quarta-feira, 14 de julho de 2021

Jornalismo e jornalistas “isentões”, desçam do muro!

Por Ana Laura Corrêa


Nos últimos tempos, a internet tem cobrado o posicionamento político de artistas ‒ os casos que ganharam mais destaque recentemente foram de Juliana Paes, Ivete Sangalo e Claudia Leitte, criticadas pelo comportamento “isentão” diante de uma política por uma maioria considerada um verdadeiro genocídio (comprovada a ação da imunização de rebanho e do “morra quem deve morrer”, não será possível negar, nem para o mais apegado negacionista, a política de genocídio) que Jair Bolsonaro adota contra a população brasileira.


Nesse cenário, o jornalismo parece passar despercebido ‒ não tem a mesma cobrança de posicionamento que os artistas têm. Por que não? Porque a falsa ideia de que é possível fazer um jornalismo isento, imparcial e objetivo tornou-se praticamente um consenso. Esse mito se perpetua em slogans de veículos e até mesmo nas faculdades de jornalismo e entre profissionais que já atuam na área.


Ingenuidade

No fim do mês de junho, na mesa de abertura de um congresso promovido pelo curso de comunicação de uma universidade federal em Minas Gerais, as jornalistas participantes, de uma emissora de TV afiliada da Globo, foram questionadas sobre como se dá o posicionamento político do jornalismo. Responderam:


"Profissionalmente o jornalista não tem partido político, não tem time de futebol. O nosso posicionamento acaba sendo em uma apuração bem feita [...] Não é um posicionamento de declarar voto, isso eu faço dentro da minha casa, com a minha família";


"O posicionamento político do jornalismo tem a ver com ouvir os dois lados e o próprio telespectador, o ouvinte ou o leitor vai ter as próprias conclusões. Eu não preciso ser tendenciosa ao falar sobre algo. Eu apenas mostro pra ele os dois lados da moeda e ele escolhe com base no caráter, na moral o que ele acha que é correto ou não".


Não tem como não ser tendencioso


Em toda a sua rotina produtiva, o jornalista faz escolhas: decide por uma pauta em detrimento de outra ‒ o que já é uma tomada de posição ‒, ao escrever uma matéria, seleciona palavras ‒ e novamente se posiciona, pois cada palavra é, por si só, tendenciosa. Vejam, por exemplo, a diferença em chamar as mortes por covid de “fatalidades” ou de “genocídio”, ou quando o assassinato de uma mulher é classificado como “crime passional” ou “feminicídio” ‒ são exemplos extremos, mas cada mínima escolha do jornalista já representa um posicionamento político. 


Por uma “nova” visão do jornalismo


O jornalista Adelmo Genro Filho produziu, em 1987, uma teoria do jornalismo na qual desmonta as concepções pretensamente “objetivas” e “imparciais” da atividade. Embora já tenha sido produzida há alguns anos, a abordagem permanece muitas vezes deixada de lado pelos jornalistas. Nesses tempos em que é urgente um posicionamento do jornalismo e dos jornalistas, a teoria precisa ser retomada.


No texto, o autor traz que “não há um fato e várias opiniões e julgamentos, mas, sim, um mesmo fenômeno (manifestação indeterminada quanto ao seu significado) e uma pluralidade de fatos, conforme a opinião e o julgamento”. Assim, é preciso ressaltar que mesmo a percepção dos fenômenos pelos jornalistas não é e não pode ser, de forma alguma, neutra, uma vez que é sempre mediada por uma visão de mundo, por mais que ela não seja óbvia ao próprio jornalista .


Adelmo Genro Filho ainda aponta que essa suposta objetividade é uma regra “que os jornalistas devem seguir sem saber o motivo, tornando-se presa fácil da ideologia burguesa e da fragmentação que a proporciona. A realidade [por meio da aplicação da pirâmide invertida] transforma-se num agregado de fenômenos destituídos de nexos históricos e dialéticos”.


Assim, o autor propõe em sua teoria que as notícias não devem se deter somente ao fato, ao lead ‒ caminhando dele para o “menos importante” ‒, mas trazer também o contexto mais amplo da questão, problematizando-a e expondo as contradições do modo de produção capitalista ‒ e fala, então, de uma reinversão da pirâmide invertida, que caminha do lead para uma contextualização, expondo os nexos históricos do fato. 

Eis aí o trabalho do jornalista - e é por ele que a visão de mundo entra em tensão com a realidade e é por esta modificada. Aqui, diz Genro Filho, o que importa é a realidade, não a visão de mundo, ainda que aquela seja enfrentada a partir desta. Ignorar, portanto, a realidade, escamoteando-a em uma pretensa neutralidade apenas faz a visão de mundo se sobrepor à realidade que deveria ser descoberta.


Ter uma posição não é um problema


Os jornais se dizem isentos, imparciais e objetivos a fim de garantir credibilidade. Apoiam-se em uma mentira para garantir audiência, leitores, cliques. Daí, quando fogem a essa falsa neutralidade imposta pela ideologia burguesa e se posicionam contra ela, ainda que de forma bastante tímida, são chamados de “comunistas” ou “esquerdistas”, por exemplo.


É preciso reconhecer que essa falsa ideia de neutralidade realmente já não cola mais. E, como estamos (?) em uma democracia, não é um problema ser “esquerdista”, ter uma posição ‒ desde que ela não seja racista, homofóbica, fascista ou preconceituosa. É preciso, no entanto, deixar claro aos leitores qual posição é essa. Ao mesmo tempo, é necessário que haja um processo de educação para a mídia dos leitores para que possam identificar os diferentes vieses que orientam cada veículo de jornalismo.


Esses posicionamentos, que vão interferir na seleção e na produção das notícias, podem ser encontrados nos “Princípios Editoriais” ou no “Quem Somos”, seções geralmente escondidas nos portais de notícias ‒ quando existem (em poucos casos, infelizmente). O Globo, por exemplo, assume em seus princípios editoriais que é um defensor da livre iniciativa ‒ tendo, portanto, um posicionamento mais à direita no espectro político.


Assim, não se trata simplesmente de ler qualquer notícia em qualquer site e achar que está bem informado, especialmente em um país como o Brasil, no qual os maiores meios de comunicação são propriedades de algumas poucas famílias que apenas usam esses veículos para defender os seus próprios interesses. 


É preciso saber, portanto, qual base ideológica orienta a produção desse material para que se faça uma leitura crítica. Afinal, como disse Paulo Freire, “Não existe imparcialidade. Todos são orientados por uma base ideológica. A questão é: sua base ideológica é inclusiva ou excludente?”.
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