejada e incentivada pelos algoritmos pensados para manter a atenção do máximo de usuários possíveis pode significar um ciclo infinito de empobrecimento do debate público.

O que se perde nesse processo não é apenas a ilusão do papel da mídia no esclarecimento e qualificação do debate público - o que se perde é a própria consistência do tecido democrático.
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segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Por uma pedagogia das mídias

 Por Laís Abreu


Caso Larissa Manoela e seus desdobramentos deixam, mais uma vez, clara a necessidade e a urgência de uma educação para a mídia nas escolas


No domingo 13 de agosto, foi ao ar no programa Fantástico da Rede Globo a entrevista de Larissa Manoela, a atriz que acusa os pais, Silvana e Gilberto, de controlarem de forma abusiva suas finanças e carreira, decidiu falar publicamente pela primeira vez.

Na era das redes sociais, a internet potencializou a entrevista, os pequenos cortes que foram soltos antes de começar o programa fizeram um alvoroço no Twitter e Instagram, não obstante, parece inegável o quanto uma entrevista exclusiva em uma mídia “tradicional”, como a TV aberta, ainda são fundamentais para o jornalismo e para o debate público.

O programa, naquele domingo, conquistou o maior índice de audiência, desde 8 de janeiro, quando houve uma edição estendida que mostrava o atentado à democracia naquele dia. O Fantástico também bateu 22,5 pontos de pico, cada ponto de Ibope equivale a 76.953 domicílios na região paulista, portanto, obteve um público estimado em mais 1,5 milhão de casas.

Várias são as análises feitas diante desse jornalismo, a primeira delas é que as redes sociais conferem às pessoas famosas uma sensação de intimidade com seus seguidores, e isso fez com que grande parte dos 49 milhões de usuários que seguiam a famosa, se interessassem pela entrevista em TV aberta. O suspense, a espera durante todo o programa, foi o que fez a diferença neste dia.

Essas são questões importantes, não há dúvida - talvez merecedoras de um texto exclusivo. Mas o que nos traz aqui no Pluris hoje é a análise feita pela apresentadora da RedeTV!, Sônia Abrão, que, na esteira da repercussão pública da entrevista, deu depoimentos algo ambíguos - para não perdermos a elegância -, reivindicando uma sacralidade do dia dos pais, se consideramos sua notória conduta anti-ética.

“Gente, o que é isso? Onde é que essa história vai parar? Quando vai parar? E ainda por cima é Dia dos Pais! Se toca, Fantástico! A data é comemorativa, pra celebrar o amor entre pais e filhos, não cabe reportagem sobre uma relação em fase destrutiva como essa da Larissa Manoela”, criticou Sônia. 


“Por que não levar ao ar a história linda de Tatá Werneck com os pais, que tanto emocionou no decorrer da semana, quando a atriz completou 40 anos? Sim, a história de Larissa é polêmica, mas não perderia a atualidade se fosse exibida no próximo domingo, mesmo porque, infelizmente, não se sabe quando vai terminar e nem parece que terá um final feliz”.

Por fim a apresentadora completou: “Colocar conflito acima do amor foi um critério muito duvidoso na escolha da matéria! Triste isso” 


Em primeira análise, vale abordar que o programa dividiu a grande audiência da jovem em dois episódios, mas que o público não sabia ainda, como sugeriu Sonia em sua crítica. Mas o fato é que tudo isso nos traz reflexões sobre os juízes do jornalismo: quem de fato pode julgar as reportagens e entrevistas?

Sônia, conhecida fofoqueira das tardes na TV brasileira, foi, em 2008 e apenas para ficarmos em um momentos trágicos que a costumeira atitude da Abrão provoca, uma das personagens decisivas no caso de Eloá. Na ocasião, Abraão teve uma conversa ao vivo com Lindemberg, o ex-namorado e assassino da adolescente. A partir daí, a negociação que estava sendo feita pelas autoridades policiais acabou sofrendo uma regressão e culminou ao assassinato, transmitido ao vivo.

Para nós, jornalistas, é triste ter que expor um caso tão doloroso como o de Sônia e Eloá, para dizer: quem é a apresentadora para julgar e corrigir o Fantástico? Será que, de fato, ela pode dizer sobre ética jornalística? Como a sociedade brasileira lida com essas críticas? Não cabe a nós concordarmos ou discordamos de Sônia, o que trazemos aqui é sobre o alcance que ela tem e o poder de influenciar a opinião da sociedade.

Diante de falas como essas de Sônia, nós, do Pluris, enxergamos cada vez mais a necessidade de uma pedagogia para a mídia, um programa de educação midiática, de leitura crítica da mídia nas escolas. É notório o quanto compreender as práticas do jornalismo desde cedo se faz necessário. Os jovens, que estão diariamente nas redes sociais e que, no dia da entrevista de Larissa Manoela para o Fantástico, foram “transferidos” para a TV aberta precisam saber de um desenvolvimento mais sistematizado sobre o discurso midiático - afinal, se a educação é a preparação para a vida, como não ler de forma crítica a mídia, se ela é a principal fabricante da realidade?

Com a internet, estamos cada dia mais atropelados pelas notícias e acontecimentos, em questão de segundos uma publicação viraliza, uma reportagem se torna velha demais ou desinteressante. Na era em que cada vez mais se leem apenas as manchetes, é preciso que seja introduzido nas escolas uma forma de estudar, ler criticamente, saber interpretar enfim desenvolver competência para filtrar e apurar uma informação - o que, ao menos teoricamente, é feito no jornalismo, seja ele digital, impresso, televisivo ou radiofônico.

Seja como for, apenas a sociedade devidamente equipada com capacidade crítica poderá exigir que um jornalismo que respeite a inteligência do público e não o manipule em nome de audiência fácil. Somente com jovens com competência para desmontar as armadilhas de maus jornalistas e fofoqueiras em geral.

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quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Humor, liberdade de expressão e o apagamento histórico no Brasil: Léo Lins e a banalização do preconceito

 Por Maria Eduarda Salgado 


No centro do debate sobre os limites do humor e a liberdade de expressão no Brasil, o humorista Léo Lins foi alvo de críticas após ser obrigado por uma juíza a deletar do seu canal um show em que fazia piadas de teor controverso e ofensivo. No entanto, mais do que a atenção voltada para o comediante, é o comportamento de uma plateia conivente que ressalta o problema mais profundo.


O show em questão continha piadas abusivas sobre temas sensíveis como escravidão, perseguição religiosa, minorias, pessoas idosas e com deficiências. A plateia, em sua maioria branca, riu diante de conteúdos que não deveriam ser encarados com humor, revelando, no mínimo, ignorância e insensibilidade diante das graves questões sociais que o país enfrenta. Em uma das falas que mais geraram revolta, Lins tira sarro de “pretos que reclamam por não conseguirem emprego, mas que acham ruim os tempos de escravidão onde eles já nasciam empregados.”


É preocupante que, em pleno século XXI, temas como o desemprego entre a população negra ainda sejam tratados como piada. Em vez de abrir espaço para debates necessários, o conteúdo do show de Léo Lins apenas reforça o apagamento histórico que ocorre no Brasil, permitindo que feridas profundas não sejam devidamente discutidas e superadas.


Ao olharmos para outras nações, como a Alemanha, que enfrentou os seus traumas históricos e fantasmas, e busca ativamente combater, por exemplo, os efeitos do Holocausto, percebemos a diferença gritante. Enquanto lá existe uma lembrança crítica sobre o passado, no Brasil, o genocídio indígena e a escravidão negra ainda são minimizados e tratados como se não fossem causas de injustiças históricas.


A ausência de políticas públicas efetivas e a impunidade dos envolvidos em ditaduras militares também são retratos de um país que falha em reconhecer e enfrentar o seu passado. O apagamento histórico se estende à história preta e nativa do Brasil, onde a população negra e indígena ainda luta por reconhecimento, respeito e indenizações que se fazem necessárias para combater as desigualdades construídas ao longo da história. Mas aqui, na terra do genocídio indígena, a demarcação de terra ainda é visto por muitos como privilégio. Ainda em 2023, as escolas ensinam sobre a catequização dos indígenas como uma interação positiva entre culturas distintas.


Enquanto a Argentina e o Chile, ao longo dos anos fizeram julgamentos históricos e condenaram diversos militares envolvidos nas ditaduras de seus países, e o Uruguai chegou a fazer um ex ditador morrer de velhice na cadeia, a lei que anistia os militares brasileiros fez com que ninguém fosse condenado por nada, que esses processos não só servem para amenizar para o lado de quem deveria pagar, mas também têm como objetivo reescrever a história e, se possível, apagá la. Se na Alemanha negar o Holocausto é um crime que leva a cadeia, por aqui nada acontece com quem homenageia abertamente torturadores. Por vezes, quem o faz é até alçado à presidência.


Discutir indenizações, de fato faz sentido quando se vive em um país onde a sua fortuna foi construída sobre mãos escravizadas durante 2/3 de sua história, seja o trabalho escravo ou o condicionamento de subemprego da população preta de hoje em dia, ambos têm a ver com a geração de riquezas. Portanto, é justo o debate econômico quando até tirar sarro da pobreza preta faz o humorista rico.


Não se trata, portanto, de censurar o humor ou a liberdade de expressão, mas sim de questionar o tipo de humor que perpetua o preconceito e reforça estereótipos, ignorando a realidade de tantas pessoas que ainda sofrem com as consequências de um passado marcado por violência e opressão.


O debate sobre os problemas históricos do Brasil deve ser constante, incômodo e insistente. Quando evitamos enfrentar essas questões, permitimos que elas se perpetuem e, pior ainda, que sejam tratadas com graça. Léo Lins é apenas um exemplo do sintoma de um problema maior que necessita de reflexão e ação da sociedade como um todo.


Portanto, cabe a todos nós, cidadãos e mídia, a responsabilidade de discutir e confrontar os problemas do nosso passado e presente. A liberdade de expressão é importante, mas deve caminhar lado a lado com a responsabilidade social e o respeito pelas vítimas da nossa história.


Neste sentido, é fundamental que a sociedade brasileira se questione sobre como pode contribuir para mudar esse cenário, ampliar a conscientização e construir um país mais justo e igualitário para todos os seus cidadãos.

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quarta-feira, 28 de junho de 2023

Um Deus do ódio

 O uso perverso da fé cristã como ferramenta de preconceito, intolerância e incentivo à violência contra minorias

Por Paulo Henrique Lima,

“Amados, amemo-nos uns aos outros, porque o amor é de Deus; e todo aquele que ama é nascido de Deus e conhece a Deus. Aquele que não ama não conhece a Deus, pois Deus é amor." - 1 João 4:7-8 (Bíblia Sagrada) 

Assim como nesta passagem, é ensinado na religião cristã a presença de um forte Deus onipresente, onisciente, onipotente, bondoso e misericordioso. Entretanto, a religião se mostra rendida aos dogmas adquiridos como princípios e práticas irrefutáveis dentro da fé. Estes dogmas desempenham um papel importante na definição da identidade e coesão de uma religião ou igreja, fornecendo limites para a crença e a prática. Eles são frequentemente formulados e proclamados por autoridades religiosas com verdades inquestionáveis, destinadas a serem mantidas pelos fiéis.

Recentemente, o pastor André Valadão, líder da Lagoinha Orlando Church, fez publicações de cunho preconceituoso nas redes sociais. No dia 4 de junho, o pastor publicou um post que dizia “Deus odeia o orgulho”, a palavra orgulho em cores da bandeira LGBTQIA+. Não é por coincidência que o pastor escolheu o mês considerado do Orgulho LGBTQIA+ para fazer a publicação de duplo sentido com a palavra “orgulho”. Em um dos trechos deste culto, o pastor diz que junho seria um mês da humilhação, devido ao pecado, e pecado gera humilhação e vergonha. O mesmo diz que os fiéis, presentes no culto, não seriam dominados pelo pecado pois estariam debaixo da graça. Na pregação, é citado o versículo 1 João 1:9Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados, e nos purificar de toda a injustiça.

Mas o que seria o pecado para eles? O que realmente agrada ou desagrada a esse Deus que odeia? Como esse discurso baseado na ira de um Deus sob a vida do que alguns julgam como abominação reflete na política do ódio polarizado na sociedade? Esses discursos vão além de uma interpretação. Essas crenças e princípios estabelecidos com base nos textos sagrados e tradicionais são rigidamente mantidos e não há espaços para questionamentos ou interpretações contextualizadas, de que surgem os preconceitos radicais. Embora a religião possa desempenhar um papel positivo na vida das pessoas, fornecendo orientação moral e espiritual, é importante reconhecer que os dogmas, quando mal interpretados ou aplicados de maneira extremista, podem ter consequências negativas.

Como exemplo do pastor André Valadão compartilhando frequentemente postagens homofóbicas, além de incentivar as tags “nopride” e “orgulhonao”, contribuindo para a marginalização de certos grupos sociais. São considerados como “pecadores” ou “inferiores” àqueles que não vivem da maneira estabelecida pela comunidade religiosa. Esses preconceitos baseados nas crenças e tradições contribuem ainda mais para a negação dos direitos e dignidade desses grupos na sociedade. As pregações se tornam ferramentas para a promoção de políticas de ódio. Líderes, que ainda têm a sua parcela significativa de influência na opinião pública, são capazes de moldar as políticas com base em preceitos religiosos inflexíveis para restringir a liberdade individual, promover a exclusão e fomentar divisões sociais.


Em tempos de incertezas, conflitos e desafios, a sociedade frequentemente procura respostas e orientações para encontrar um sentido maior em suas vidas. Nesse contexto, é comum que essas instituições religiosas assumam um papel de destaque, oferecendo direção espiritual e esperança para os seguidores. No entanto, essa influência se torna perigosa quando se reflete sobre a fragilidade inerente à sociedade que leva muitos a se apoiarem exclusivamente na palavra que se encontra dentro das igrejas. 

As questões sociais, econômicas e políticas têm impactos significativos no bem-estar das pessoas, gerando ansiedade, medo e desesperança. Nesse cenário, é compreensível que muitos indivíduos busquem refúgio nos templos e igrejas, esperando encontrar respostas e conforto emocional. Aí encontra-se o perigo do poder de alguns líderes. Enquanto alguns são verdadeiros guias espirituais, comprometidos com os princípios do amor, compaixão e justiça, outros podem abusar de seu poder, manipulando a fé das pessoas em benefício de suas próprias crenças.  

A adoração cega a esses líderes pode resultar em consequências negativas, como a disseminação do ódio e intolerância, em vez de promover a verdadeira paz e harmonia. Afinal, como Deus seria amor se ele odiasse? O amor é capaz de odiar? A dependência excessiva da esperança oferecida pelas igrejas pode limitar a capacidade das pessoas de enfrentarem os desafios da vida de forma independente ou construtiva.

Ao transferir toda a responsabilidade para pastores ou outros guias espirituais, corre-se o risco de negligenciar a importância da ação individual e coletiva na construção de uma sociedade mais justa e empática. Questionar a influência dos líderes dessas instituições não significa negar a importância da fé e da esperança encontradas nas igrejas. No entanto, é fundamental adotar uma abordagem crítica, buscando um equilíbrio saudável entre a confiança em verdadeiros chefes cristãos e o desenvolvimento de uma autonomia pessoal. A sociedade precisa reconhecer sua própria força e capacidade de agir para promover mudanças positivas.  

Líderes como André Valadão reconhecem o seu poder de influência sob os demais fiéis e se aproveitam do espaço público para promover mais ódio a essas classes sociais. Propagando a palavra de um Deus odioso, uma mensagem que foca em presumidos desvios, pecados e que julga os demais cidadãos que não se sustentam em uma crença baseada na ideia de “nós, cristãos, estamos debaixo da graça, santificados, contra eles, pecadores e abominados pelo nosso Deus” - uma mensagem assim não apenas propaga o ódio, não é apenas contra a vida: ela mata!

Vale lembrar que André Valadão já foi acusado outras vezes de propagar informações falsas contra o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva. E o mesmo se retratou na internet mentindo, mais uma vez, dizendo que o TSE o havia intimado a negar que Lula seja a favor do aborto e da descriminalização das drogas. Na época, a corte negou a existência da decisão. Entretanto, o pastor usou da narrativa de “perseguido”, com imagens gravadas em um fundo escuro, roupa preta, para transparecer a ideia de que estava sendo silenciado ou forçado a se retratar. O vídeo em questão acumula mais de 15 milhões de reproduções. 

É fundamental compreender que os dogmas religiosos podem e devem ser interpretados de maneira contextualizada, levando em consideração a evolução social, os avanços científicos e a compreensão cada vez mais ampla dos direitos humanos. Uma interpretação aberta, inclusiva e compassiva dos preceitos religiosos pode permitir que eles sejam fonte de inspiração e bem-estar espiritual, ao mesmo tempo em que respeitam a diversidade e promovem a coexistência pacífica. 

É importante destacar que nem todos os fiéis praticantes adotam uma visão dogmática inflexível. Muitos seguidores de diferentes religiões têm uma compreensão mais inclusiva e progressista de suas crenças, buscando conciliar sua fé com o respeito pelos direitos e a valorização da diversidade humana. Para evitar que a doutrina religiosa se transforme em preconceitos e políticas de ódio, é necessário promover o diálogo inter-religioso, a educação para a tolerância e o respeito mútuo. É fundamental encorajar a reflexão crítica, a abertura ao conhecimento e o reconhecimento dos valores fundamentais dos direitos humanos.



 


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terça-feira, 30 de maio de 2023

“Ela nunca foi um bom exemplo, mas era gente boa”

 A morte de Rita Lee, 75, e a repercussão lamentável do jornalismo brasileiro.



Por Laís Abreu

“Quando eu morrer, posso imaginar as palavras de carinho de quem me detesta. Algumas rádios tocarão minhas músicas sem cobrar jabá, colegas dirão que farei falta no mundo da música, quem sabe até deem meu nome para uma rua sem saída. Os fãs, esses sinceros, empunharão capas dos meus discos e entoarão ‘Ovelha negra’, as TVs já devem ter na manga um resumo da minha trajetória para exibir no telejornal do dia e uma notinha no obituário de algumas revistas há de sair. Nas redes virtuais, alguns dirão: ‘Ué, pensei que a véia já tivesse morrido, kkk. Nenhum político se atreverá a comparecer ao meu velório, uma vez que nunca compareci ao palanque de nenhum deles e me levantaria do caixão para vaiá-los. Enquanto isso, estarei eu de alma presente no céu tocando minha autoharp e cantando para Deus: ‘Thank you Lord, finally sedated'” (Trecho de Rita Lee: uma autobiografia, de 2016).

“Ela nunca foi um bom exemplo, mas era gente boa” foi a frase escolhida pela própria Rita Lee para ornar sua lápide. A cantora e compositora, rainha brasileira do rock, morreu aos 75 anos na noite do dia 8 de maio, após lutar contra um câncer no pulmão. O epitáfio também  foi retirado do livro Rita Lee: uma autobiografia.

Embora a artista tenha previsto sua própria morte, ela não devia esperar tamanha maldade do Jornal Folha de São Paulo, ao noticiar sua partida. Infelizmente, repleto de insensibilidade, publicaram: Rita Lee, rebelde desde a infância, se deixou guiar por drogas e discos voadores”. Uma matéria lamentável, que reflete o quanto o jornal se deixa levar pelo desespero, com chamadas desrespeitosas, cheias de sensacionalismo barato.

Rita foi muito mais que sua vida pessoal. Rita foi artista e mesmo que muitos não concordem com o jeito que ela levava a vida, o respeito nesse momento era primordial, a ela, à família, aos fãs e amigos. Rita ajudou a incorporar a revolução do rock à explosão criativa do tropicalismo, formou a banda brasileira de rock mais cultuada no mundo, os Mutantes, e criou canções na carreira solo com enorme apelo popular sem perder a liberdade e a irreverência.

Rita foi modernidade, referência de criatividade e independência feminina durante os quase 60 anos de carreira. O título de “rainha do rock brasileiro” veio quase naturalmente, mas ela achava “cafona” - preferia “padroeira da liberdade”.

A Folha de S.Paulo, em uma lamentável postura, diante de tantos destaques que poderiam dar, escolheu o pior de todos eles. Faltou ética, faltou sensibilidade, faltou profissionalismo, faltou humanidade, faltou jornalismo. E ainda dizem que esse é o maior jornal do país. Como futura jornalista, tenho medo de conhecer até qual é o menor, se é essa a referência que temos.

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quarta-feira, 24 de maio de 2023

Linha Direta: a volta dos que não foram

De volta à grade de programação, o Linha Direta da TV Globo joga luz sobre a responsabilidade da cobertura midiática em casos sensíveis que envolvem violência pública 

Por Vitória Martins

O Linha Direta foi ao ar pela primeira vez no dia 29 de maio de 1990, apresentado pelo jornalista e político Hélio Costa. Porém o programa deixou de ser exibido no mesmo ano, retornando, em 1999, sob comando de Marcelo Rezende e, na sequência, Domingos Meirelles, em 2000, ficando no ar até dezembro de 2007. O programa retorna agora, em 2023, sob a batuta de Pedro Bial, o primeiro apresentador do Big Brother Brasil.

O programa se dedicava a produção de matérias jornalísticas de cunho sensacionalista (mas travestida de investigação), se unindo em uma narrativa com reportagem, entrevista e simulações dos casos policiais ou jurídicos  mais famosos no Brasil. Entre críticas, por seu tom de criminalização, o show true crime foi muitas vezes aclamado após contribuir para solução de casos e prisão de foragidos depois de denúncias anônimas ao programa.

Na temporada 2023, a promessa é de que serão exibidos episódios todas as semanas, porém cada episódio tem propósito em relembrar os principais casos contando melhor os fatos através de entrevistas com especialistas, vítimas e sobreviventes dos casos e simulações, bem próximo à linha que seguiam no princípio.

O primeiro episódio do programa chamou atenção do público ao relembrar o caso Eloá, no qual uma adolescente de 15 anos foi sequestrada e assassinada por seu ex-namorado. A abordagem do programa foi surpreendente: Pedro Bial expõe como a interferência dos veículos de mídia atrapalhou nas ações policiais do crime e reforça que ela foi uma das milhares de vítimas de feminicídio.

O ponto positivo desse reexibição é poder trazer reflexões atuais aos telespectadores como a violência contra as mulheres, gerando impacto sobre a sociedade sob um novo olhar, tentando reconstruir a narrativa e incentivar as denúncias contra violência doméstica.

Entretanto, nem tudo são flores: o show true crime retoma os erros tanto da mídia quanto da polícia em relação ao caso, ponderando se o fim trágico poderia ter sido diferente se houvesse seriedade e responsabilidade entre ambos.

Desde o primeiro acontecimento até a morte da jovem os veículos de comunicação estavam por perto feito abutres. Isto foi inegavelmente o pior erro de todo o caso. Durante todas as horas do sequestro, eram reportados em rede nacional os passos da polícia, quais foram as negociações ao assassino, as imagens fortes de Eloá na janela pegando a comida com arma apontada para cabeça. Ao todo, foram mais de 100h de transmissão ao vivo pela TV e mais uma infinidade de programas e quadros e coberturas sobre o caso.

O Antônio Nobre Salgado, o promotor do caso, entrevistado pelo Linha Direta, vai direto ao ponto: uma conversa ao vivo de Lindemberg, o ex-namorado e assassino da adolescente, com a apresentadora Sônia Abrão, notória fofoqueira das tardes na TV brasileira,. foi decisiva para que o assassino tomasse pé do impacto que seu ato tinha na opinião pública. A paritir daí, a negociação que vinha sendo mantida pelas autoridades policiais sofre uma regressão, até o acontecimento culminante do assassinato, transmitido ao vivo.

O promotor, todavia, também não isenta a própria abordagem policial, que deveria, segundo Antônio Nobre, ter limitado o acesso de jornalistas e mídia na cena dos acontecimentos.

O fato de Linha Direta ter retornado com uma abordagem crítica à cobertura da mídia em casos do tipo são uma boa notícia. Se será fiel a essa escolha e não sucumbirá ao sensacionalismo desde sempre presente em programas diários dos concorrentes, só o tempo dirá.


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