segunda-feira, 12 de agosto de 2024

A intersecção: mídia, futebol e política

 Por Letícia Paolinelli


Eleições francesas mostram  que explosão da sociedade do espetáculo tem potencial para provocar profundas mudanças nas instituições


As eleições legislativas de 2024 na França não foram apenas uma luta pelo poder político, mas também um palco onde as interações entre mídia, política e futebol foram expostas de forma intensa. O triunfo da Nova Frente Popular sobre a extrema-direita de Marine Le Pen trouxe à tona a complexa relação entre esses três domínios, destacando como cada um influencia e é influenciado pelo outro. A atuação da mídia e o papel dos jogadores de futebol no campo político francês oferecem uma perspectiva crítica sobre como essas interações moldam a percepção pública e as narrativas sociais.

Mídia: a acústica do estádio

As eleições legislativas de 2024 na França não foram apenas uma demonstração de democracia, mas também um palco onde a política, o futebol e a mídia se entrelaçaram de maneira inextricável. Com a vitória da Nova Frente Popular, uma coligação de esquerda, contra a extrema-direita de Marine Le Pen, teve resultado que transcendeu as fronteiras políticas tradicionais, reverberando fortemente no mundo do futebol e na mídia.

A relação entre futebol e política não é novidade. Na verdade, o futebol tem sido historicamente um palco para manifestações políticas e sociais. No Brasil, a ditadura militar fez uso ostensivo - e nem um pouco discreto - da seleção tricampeã de 1970. E quando a ditadura estava respirando por aparelhos, o movimento "Democracia Corinthiana", liderado por Sócrates nos anos 80, foi crucial para a luta pela redemocratização. Da mesma forma, na Argentina, o futebol desempenhou um papel significativo no avanço da Lei de Medios, uma legislação que visava democratizar os meios de comunicação.

Na França de 2024, os jogadores da seleção nacional se posicionaram firmemente contra a ascensão da extrema-direita. Nomes como Kylian Mbappé, Aurélien Tchouaméni e Marcus Thuram usaram suas plataformas nas redes sociais para incentivar a participação eleitoral e expressar seu alívio com a derrota de Le Pen. Este engajamento dos atletas não apenas refletiu suas crenças pessoais, mas também influenciou seus milhões de seguidores, sublinhando a poderosa interseção entre esporte e política.

A mídia, por sua vez, amplificou essas vozes. A cobertura das eleições pela imprensa esportiva não se limitou aos resultados das urnas, mas também destacou as reações dos jogadores. Através das redes sociais, essas mensagens ganharam um alcance ainda maior, demonstrando como a mídia contemporânea, impulsionada pela conectividade digital, pode moldar a opinião pública e mobilizar a ação política.

A mídia e o futebol têm sido aliados na luta por justiça e democracia, muitas vezes confrontando estruturas de poder estabelecidas. No Brasil, o movimento "Jogo 10 da Noite, Não!" ilustrou essa dinâmica ao desafiar a Rede Globo e seu controle sobre o horário dos jogos, uma prática que prejudicava os torcedores mais humildes. Similarmente, na França, a mobilização dos jogadores contra a extrema-direita destacou o papel do esporte como uma arena para a contestação política e a defesa de valores democráticos.

Para o jogo virar, alguns precisam jogar melhor fora de campo


Um aspecto crítico que emerge da análise da cobertura midiática das eleições francesas é a discrepância na forma como a mídia trata as manifestações políticas dos jogadores dependendo de sua origem étnica. Jogadores negros e imigrantes, como os franceses Mbappé e Thuram, enfrentam uma pressão desproporcional para se posicionar sobre questões políticas e sociais. A mídia frequentemente exige que atletas como eles utilizem suas plataformas para comentar sobre política e questões de inclusão social, ignorando muitas vezes a mesma exigência para jogadores brancos. O zagueiro da moralidade costuma marcar mais uns do que outros.

Este fenômeno não é exclusivo da França. Na Argentina, por exemplo, a popularidade de Lionel Messi foi acompanhada de uma pressão menor para que ele se envolvesse ativamente nas questões políticas do país, apesar de sua visibilidade e influência. No crivo da mídia, quando o assunto é manifestação política e moral, parece que o juiz é mais duro e pesa mais os cartões para jogadores específicos, não à toa e tão pouco sem critérios. A disparidade na cobrança demonstra como o discurso midiático pode reforçar estereótipos e desigualdades, além de reforçar que não existe imparcialidade na mídia, parafraseando Paulo Freire, a questão é se sua base ideológica é inclusiva ou excludente?

Pautas titulares e pautas de banco


No Brasil, a dinâmica entre mídia e futebol apresenta um contraste notável em comparação com a França. A mídia brasileira frequentemente foca em polêmicas e aspectos pessoais da vida dos jogadores, relegando questões sociais e políticas a um segundo plano. O caso de Neymar e a polêmica envolvendo suas atividades pessoais nas praias é um exemplo claro dessa tendência. A cobertura tendenciosa em torno das fofocas e da vida pessoal dos atletas muitas vezes eclipsa discussões mais substanciais sobre temas como legislações e políticas que também afetam esses jogadores e suas famílias, são essas as respectivas pautas titulares e as que estão no banco de reservas das redações de veículos de mídia.

Em contraste, quando se trata de jogadores estrangeiros e questões como as eleições na França, a mídia brasileira tende a investir mais no conteúdo social e político. A cobertura das manifestações dos jogadores franceses nas eleições foi mais detalhada e incisiva, refletindo uma preocupação com a forma como esses eventos influenciam a política e a sociedade. Essa diferença no tratamento revela como a mídia pode moldar a percepção pública ao decidir quais temas são valorizados e quais são minimizados.

A forma como a mídia aborda questões políticas e sociais relacionadas ao futebol tem um impacto profundo na construção do imaginário social. No Brasil, a concentração em fofocas e aspectos pessoais dos jogadores contribui para uma visão distorcida da realidade, que desvia a atenção das questões sociais e políticas relevantes. Na peneira de pautas, parece que os portais e canais brasileiros tendem a dar mais valor notícia para as fofocas e a vida pessoal dos jogadores, do que de fato para o esporte e as questões sociais e políticas relacionadas a ele.

A intersecção entre mídia, futebol e política não é meramente circunstancial, mas estrutural e significativa. O esporte, como fenômeno cultural de massa, tem o poder de mobilizar e inspirar, e quando aliado a uma mídia comprometida com a verdade e a justiça, pode promover mudanças sociais substanciais. As eleições francesas de 2024 são um lembrete poderoso de que a relação entre esses campos é complexa e multifacetada, e a vigilância crítica sobre como essas interações se desenrolam é essencial para garantir que o futebol continue a ser um espaço de luta por justiça e igualdade.

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