Uma análise de algumas das recentes ações referentes à Política de Saúde Mental brasileira: loucura novamente como mercadoria; um retrocesso intencional?
Por Camila Machado
“Se tratando de política pública, não é admissível que ganhem os mercadores da loucura e os mercadores dos templos, que vão auferir lucros na indústria farmacêutica, na indústria da segregação e na indústria dos costumes”
- Lasswel (1936)
A Política de Saúde Mental brasileira vinha gradativamente mudando o cuidado em saúde mental ao investir mais em uma rede de dispositivos capazes de substituir os manicômios. Historicamente o modelo manicomial, como vimos em nosso segundo texto (https://www.observatoriopluris.com.br/2021/08/psiquiatria-brasileira-lutas-reformas-e.html), era centrado no hospício e produzia a institucionalização dos portadores de sofrimento psíquico e a exclusão social. Franco Basaglia, protagonista da reforma psiquiátrica italiana e grande influência para transformações em saúde mental no Brasil (link), dizia que “o hospício expropria as subjetividades”. Os sujeitos, ao serem excluídos socialmente, não têm oportunidade mais de estabelecer trocas afetivas, vivenciais, e zera a contratualidade social. O retorno aos manicômios traria graves consequências à cidadania, mas isso não impediu que medidas contraditórias a tudo isso fossem tomadas, ameaçando as conquistas da reforma psiquiátrica no país.
A nota técnica Nº 11/2019 divulgada pelo Ministério da Saúde, em fevereiro de 2019, sobre as mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas, é uma das ações mais problemáticas desta área e que sinaliza um grande retrocesso para as políticas de saúde mental brasileiras,
A nota traz a possibilidade de ambulatórios de psiquiatria e hospícios tratarem pacientes com sofrimento psíquico, mas também dependentes químicos. Além de apresentar o uso da eletroconvulsoterapia (ECT) como oferta de “melhor aparato terapêutico como tratamento efetivo”, sugerindo a ampliação desse recurso no Sistema Único de Saúde – SUS. Ainda que o texto diga que a eletroconvulsoterapia terá “indicações para um número limitado de usuários, em circunstâncias específicas”, a forma como está proposto, mostra uma priorização a este recurso em detrimento de tantos outros dispositivos terapêuticos de excelência. Além disso, voltar a utilizar internações de longa permanência serão agravos à saúde pública, que pode nos levar novamente a tendência da institucionalização, a perda dos vínculos sociais e a violação dos direitos humanos – como os que marcam as nossas experiências internacional e nacional.
Para piorar a situação a nota apresentada fere também o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ao possibilitar a internação de criança e adolescentes junto com adultos, a partir de um laudo médico que o permita. Ao retirar as crianças e adolescentes do meio familiar e ambiente sócio comunitário, priva-os de sua liberdade e de seus direitos (Lei nº 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente).
A Nota Técnica ameaça o financiamento de toda rede de cuidados já existente no Brasil ao redirecionar os investimentos em ambulatórios especializados e em comunidades terapêuticas para a compra e uso do ECT. Ao utilizar os já insuficientes recursos existentes nos dispositivos como o ETC, a rede atual sofrerá um desinvestimento. A lógica denunciada (no início da luta antimanicomial) da indústria da loucura parece estar tomando força novamente, e agora com apoio do Ministério da Saúde. Haverá lucro com o ECT (equipamento e uso), medicamentos, leitos psiquiátricos no setor privado e o mais grave, o hospital psiquiátrico será incluído na rede. E assim como na Industria da Loucura da década de 90, novamente segmentos que voltarão a lucrar com o sofrimento psíquico. Mas, claro que os verdadeiros interesses econômicos e políticos estão omissos em tal documento. A rede substitutiva aos manicômios, que vinha sendo construída no Brasil, está sob ameaça por meio da nota técnica.
Além disso, no ano passado, houve a suspensão de centenas de contratos de Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e serviços de residência terapêutica. Enquanto muitos outros foram transformados em “abrigos”, passando a servir meramente para moradia, sem foco na hospitalização.
No dia 07 de dezembro de 2020, o Jornal Folha de S. Paulo publicou dados obtidos pelo Grupo Técnico do Ministério da Saúde, destacando pontos (des)estruturantes da Política Nacional de Saúde Mental (PNSM). Entre elas, a revogação de mecanismos de fiscalização de hospitais psiquiátricos e extinção das equipes que apoiam a transferência das pessoas que hoje residem nesses lugares. Além da extinção de equipamentos de assistência social, do atendimento psiquiátrico nos CAPS, dos serviços de atendimento à saúde da população em situação de rua, e do controle sobre as internações involuntárias de pessoas com dependência química que, atualmente, demanda comunicação ao Ministério Público. Temos também a revogação do Fórum Nacional sobre Saúde Mental de Crianças e Adolescentes e das diretrizes sobre saúde mental indígena, a transferência da responsabilidade da política sobre drogas para o Ministério da Cidadania e a criação de serviços específicos para pessoas com diagnóstico de dependência química e outros transtornos psiquiátricos.
Estas propostas trazem a diminuição do acesso a tratamentos baseados em evidências científicas, e valores éticos e humanitários, para um país com mais de 200 milhões de habitantes e que em 2017 (período pré-pandemia por Coronavírus) contava com 5,8% de pessoas com depressão e 9,3% com ansiedade, de acordo com dados da Organização Pan-americana de Saúde (OPAS).
Com as mudanças grupos que defendem a segregação das pessoas com transtornos mentais e que preferem a responsabilização individual dos doentes e não a análise pela ótica social, ganham financiamento e protagonismo político. E temos a volta dos “indesejáveis” aos cárceres, poupando as pessoas “normais” da convivência e do comportamento instável dos doentes mentais.
Estas são ações representam um grande retrocesso e retoma os grandes investimentos em manicômios, comunidades terapêuticas e no modelo ambulatorial como um todo – que é medicalizante, individualizante e parte da ideia de que a doença é do indivíduo, e com uma consulta (que é basicamente prescrição de medicamentos) tudo se resolverá. É estranho como todo esse retrocesso parece atender muito bem aos interesses dos empresários dos hospitais psiquiátricos e da indústria farmacêutica.
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