Por Camila Machado
Como discutimos em nosso último texto (https://www.observatoriopluris.com.br/2021/08/psiquiatria-brasileira-uma-historia.html) a indústria da loucura no Brasil foi um quadro da história da psiquiatria brasileira que resumia a assistência em saúde mental à internação em grandes hospitais psiquiátricos e a ambulatórios burocratizados, estes quase sempre envoltos em esquemas de corrupção e favorecimento político. Em entrevista para a 15ª edição do boletim informativo do Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS), Patrícia Von Flach, assistente social e psicóloga doutoranda no Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA), relembra sua experiencia na época:
"Eu cheguei no Hospital Juliano Moreira – BA, no final da década de 1980, inicialmente como estagiária de serviço social e depois como profissional concursada pela Secretaria da Saúde do Estado da Bahia - SESAB e nos 12 anos que lá trabalhei pude presenciar o uso indiscriminado e pouco cuidadoso de práticas como eletrochoque e contenções físicas e medicamentosas, com intervenções punitivas e abusos de todas as ordens em relação aos direitos humanos. Não por acaso, quase 100% das pessoas ali internadas eram negras e advindas das áreas mais pobres da periferia de Salvador ou do interior do estado, lembrando-nos que o racismo e a desigualdade social estão na base deste modelo manicomial”.
Segundo a pesquisadora a “indústria da loucura” foi desmontada aos poucos por trabalhadores, usuários e familiares a partir da Constituição de 1988 e da construção do Sistema Único de Saúde (SUS) que posteriormente garantiram a fiscalização e regulamentação dos hospitais psiquiátricos. Muitas experiências reformistas estavam em prática em todo o mundo e colocaram o modelo manicomial em questão.
A reforma psiquiátrica no Brasil foi inspirada pelas ideias e práticas do psiquiatra Franco Basaglia, que revolucionou, a partir da década de 1960, as abordagens e terapias no tratamento de pessoas com transtornos mentais nas cidades italianas de Trieste e Gorizia. Lá Basaglia dirigiu por anos o hospital psiquiátrico San Giovanni, com mais de 1,2 mil pacientes internados, e onde pode aplicar sua nova abordagem libertária, rompendo muros culturais e físicos na forma como uma sociedade deve lidar com seus "loucos" para reintegrá-los à sociedade.
Basaglia revolucionou o tratamento psiquiátrico, desenvolvendo uma abordagem de reinserção territorial e cultural do paciente na comunidade, ao invés de isolá-lo num manicômio à base de fortes medicações, vigilância ininterrupta, choques elétricos e camisas de força. Seu tratamento possibilitou o retorno de milhares de internos à vida social em Trieste e levou a prefeitura local a, com os anos, fechar o hospital psiquiátrico, optando pela abertura de novos centros terapêuticos territoriais.
Os resultados positivos de Basaglia na Itália alcançou o mundo e sua abordagem passou a ser recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) a partir de 1973. A posição da OMS tornou o debate mundial e a discussão chegou ao Brasil. Profissionais da área da saúde passaram então a denunciar as condições de profunda degradação humana em que operava a maioria dos hospitais psiquiátricos no país. Mas a crise, em pleno regime militar, levou à demissão da maioria dos denunciantes.
Finalmente em 1979, é criado o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) e posteriormente o movimento antimanicomial, em 1987, dando continuidade à luta pela nova psiquiatria. O projeto de reforma psiquiátrica foi apresentado em 1989 pelo então deputado Paulo Delgado (MG) e após 12 anos o texto foi finalmente aprovado e sancionado. No dia 6 de abril de 2001, o então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, sancionou a (Lei 10.216, de 2001), que representou um divisor de águas no tratamento de brasileiros que sofrem com distúrbios, doenças e transtornos mentais. Foi um marco para a reforma psiquiátrica e levou ao fechamento gradual de manicômios e hospícios que proliferavam país afora.
A lei redireciona o modelo da assistência psiquiátrica, regulamenta cuidado especial com a clientela internada por longos anos e prevê a possibilidade de punição para a internação voluntária arbitrária ou desnecessária. E antes, a Lei Antimanicomial, que promoveu a reforma, já definia a internação do paciente somente se o tratamento fora do hospital fosse ineficaz.
Em substituição aos hospitais psiquiátricos, o Ministério da Saúde determinou, em 2002, a criação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) em todo o país. Os CAPs são espaços para o acolhimento de pacientes com transtornos mentais, em tratamento não-hospitalar. A função é prestar assistência psicológica e médica, visando a reintegração dos doentes à sociedade. Há hoje, no Brasil, segundo dados de 2020 do Ministério da Saúde, cerca de 2.661 CAPs espalhados por todo o país.
A luta antimanicomial e a reforma psiquiátrica como um todo é um processo histórico de defesa aos direitos humanos e busca da cidadania de pessoas em sofrimento psíquico. Foi uma luta contra um modelo que institucionalizava práticas “assistenciais” que violentavam e centralizavam o cuidado dos pacientes em instituições produtoras de exclusão social.
Frutos da Reforma:
Muitas das ações referentes a saúde mental que temos hoje no Brasil só são possíveis graças a reforma psiquiátrica que garantiu o direito à cidadania aos doentes mentais. Um dos fruto desta reforma é o Programa de Volta para Casa (PVC) ( Lei 10.708, de 2003), instituído em 2003 pelo ex-presidente Lula Inácio da Silva, e garante o auxílio-reabilitação psicossocial (hoje no valor de R$ 412 mensais) para assistência, acompanhamento e integração social de pacientes com transtornos mentais egressos de internação em hospitais psiquiátricos por um período igual ou superior a dois anos.
O PVC é considerado fundamental no processo de desconstrução de práticas manicomiais e reabilitação psicossocial das pessoas com história de internação de longa permanência, como prega a reforma psiquiátrica. Ele tem o objetivo de restituir o direito do paciente de morar e conviver em liberdade, além de promover a autonomia e o protagonismo do beneficiado. Em parceria com a Caixa Econômica Federal, o programa conta hoje com mais de 2600 beneficiários em todo o território nacional.
Além do PVC, temos o programa de Redução de Leitos Hospitalares de Longa Permanência e os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs), que são casas destinadas a pessoas com transtornos mentais que tiveram alta de internações psiquiátricas, mas que ainda não têm suporte financeiro, social ou laços familiares que permitam a reinserção na comunidade. Hoje temos cerca de 686 SRTs no país, segundo a Agencia Brasil, atendendo pacientes com transtornos mentais, inclusive aqueles que estejam em situação de vulnerabilidade social e pessoal, como moradores de rua ou usuários de álcool e drogas.]
Juntos eles formam um tripé de efetivação do processo de desinstitucionalização e resgate da cidadania dos doentes mentais privados de sua liberdade nos hospitais psiquiátricos brasileiros. Mas, um dos setores que tem enfrentado, há mais de três décadas, a marcação cerrada do “Anti-SUS” é o de atendimento à saúde mental. Projetos vêm sendo desmontados, leis alteradas e toda a luta antimanicomial ameaçada. É preciso falar disso, então para encerrar nossa série sobre a “Psiquiatria Brasileira” na próxima semana trataremos dos retrocessos e destruição de políticas de saúde mental importantes.
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