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quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Narciso acha feio o que não é espelho

A miséria do jornalismo brasileiro em dois atos

Por Gilson Raslan Filho

Princípio básico do código de ética, de conduta e do exercício técnico e profissional dos jornalistas, a realidade, os fatos reais, o que de fato aconteceu é imprescindível para repórteres e editores, colunistas e articulistas.

É bem verdade que os dois últimos têm, sobre os dois primeiros, o privilégio de ter sua opinião sobre os fatos como um valor de composição. Mas ainda assim, lá estão eles: os fatos! Isso quer dizer que, a despeito do que eu ache deles (e os consumidores terão a possibilidade de discordar de minhas análises e opiniões), meu ponto de vista não pode prescindir da tarefa magistral e elementar de todo e qualquer jornalista: esclarecer sobre os fatos reais.


Eis que o jornalismo brasileiro fez surgir um novo espécime: o colunista analista sem compromisso com os fatos. Pior: colunistas tão apartados da realidade, que enxergam a sua própria visão do mundo, não o próprio mundo. E mais: acreditam que essa visão é a realidade.

A bem da verdade, é preciso dizer que esse não é um fenômeno novo – mas ele tem se tornado especialmente virulento em tempos de redes sociais e aprofundamento da crise da empresa jornalística fundada no século 20. Tampouco podemos generalizar: há bons jornalistas, que cuidam para que os fatos estejam sempre no centro da cena – não a opinião que analistas, colunistas e articulistas emitem.

Dois casos, todavia, merecem destaque e apontam para uma real falência do jornalismo feito a partir da lógica empresarial burguesa, montada no século 19 e consolidada no século 20. Ambos ocorrem quase no mesmo instante, no mesmo programa, “Em Pauta”, do Canal Globo News, e envolve os jornalistas Guga Chacra, comentarista de geopolítica internacional do canal; e Jorge Pontual, velho comentarista de generalidades, radicado em Nova Iorque.

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Ambos tratavam do mesmo fato: o discurso do Presidente brasileiro Luís Inácio Lula da Silva, em seu retorno à abertura da Assembleia Geral da ONU, em 19 de setembro. Havia um clima de verdadeiro entusiasmo com o discurso que Lula acabara de pronunciar – pelas circunstâncias: o discurso marcava o fim do pesadelo de quatro anos de Bolsonaro; e pelo impacto do discurso mesmo, muito aplaudido e elogiado por inúmeros políticos, empresários e jornalistas ao redor do mundo.

Jornalistas, no entanto, precisam manter uma postura crítica, enxergar além das paixões, relativizar o consenso. Em dois atos, Chacra e Pontual, no esforço por fazer jornalismo crítico, só reforçaram que aquele jornalismo em que militam já morreu. Só eles não sabem.

Ato 1: O absoluto sou eu

Guga Chacra criticou, na fala de Lula sobre ameaças à democracia na Guatemala, a ausência de crítica a regimes “ditatoriais” da China e da Rússia. Assim, de maneira generalista. Mas o que chama a atenção mesmo é a intencionalidade da análise do jornalista: tomar a democracia europeia e estadunidense como planos acabados da experiência democrática. Se Lula tinha a obrigação de denunciar todas as ameaças à democracia, também não deveria fazer em relação aos EUA, à França, à Alemanha etc etc?
 
Assista a um corte do programa:


 
 
Eis o fato: a democracia é ameaçada continuamente – por restrições políticas ou econômicas – em todos os locais. Eis a realidade vista por Guga Chacra: democracia é o que o ocidente entende por democracia.

Ato 2: O mundo para mim

O caso da análise de Jorge Pontual é ainda mais grave de tão simplória, quase grosseira. Para o jornalista, o sucesso do discurso de Lula se dava porque foram usadas palavras-chave de fácil compreensão para... jornalistas. Em outras palavras: para Pontual, o impacto do discurso do presidente brasileiro se deu por ter sido “manchetável”.

Assista a um corte do programa: 
 
 
 
A análise do jornalista beira o primário, porque não se dá conta que a esfera pública já não se limita à mediação do próprio jornalismo e que, por óbvio, a realidade não se realiza a partir do tecido jornalístico. Mas há um fato incontornável aí: analistas como Jorge Pontual nos dão a certeza de que não é desse tipo de analistas, comentaristas, colunistas que o mundo precisa.

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

A vida privada como produto

Por Matheus Antônio Vieira

Caso da separação entre Luísa Sonza e Chico Moedas revela como a midiatização da vida pessoal é uma estratégia construída com auxílio de páginas de fofoca

No último dia 20, a cantora Luisa Sonza (25) anunciou o término de seu namoro com Chico Moedas, durante sua participação no programa Mais Você da Rede Globo. Ao lado de Ana Maria Braga, a cantora leu um texto que escreveu após o fim do relacionamento, destacando uma traição sofrida pelo ex-namorado.
A cantora foi convidada ao programa para falar sobre a repercussão do seu álbum “Escândalo Íntimo”, lançado no dia 29 de agosto. Durante a exibição ao vivo, a cantora decidiu expor a traição de Chico Moedas. Os fãs esperavam ver a cantora falar sobre seu mais novo álbum, “Escândalo Íntimo” , que inclui a faixa “Chico”, composta por Sonza para seu então namorado.


Luísa Sonza no programa Mais Você. Foto: Globo.

Apesar da entrevista não ter resultado no aumento audiência do programa naquele dia, marcando 7,5 pontos no Ibope, o assunto viralizou nas redes sociais, se tornando Assunto do Momento no X (Twitter), e sendo divulgado amplamente nos perfis de fofocas no Instagram, o que abordaremos mais à frente. A música “Chico”, presente no novo álbum de Sonza, subiu 5 posições na plataforma Spotify, se tornando a 4º música mais ouvida do país no dia 21 setembro, com mais de 1 milhão de ouvintes diários.

Durante a leitura da carta Ana Maria Braga chegou a chorar com as palavras da cantora:

“Como se a traição já não bastasse, nos colocam como loucas, dão risada da nossa intuição, literalmente falam que a realidade é um detalhe pra você, invalidando tudo o que a gente pensa, acredita, vê, tudo o que é real.”

A vida pessoal como estratégia para a música

A vida pessoal de Luisa Sonza sempre foi assunto midiático, desde que ela se tornou conhecida pelo público. Em 2020, Luisa Souza se separou do comediante e influencer digital Whindersson Nunes, com quem foi casada por 2 anos. A separação foi muito comentada na internet, principalmente em razão da popularidade de Nunes na época. Entre 2020 e 2021 a cantora também namorou “Vitão”, com quem havia lançado a faixa “Flores”, também em 2020.

A midiatização da vida privada da cantora tem se apresentado como muito vantajosa. Estima-se que, depois da revelação do término com Chico Moedas, a cantora teria ganhado mais meio milhão de seguidores, informa o G1, totalizando 31,5 milhões de seguidores somente no Instagram. Houve também o aumento significativo do número de ouvintes da cantora na faixa.

Nas redes sociais, alguns internautas questionaram se a atitude de Luísa Sonza era uma “estratégia de marketing”. Em resposta aos comentários, ela ironizou no Instagram: “Claro gente eu fui corna de propósito faz todo o sentido parabéns”.

Comentário feito pela cantora no Instagram, no dia 21 de setembro. Foto: Reprodução Instagram.

O que levou Sonza à declaração pode não ter sido planejado. Mas há um planejamento em como comunicar. Não se tratava apenas de um comentário em resposta à pergunta de Ana Maria Braga. A cantora pediu o espaço para ler uma carta, escrita previamente para aquele momento. Ela se posiciona estrategicamente, criando uma narrativa sobre a traição, e desta forma, aproveita da exposição para liderar como o assunto será abordado. Para lidar com tais assuntos serão abordados, Sonza conta com uma das maiores empresas de marketing digital do país, a Music2/Mynd8.

A empresa que gerencia Luiza Sonza

Por trás da cantora Luisa Sonza está a empresa Music2/Mynd8. O grupo de empresas tem como fundadora Fátima Pissara, empresária da cantora, e especialista em marketing de influência, atualmente também CEO do portal Billboard Brasil. A empresa é responsável pelo gerenciamento de um longa lista de cantores e influencers no país, entre eles Luisa Sonza. A empresa também é responsável por uma “banca digital”, uma lista de perfis de perfis com fofocas e memes de celebridades.

As páginas de fofoca são centrais para garantir a exposição necessária para Luisa Sonza, e os outros influencers gerenciados pela Music2/Mynd8. Essas páginas comumente não possuem linhas editoriais, nem compromisso com a ética jornalística, o que não permite o público estabelecer com elas uma relação de transparência com aquilo que é informado. Dessa forma, as páginas podem escolher falar sobre determinado assunto de acordo com a demanda da Music2/Mynd8, sem sequer ser informado sobre a possibilidade de conflito de interesses. Cabendo a audiência realizar o processo crítico sobre o conteúdo consumido.

Listagem de perfis gerenciados pela Music2/Mynd8. Foto: Music2/Mynd8.

São 34 (trinta e quatro) perfis gerenciados pela Music2/Mynd8, a maioria acumulam entre 1 milhão a 20 milhões de seguidores. Com exceção dos perfis “modaparameninas”, “instacinefilos”, “omusojoao”, “perregue_chique”, “sincerooficial”, “soldadoferido”, todos outros perfis gerenciados pela empresa são sobre a vida das celebridades. Sendo que 28 dos 34 perfis fizeram ao menos uma publicação sobre o término de Luísa Sonza e Chico Moedas, seja replicando as reações de usuários, os comentários na mídia e as reações de outros influencers.

As polêmicas que esses influencers se envolvem incentivam as pessoas a procurarem mais informações, inclusive em suas redes sociais. O processo de engajamento em polêmicas pode parecer contraditório, uma vez que uma polêmica poderia acarretar na difamação, ou “cancelamento”, da figura pública. Entretanto, dominando parcialmente como a informação circula, a Music2/Mynd8 pode garantir que seus agenciados sejam retratados de acordo com seus interesses.

Durante a produção deste texto, a BBC publicou o artigo “Luísa Sonza e Chico Moedas: como desabafos públicos de celebridades podem ser um bom negócio” no qual abordou sobre a possível estratégia de marketing. O portal entrou em contato com Fátima Pissara, empresária de Sonza, que negou os comentários reproduzidos na internet: “É tão ofensivo achar que uma menina de 25 anos vai ter uma estratégia de marketing por trás de uma traição de um namorado para o qual ela fez uma música em homenagem”, afirmou em tom de desabafo Pissara a BBC.

Apesar do artigo destrinchar o aumento da popularidade de Sonza no Instagram e o aumento dos ouvintes da faixa “Chico”, a BBC não destrinchou sobre a relação da empresa Music2/Mynd8 com os portais de fofoca no Instagram.

Sonza havia sido processada em 2020 pela advogada Isabel Macedo, após a cantora pedir um copo de água para a mulher negra, confundindo-a como garçonete, em Fernando de Noronha.

Na terça-feira o assunto voltou a circular após o UOL publicar com exclusividade sobre o arquivamento do caso devido um acordo entre as partes. Na manhã (20) antes do programa, Isabela Macedo postou no Instagram: “O que eu pensava já ter ficado para trás, visto que o processo já estava arquivado, veio à tona. E mais uma vez me trouxe as dores, as quais estou tratando ainda.” O caso de racismo perdeu espaço midiático em meio a grande cobertura que foi realizada sobre o término.

Transparência e leitura crítica das mídias

O caso da Luisa Sonza revela o uso do poder da mídia na criação de demandas e audiência sobre determinados assuntos. Destaca que as particularidades da vida privada é um elemento utilizado pelas celebridades ou influencers, para garantir o engajamento do público.

Essa estratégia tem sido chamada por profissionais da área como marketing de influência e é uma variação da teoria fundada por Iwan Setiawan e Philip Kotler, do marketing humanizado, referências no campo de tendências de consumo e marketing. As imagens abordadas pelos artistas e influencers se tornam mais humanizadas, na medida que sofrem de problemas como o nossos, criando determinada conexão com o público. E mesmo a considerável parcela que não tomará o lado da cantora, continuará engajado na tentativa de combater a sua imagem.

A humanização da imagem do artista também pode fazer com que eles pareçam transparentes, mas por trás dessa humanização há um processo de escolhas e de muito dinheiro. Contraditoriamente, apesar de muito compartilhar sobre sua vida pessoal, Sonza tem evitado falar com o público sobre o racismo.

O caso de Sonza não se trata necessariamente de forjamento (ou invenções) da sua traição. Mas o declarado aproveitamento das situações pessoais como meio de garantir a propagação de suas imagens, e tendo como fim, o aumento do alcance e o retorno financeiro. Uma estratégia que ampliou seu público das páginas de fofoca gerenciadas pela Music2/Mynd8, para a televisão aberta. Ainda, esse poder midiático, pode garantir quais e como os assuntos serão abordados, ocasionando o apagamento de outras pautas.

Por se tratar de uma indústria, neste caso, a indústria da música, para que ocorra essa midiatização do artista, é necessário investimento monetário. E os valores normalmente não são publicizados. Em maio deste ano, Sonza teria assinado com a Sony Music, gravadora multinacional, em um contrato estimado de 100 milhões de dólares, de acordo com o colunista Leo Dias no Metropolés, mas a informação não foi confirmada.

As páginas de fofoca são responsáveis por ampliar a midiatização da vida privada desses artistas, e que quando controlados por uma empresa que possui interesses conflitantes podem permitir o falseamento da relevância do assunto e do interesse público sobre aquela informação. Além de criar uma falsa sensação de diversidade de perfis, apesar de se tratarem de meios gerenciados pela mesma empresa.

Nosso engajamento com as vidas privadas dos influencers e artistas partem das estratégias bem estabelecidas. Elas reconhecem o interesse público nessas histórias que se parecem com a dramaturgia de horário nobre brasileiro, e que como estas, são um produto com uma exuberante audiência a ser monetizada.