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quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Psiquiatria brasileira: uma história marcada pelo horror


Por Camila Machado




Os problemas relacionados à saúde mental por muito tempo foram tratados não como uma doença que precisava de cuidado e tratamento, mas  como um mal social que incomodava e atrapalhava o dia-a-dia das comunidades. O foco era retirar as pessoas psicologicamente instáveis de cena, isolando-as do restante da sociedade e nesse contexto surgem os manicômios. No Brasil, as primeiras ações relacionadas à saúde mental não diferem muito das que foram aplicadas em outros países. E para entendermos um pouco melhor como esse tema era tratado, tentarei ao longo deste texto fazer uma breve retrospectiva da loucura no Brasil e seus desdobramentos.


Ainda no Brasil colonial, já se diferenciavam os pacientes entre quem podia ou não pagar pelos tratamentos e com os cuidados referentes à saúde mental isso não era diferente. Tinha acesso aos cuidados especializados apenas quem podia pagar e o restante era levado para a caridade. O desenvolvimento dos modelos de tratamento de doenças mentais foi ainda mais lento do que os de outras enfermidades e os cuidados eram prestados, em sua maioria, por curandeiros - inclusive sacerdotes católicos, os jesuítas. Os médicos com formação acadêmica eram raros e até o acesso a cirurgiões e barbeiros licenciados era difícil. Não havia especialistas em psiquiatria, mas hospitais como a Irmandade das Santas Casas de Misericórdia abrigavam enfermos pobres e os não pobres que fossem abandonados por algum motivo. Apenas entre o final do século XVIII e início do XIX, o avanço do conhecimento científico e da consciência social impulsionaram a medicina para um formato mais humanístico e menos higienista em relação às doenças mentais. 


No Brasil império, com a transferência da coroa portuguesa, em 1808, começa o processo de urbanização e com ele novos problemas vieram à tona: os loucos. Estes que até então eram vistos com certa “naturalidade” nas pequenas comunidades rurais se tornam visíveis e perturbadores no meio urbano. Nesse contexto, houve a inauguração do Hospício do Rio de Janeiro. Visto como uma iniciativa modernizadora para a época, ele seguia o modelo francês e serviu de parâmetro para os posteriores.


Em 1920, houve então a ampliação e o aprofundamento da influência dos   princípios eugênicos no âmbito da psiquiatria brasileira, que passaria cada vez mais a caracterizar-se pelas internações de caráter preventivo.  Quadro esse que levou, em 1923, à criação da Liga Brasileira de Higiene Mental, um programa de intervenção no espaço social com características eugenistas, xenofóbicas, antiliberais e racistas, como descrito por Eliane Maria Monteiro da Fonte em seu artigo “Da institucionalização da loucura à Reforma Psiquiátrica: as sete vidas da agenda pública em saúde mental no Brasil” publicado em 2012. Os fatores psíquicos eram vistos como produtos da raça ou do meio e as palavras de ordem desse período eram: controlar, tratar e recuperar. 

Em 1940 as ações político-assistenciais eram iniciadas e representavam a “modernização dos tratamentos”, nesse período 80,7% dos hospitais psiquiátricos no Brasil eram públicos e os asilos possuíam um papel orientador da assistência psiquiátrica.


Entre os anos de 1940 e 1950 houve uma grande expansão de hospitais psiquiátricos no país. Contudo, a criação de novos hospitais não amenizou a situação caótica que atingia o sistema. Na década de 1950 as instituições viviam em total abandono e com excesso de pacientes, tanto que esse quadro foi posteriormente utilizado como argumento incontestável para a introdução da privatização (FONTE, 2012).

A década de 1960 foi marcada pelo questionamento e modificação do tratamento asilar no mundo, porém, no Brasil tivemos um movimento contrário: uma expansão da rede hospitalar. Com o golpe militar de 1964 a assistência antes destinada a doentes mentais indigentes se estende e passa a cobrir a massa de trabalhadores e seus dependentes. Nesse período consolida-se a privatização da assistência, com contratação de leitos em hospitais e clínicas conveniadas, remunerados pelo setor público (FONTE, 2012).


Indústria da loucura


O surgimento dos psicofármacos além das documentadas consequências positivas, teve  também muitas consequências nefastas, desumanas e anti econômicas- do ponto de vista das finanças do Estado. Acerca disso, o psiquiatra Miranda-Sá Jr. diz que a  “assistência psiquiátrica pública” se dividiu entre aquela patrocinada pelo Estado e outra, mantida pela previdência social pública, que se multiplicou movida única ou predominantemente pela busca de lucro. O doente mental se transformou em uma fonte inesgotável de lucro para empresários que viviam dessa condição”.


A fala de Miranda-Sá se refere ao grande aumento, por exemplo, do grande aumento de internações em hospitais privados, na década de 1960, o que fez com que esse período passasse a ser denominado como o da Indústria da Loucura. Os leitos psiquiátricos privados saltaram de aproximadamente 14 mil, no início da ditadura militar, para mais de 70 mil em 1970. Isso porque o chamado “milagre econômico” da época escondia a precarização das condições e a intensificação do trabalho, o que teve como consequência um maior adoecimento da classe trabalhadora. Ao mesmo tempo escondia também a política de privatização da época que enriquecia empresários donos das instituições psiquiátricas, financiadas com dinheiro público.


Ainda que no Brasil a assistência em saúde mental tenha sido inicialmente implementada pelo setor público (até o início dos anos 40, havia no país cerca de 24 mil leitos psiquiátricos, dos quais apenas três mil eram particulares), depois do Golpe Militar de 1964, o sistema de saúde passou por severas modificações e a área da psiquiatria, quase que em sua totalidade, passou a ser gerida por empresas privadas. Na época do regime militar, o número de leitos no sistema privado passou para 56 mil e os investimentos na saúde mental pública foram reduzidos. 


Desviat (1999) em seu livro “A reforma psiquiátrica”, expressa como determinações econômico-políticas estão intimamente relacionadas ao enclausuramento da loucura. Segundo o autor, em momentos de crise econômica, a psiquiatria é acionada para controlar desordens, excluir os que incomodam e manter a ordem produtiva, além de geralmente ser acompanhada de outras leis repressivas. Foi assim na chamada “Grande Internação” que ocorreu na passagem do feudalismo à sociedade capitalista, como apresenta Foucault em “A História da Loucura”. A mesma tendência se aplica aqui no no Brasil na passagem da Colônia ao Império e volta a se apresentar no aprofundamento liberal da ditadura militar.


No regime militar o método adotado era o de incentivar o maior número de internações prolongadas possível, em que cada paciente era mantido por uma diária paga pelo poder público. Assim a indústria da loucura se firma e contribui fortemente para a consolidação do sistema asilar no Brasil.


Para entendermos de forma mais clara como essa indústria se estabeleceu e sua abrangência, olhemos para alguns dados: em 1964, havia 79 hospitais psiquiátricos no Brasil, em 1985 este número aumentou para 453, sendo deste total apenas 10% instituições públicas. Nessa época, os gastos com saúde mental consumiam a maior parte da verba destinada à saúde no país, ultrapassando mais de um bilhão de dólares por ano. Os militares financiavam a construção e a infraestrutura dos hospitais psiquiátricos desde que essas instituições aceitassem pessoas que eram consideradas ameaças ao regime militar. Segundo dados do Ministério da Saúde, nos anos 1970, 1980 e início dos anos 1990, ocorriam em média 600 mil internações por ano, com uma média de 15 a 20 mil mortes por ano (BUENO, 2004).




Holocausto Brasileiro 

É impossível falar da história da psiquiatria brasileira e da indústria da loucura sem considerar um dos mais cruéis exemplos deste modelo hospitalocêntrico que é o caso do Hospital Colônia de Barbacena/MG. O hospital fundado em 1903 com capacidade para 200 leitos chegou a 1961 atingindo a marca de cinco mil pacientes. A superlotação que expunha milhares de pessoas a condições desumanas foi um escândalo mundial e ficou conhecido como “Holocausto Brasileiro”. O hospital deixa de ser um um ambiente de cura e passa a ser um dos principais “abrigos” de presos políticos da ditadura militar.  


A superlotação que já era uma realidade na década de 30, ganhou proporções ainda mais absurdas com a mudança de critérios médicos para que a instituição passasse a receber também homossexuais, militantes políticos contrários ao regime, mães solteiras, alcoólatras, pessoas em situação de rua, pessoas sem documentos e todos os tipos de indesejados, inclusive, doentes mentais. 


Todos os 16 pavilhões da instituição foram marcados por atos desumanos.  Além da superlotação, não havia água encanada nem comida suficiente para todos, muitos internos se banhavam e bebiam no esgoto. A tortura marcava os dias de todos os internos da Instituição: aquelas pessoas eram enviadas para Barbacena em em trens de carga,  quando chegavam passavam por ‘banho de desinfecção’, tinham a cabeça raspada, eram uniformizados assim desumanizados. A Colônia de Barbacena nunca foi um hospital psiquiátrico, mas sim um depósito de pessoas socialmente indesejadas. Um local de tortura, superlotação, abandono, crueldade e condições subumanas que ceifaram cerca de 60 mil vidas, isto até o fim dos anos 80.


Infelizmente, foi necessário este e outros genocídios para que a modelo de atendimento em manicômios fosse seriamente questionada pela sociedade brasileira. E uma reforma psiquiátrica foi instaurada rompendo décadas depois com a “indústria da loucura”. Mas, esses são tópicos para a nossa próxima discussão. Na próxima semana o PLURIS volta com nossa série sobre a psiquiatria brasileira, relembrando como as reformas e mudanças nos tratamentos psiquiátricos se deram no Brasil e os desdobramentos delas.



Referência consultada para a construção deste texto que vale a pena ser lida:

FONTE, Eliane Maria Monteiro da. Da institucionalização da loucura à Reforma Psiquiátrica: as sete vidas da agenda pública em saúde mental no Brasil. Artigo - Estudos de Sociologia, vol.1 N.18. Pernambuco, 2012. 


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