Diálogos e problematizações importantes que o recente seriado da Netflix traz em relação à loucura e suas abordagens ao longo da história
Por Camila Machado
“Em todos os lados, a loucura fascina o homem.”
FOUCAULT
Ratched conta a história por trás da enfermeira de mesmo nome do romance Um Estranho no Ninho, de Ken Kesey, publicado em 1962. Na série lançada em 2020 pela Netflix, Sarah Paulson dá vida a Ratched de forma brilhante. É uma série sobre os limites entre loucura e amor, uma narrativa que busca, do começo ao fim, mostrar como a obsessão nos leva à insanidade. Ao mesmo tempo que nos chama a pensar como a loucura, em si, era generalizada e tratada de forma absurda até pouco tempo atrás.
A história se passa no hospital psiquiátrico administrado pelo Dr. Richard Hanover (Jon Jon Briones), na comunidade de Lucia (Califórnia, EUA), no qual Mildred Ratched (Sarah é contratada como enfermeira no final da década de 40. Ao longo da série conseguimos descobrir o que a motivou a ir para o hospital: seu irmão Edmund, uma psicopata que havia matado dezenas de padres da cidade e que acabaria sendo executado em uma cadeira elétrica.
O surto psicótico de Edmund era resultado de inúmeros traumas e abusos na infância e isso é deixado claro logo no começo. Mas ao longo da série percebemos como Ratched também foi afetada pela infância problemática e a exploração sexual que passaram quando crianças. Ratched cresce e acaba desenvolvendo uma obsessão compulsiva pelo irmão, um desejo de protegê-lo a qualquer custo e isso a leva a cometer vários crimes. A cada episódio conseguimos enxergar mais claramente toda a perversidade, escuridão e confusão por trás da elegante e “bondosa” enfermeira. Chegamos ao final da temporada cientes de que os monstros são forjados em situações específicas de abandono e dor.
A série explora uma característica curiosa em alguns personagens: uma vontade insana de querer ajudar aqueles que estão “loucos”, quando eles próprios não reconhecem suas “loucuras”. Vemos isso de forma muito clara em Ratched, mas também no Dr. Hanover, coordenador do hospital, que queria revolucionar o tratamento psiquiátrico com várias técnicas modernas, mas assume uma busca insana pela “cura” das pessoas que o leva a praticar técnicas de lobotomia e terapias com sofrimento controlado em seus pacientes. Ele fica tão obcecado por esse desejo de “cura” que não percebe o mal que causava em seus pacientes e como isso também o levou a se afastar de sua família e todos ao seu redor. A construção da narrativa da série lembra e muito o famoso conto de Machado de Assis: O Alienista. Um conto que narra a história de um médico que abre uma “casa de loucos” e julga que todos os habitantes da cidade precisam ser internados, porque sofriam de algum problema mental. Porém, no final ele percebe que o louco ali era ele mesmo, por ser o único “normal” da cidade.
Outro ponto importante a ser considerado na série é a forma como ela aborda os antigos tratamentos psiquiátricos e como naquela época qualquer comportamento desviante eram automaticamente considerados doenças psicológicas. Isso se dá de forma muito clara no personagem de um garotinho, que provavelmente sofria com o transtorno de déficit de atenção (TDH), mas que acaba sendo submetido a uma lobotomia para ficar “mais calmo e concentrado”. Pode parecer coisa de ficção, mas esse “tratamento” foi realmente receitado para “curar” crianças desatentas e/ou hiperativas inúmeras vezes. A lobotomia era naquela época uma técnica que prometia revolucionar o campo da psiquiatria e das doenças mentais, que poderia curar problemas como perda de memória, devaneios, e até mesmo a homossexualidade, que na época era considerada uma doença.
Em determinado momento, Ratched demostra como é feita uma lobotomia transorbital, prática na qual um picador de gelo é introduzido na órbita dos olhos, e com isso chega até às regiões mais profundas do cérebro. O procedimento ocorre sem sangramento visível, mas mesmo assim faz uma das enfermeiras presentes vomitar. A técnica, segundo a narrativa ficcional, teria sido “criada” pelo Dr. Hanover, mas por mais estranha e cruel que possa parecer ela é real. António Egas Moniz (que inclusive é citado em Ratched), criou a técnica nos anos 40, e foi premiado com o Nobel de Medicina em 1949 pelo procedimento. Hoje, o prêmio é considerado um dos mais controversos da história da organização do Nobel. O uso da lobotomia cresceu dramaticamente em apenas uma década. Em 1951, cerca de 20 mil lobotomias foram realizadas nos Estados Unidos, a imensa maioria em mulheres. Como a lobotomia transorbital simplesmente manipulava e cortava partes do cérebro sem análise prévia, os resultados variavam entre pacientes. Hoje, a lobotomia é considerada um procedimento bárbaro, desnecessário, e que traz mais problemas do que benefícios. O procedimento foi basicamente banido dos Estados Unidos em 1967, após uma paciente sofrer hemorragia cerebral durante a cirurgia.
O seriado nos chama atenção para os erros não apenas no tratamento, mas no próprio diagnóstico dos pacientes. O lesbianismo, como abordado na série, também era um “problema” a ser curado. Em paralelo a história de Ratched (que também era lésbica) acompanhamos a história duas mulheres que após uma lobotomia sem resultados, foram submetidas a um tratamento desumano para que fossem curadas: um banho fervente seguido de um resfriamento rápido. “Estão cozinhando essas mulheres vivas!”, protesta uma das enfermeiras. Mas, o tratamento segue e as mulheres voltam a ser submetidas a tal tortura mais algumas vezes até que exaltas de sem “cozidas” vivas, passam a responder que nunca mais iriam se aproximar de outra mulher novamente e o tratamento é considerado um sucesso pelo Dr. Hanover.
A série dialoga em muitos pontos diretamente com Michel Foucault e suas conceituações no livro A História da Loucura, no explica como surgiu a noção de loucura e como o comportamento desviante se tornou uma doença com a necessidade de internação e tratamento compulsório. Por meio do pensamento de Foucault, conseguimos ver como o discurso sobre a loucura durante os séculos XV a XIX era também uma forma de poder, isolamento e punição. Tanto o saber médico, quanto a internação psiquiátrica, tornaram-se alguns dos instrumentos de poderes institucionais da época e que, consequentemente, estabeleceram uma fronteira entre a racionalidade e a loucura sem ao menos ter total conhecimento de o que ela realmente seria.
Num primeiro momento, a loucura seria tratada sobretudo na Idade Moderna, com exclusão: os loucos seriam colocados em navios, Stultifera Navis (A nau dos loucos), e lançados ao mar. Porém, após o século XVIII, quando a loucura deixa de ser apenas um erro ou ilusão para tornar-se uma ameaça, surge o internamento, uma ilha dentro da própria civilização cuja maior preocupação não seria talvez com a perturbação da mente do louco, mas sim, com a perturbação que este poderia causar socialmente. No entanto, no século XIX a Psiquiatria toma as rédeas da loucura e com promessas de cura justificavam as formas de asilamento, nos diz Foucault. Agora, a loucura estaria retida e segura. Não existe mais a barca, mas o hospital.
Na sociedade moderna, racionalista e sobretudo burguesa, eliminar estes elementos não sociáveis se torna um sonho. “O internamento seria assim a eliminação espontânea dos ‘a-sociais’.” (História da loucura, p. 79). Nesta dinâmica social, faz-se as exigências concretas dos asilos, prisões, hospícios e hospitais na afirmação de instituições que ordenam o sonho burguês de sociedade, promovendo assim, réplicas mais ferrenhas
de uma exclusão já existente.
Temos que considerar ainda que, no contexto do século XVII, a preocupação maior com aqueles que “desrespeitavam a ordem social” era de simplesmente não deixar estes personagens vagarem livremente pelas ruas da cidade, sendo ou não estas pessoas loucas e carentes de internação. E é interessante observar como isso se deu quando as práticas de, por exemplo, queimar bruxas em praças públicas se tornaram incomuns - devido ao próprio esvaziamento de seu poder sombrio e de suas intenções malignas - e o internamento toma o lugar destas condenações. Foucault cita como o Hospital Geral e as casas de internamento da época receberam em grande número pessoas que, supostamente, mexiam com feitiçaria, magia, adivinhação e até mesmo alquimia. Desta forma, a magia passa a pertencer também aos mares da insanidade.
Sob este mesmo olhar, a psicanálise atribuirá, no século XX, à loucura o resultado de alguma sexualidade perturbada. “Sempre dentro dessas categorias da sexualidade, seria necessário acrescentar tudo o que se diz respeito à prostituição e à devassidão.” (História da Loucura p. 90). É assim, nestes desejos impuros, que se condena a sodomia e a homossexualidade que passariam então a também compor o campo da loucura. Vemos isso se manifestando de forma muito clara em relação a homossexualidade em Ratched.
Toda conceituação de Foucault na obra monstra a ânsia das pessoas em querer julgar os comportamentos morais de todos ao seu redor em certos e errados, normais e anormais. Foucault revela que não existe padrão adequado para escolhas morais, mas sim que todos são construções históricas. Sendo assim, quando julgamos alguém por estar agindo errado, estamos na verdade defendendo a existência de um falso padrão de comportamento humano. E é incrível observar como traços da teoria de Foucault integram as sublinhas de Ratched e nos faz vislumbrar como o internamento de pessoas que em certa maneira “desrespeitavam a ordem social” da época era na verdade uma forma de poder e exclusão, com raízes estritamente políticas. É possível ainda ver como a loucura sempre foi uma incógnita para a psiquiatria e os erros dela ao tentar “curá-la” no passado.
Ratched é uma série que te prende do começo ao fim e ainda que seja uma série ficcional, aborda o passado real do tratamento da loucura nos séculos passados e nos faz questionar muitas das abordagens do tema que temos hoje. Pensando nisso o PLURIS decidiu estender esse diálogo e a cada semana trará uma análise sobre como o Brasil tem lidado com a loucura historicamente.
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