segunda-feira, 15 de agosto de 2022

O direito à preguiça

 Por Gilson Raslan Filho 

Mesmo se for considerada uma forma de resistência às condições cada vez mais precárias de trabalho, o jornalismo preguiçoso é uma ameaça à democracia





Em um texto anterior do Pluris (Pirâmide, pirâmides e a falta que faz o jornalismo), fiz uma crítica a uma prática muito comum de jornalistas e do jornalismo produzido regionalmente em portais noticiosos e TVs locais: a de não realizar de fato um trabalho de reportagem, um trabalho de abertura do contexto dos acontecimentos, essa sim uma tarefa imprescindível para a democracia. 

Neste texto, quero me ater ao fenômeno que há muito me chama a atenção – e que abordei brevemente no texto anterior: o uso indiscriminado e sem sentido do stand up no jornalismo das TVs locais. Antes, porém, de voltarmos ao fenômeno para explorá-lo, olhemos para o título deste artigo.

O direito à preguiça é uma referência direta ao manifesto homônimo, de 1880, escrito pelo líder operário de raízes francesas Paul Lafarge, genro de Karl Marx. No manifesto político-utópico, Lafarge aponta uma situação em que o maquinário, nas condições do século 19, era usado para impor um ritmo de trabalho inumano aos trabalhadores. Ao mesmo tempo, ele faz um elogio a esse maquinário, desde que os trabalhadores dele se apropriem e o utilizem para viverem uma vida menos dolorosa e submetida ao trabalho incessante e indigno.

Mais tarde, o sociólogo italiano Domenico de Masi retomou as teses de Lafarge em seu não menos utópico e hoje um best seller O ócio criativo, em que defende que o ócio como necessário para a criatividade – e portanto como um incremento de produtividade. 

A simples existência de manifestos que defendem a preguiça e o ócio como necessários até mesmo para o sistema de produção é um sintoma de que vivemos, desde o século 19, o avesso disso. Isto é: o arranjo produtivo capitalista vem aperfeiçoando as formas de superexploração da vida – do trabalhador, dos recursos naturais, dos sentidos e da percepção. E é exatamente esse o cenário em que se encontram os trabalhadores do jornalismo, cuja produção foi considerada, em algum momento, resultado do trabalho intelectual e criativo. Mas, pergunta-se: como ser criativo em uma situação em que se exibe como virtude a multiplicidade de funções que hoje são exercidas por um único jornalista? 

A tese que defendo aqui é a seguinte: o jornalismo preguiçoso é sintoma desse contexto de super-exploração de degradação profunda das condições de trabalho do jornalista. Foquemos, antes, porém, em entender melhor o que denomino de jornalismo preguiçoso e muito especialmente no caso da generalização do stand up no jornalismo televisivo regional.

Como exposto anteriormente, o stand up, em jornalismo de TV, é a prática comum e muito útil de informar sobre um acontecimento de forma breve e rápida. A tradução da locução verbal do inglês indica duas situações: “ficar de pé” pode se referir tanto à posição do repórter em frente à câmera, quanto a “levantar-se”, estar de prontidão para dar uma notícia rápida sobre um acontecimento importante demais para ser ignorado, enquanto se prepara a reportagem. 

Geralmente, no stand up, o repórter entra ao vivo. É claro que nada impede que esse boletim seja gravado e essa gravação seja utilizada para substituir a nota seca ou nota coberta realizada pelo âncora, com a mesma finalidade. Nesse caso, seria um recurso editorial, para fornecer dinâmica à edição. Seja como for, seu uso é pontual nas edições dos telejornais e nunca, jamais substitui o trabalho artesanal da reportagem. 

Pois é exatamente o contrário do que acontece no telejornalismo produzido regionalmente em Divinópolis. Por aqui, as (resumidas) equipes entram diversas vezes em uma mesma edição em stand up, tantas vezes que é possível dizer que o trabalho de reportagem, aquele em que o jornalista faz movimentar sua criatividade para narrar acontecimentos, é a exceção. 

O problema disso é que o espectador fica sem opção para compreender a torrente de acontecimentos do cotidiano, já que apenas a reportagem é capaz de fornecer elementos mais complexos para o recorte da realidade. Isto é: a reportagem é fundamental para o exercício consciente da cidadania e, consequentemente, para a democracia, pois é ela, não a nota rápida e seca do stand up, que permite um reconhecimento, a construção de sentido da realidade.

Ocorre que a reportagem é muito mais trabalhosa do que o stand up. Ela exigiria um trabalho artesanal de recolher informações, compreender os personagens envolvidos, montar e contar uma história. Como fazer tudo isso se as equipes foram se reduzindo diante da “necessidade” de o jornalista exercer múltiplas funções – nesse caso, de produtor, repórter, não raro cinegrafista, editor, além de fotógrafo e redator para outras plataformas? O stand up, seu uso generalizado se tornou, então, um sintoma da precarização do trabalho: os jornalistas – e são todos: dos gerentes aos repórteres – permanecem preguiçosamente no stand up diante do turbilhão de exigências e do volume de trabalho a que estão submetidos.

Então, sim, o jornalismo preguiçoso é uma forma de os profissionais resistirem – ainda que não conscientemente – ao quadro de profunda e contínua degradação das condições de trabalho. Seria uma virtude não fosse o fato de o jornalismo preguiçoso ser uma séria ameaça à democracia.



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