A “doutrina do amar” é só mais uma das facetas do jogo de poder divinopolitano.
Por Maria Clara Ribeiro e Talita Brandão
No domingo, 20 de junho, a população de Divinópolis e região acompanhou a viralização de um vídeo. A polêmica foi iniciada após divulgação no perfil do sargento Elton com o título “Atenção pais!” e alarmando sobre o que supostamente estaria sendo ensinado às crianças e adolescentes nas escolas. O ex-vereador faz uso da palavra escárnio para definir a situação – então, aqui devolvemos este termo para o vídeo.
Com discurso que exalava intolerância a cada som proferido, o padre Chrystian Shankar parte de falácias, como suposto “amor entre gerações”. Comecemos do mais simples, todavia: até este momento, o pároco não sustentou o que disse em um mínimo indício de dados concretos. Não é a primeira vez que a subcelebridade divinopolitana se envolve em polêmica sobre temas que vamos nos deter aqui como “doutrina do ‘amar’”: uma atitude insensível da igreja que visa se afirmar na politicagem municipal.
Insensível ao passo que deveria vestir a batina da instituição que prega os ensinamentos de Jesus e acolher seu povo; participar da politicagem ao passo que se insere, sem disfarce e sutileza, nas decisões governamentais da região – com destaque a figurões e grupos políticos que, de praxe, se envolveram na trama. Este texto não visa a generalização, ao contrário: a combate. Por isso, personagens que devem ser nomeados o serão, sem medo.
Sem papas, sem escrúpulos
“Vocês sabem que para certos sexólogos não existe pedofilia? Ou não sabia? Há países que querem aprovar uma lei que não existe mais pedofilia, é amor entre gerações, não é crime isso. Se um homem de 40 tem atração por um menino de 10, e o menino consente e os dois dormem juntos, que mal existe? É amor entre gerações! E tem gente que vai debater que isso tá certo. Olha onde chegou a cegueira do ser humano, estragando a obra de Deus que é a família e o casamento. Eles querem estragar só isso: a família e o casamento”.
Esta fala foi proferida pelo padre no vídeo em questão. Então, temos algumas perguntas ao sacerdote: segundo quais sexólogos? Quais países? Onde surgiu este termo “amor entre gerações”? Quem vai debater que está certo? São estas (supostas) pessoas que estão estragando a família e o casamento - ou são pessoas infelizes que adentram na individualidade dos demais?
Após pesquisa simples em sites qualificados (Aos Fatos; e-Farsas), constata-se que não há projeto de lei para legalizar a pedofilia, porém circulou conteúdo distorcido sobre a PLS 236/2012, um projeto ainda em tramitação que propõe a diminuição de 14 para 12 anos a idade para que qualquer relação sexual seja considerada estupro. Vale ressaltar que esta imagem circulou com mais força durante as últimas eleições, atribuindo autoria ao ex-candidato à Presidência pelo PT, Fernando Haddad.
Sim, é uma proposta polêmica e, por isso, seguiu em discussão por mais de cinco anos até ser suspensa em 2017. Apesar de ter sido redigida com aval do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Instituto Plínio Corrêa de Oliveira (IPCO) realizou um abaixo-assinado para que a proposta fosse rejeitada no Senado. Assim, atualmente, a lei vigente no Código Penal Brasileiro define que adolescentes de 14 a 18 anos podem ter relações sexuais quando consentido (217-A).
Além desta falsa circulação, houve propagação de notícias falsas associando pedófilos à comunidade LGBTQIA+. Este fato ganhou força nos EUA e provocou movimentação nas redes sociais, pois os textos afirmam que os abusadores se autodenominam MAP (Minor-Attracked Person, em tradução: pessoa atraída por menores) para serem aceitos. Entretanto, este termo foi criado por unidades de tratamento estadunidenses para classificar os pacientes de forma mais amena e evitar ataques àqueles pacientes em recuperação. Essa associação é equivocada e preconceituosa, usada sem constrangimentos na campanha eleitoral de 2018.
Na ausência de respostas, devemos perguntar: Está faltando assunto para as homilias? Faltam palavras para o que realmente envergonha a criação divina e coloca milhões de suas criaturas em uma posição tão humilhante, tão desesperadora? Haja vista que, para além do pároco, muitos se interessam sobre o posicionamento sacro, registramos aqui uma dica: quebrem o silêncio sobre abuso de menores na Igreja ou, em outras palavras, os incontáveis casos de pedofilia que assombram a instituição. Aliás, a Igreja Católica da América Latina é a protagonista da chamada “terceira onda” de casos de abuso – primeira nos Estados Unidos e segunda na Europa (cerca de 10 mil casos apenas na França, segundo comissão investigadora).
A ONG responsável pelo relatório é a britânica Child Rights International Network (CRIN) e engloba 18 países de origem hispânica e o Brasil - cujos documentos internos ainda não foram investigados. Ressaltamos, então, um relatório do próprio Vaticano, de 2005, que estimou que um em cada dez padres brasileiros estaria ligado a casos de abuso, convertendo para números tem-se possíveis 1,7 mil sacerdotes envolvidos.
“Daqui a pouco vai cair um meteoro como era no tempo dos dinossauros”
Em todo seu discurso, o Pe. Chrystian Shankar demoniza os tempos atuais e expõe o tema como algo que surgiu há pouco tempo. Além de todas as falácias do vídeo e o discurso de ódio contra professores e psicólogos, se destaca durante a mensagem o quanto o Padre desconsiderou a própria bíblia na sua fala.
O líder religioso afirma que nunca ouviu falar de relacionamentos não monogâmicos. Quantos livros da bíblia o padre precisaria ter ignorado para considerar tão absurda e nova essa forma de amor?
Com certeza Reis não fez parte de sua leitura, para ele desconhecer Salomão e suas setecentas esposas e trezentas concubinas, até mesmo Gênese fica de fora dos seus estudos, como pensar na Constituição de Israel eliminando os relacionamentos de Isaque?
A não-monogamia esteve presente em toda história do cristianismo, ela não é novidade, porém nos textos bíblicos estes relacionamentos são firmados na submissão feminina e no patriarcado. Já o conceito atual de poliamor é baseado em uma relação amorosa que envolve mais de duas pessoas com o consenso de todas, o respeito e a igualdade.
Neste ponto é impossível não associar a demonização do poliamor à reprovação da liberdade de escolha conquistada pelas mulheres nas últimas décadas. No discurso fica claro o ódio de Pe. Chrystian Shankar pela suposta psicóloga e pela colega de classe enquanto o menino é tratado como uma vítima a ser corrompida.
Sem provas?
Na última quinta-feira (24), o padre se dirigiu à delegacia para prestar queixa contra o professor Juvenal Bernardes, que declarou sua opinião sobre as declarações do pároco. Entretanto, apesar de inúmeros pronunciados pelo professorado divinopolitano, se estendendo desde escolas fundamental-médio a universidades - públicas e particulares -, este foi o único processo aberto.
Mas o fato que se destaca é a falta de provas. Até o momento, o padre não foi capaz de citar o nome dos supostos envolvidos neste caso citado pelo mesmo, o que é extremamente intrigante: se é algo tão horrendo e perturbador, porque vossa eminência não faz discurso completo e aponta os responsáveis de tal atrocidade? Não dispomos ainda do nome do colégio, da professora e o material didático (que fez questão de sacudir com todos os ânimos).
SINTRAM em defesa do professorado
Como em Divinópolis tudo cai ao deleite de alguns vereadores e sua missão salvadora, o irmão do deputado Cleitinho e do prefeito Gleidson, Eduardo Azevedo, atacou com ânimos aflorados os professores da cidade através das suas redes sociais. Com direito a colocações como “aberração”, “canalhas”, “não iremos aceitar calados” e todo o show bem conhecido, o Sindicato Trabalhista Municipal de Divinópolis e Região Centro-oeste (SINTRAM) precisou intervir na situação.
Em nota oficial, o órgão prestou apoio e defesa aos professores e afirmou que a generalização é uma atitude de desrespeito. As falsas acusações e ataques são uma forma de colocar a população contra a classe de trabalhadores – que, em destaque, exercem papel fundamental na sociedade. A educação de crianças e adolescentes, panorama em questão, é um exercício árduo e necessita uma troca valorosa em sala de aula.
É banal que em meio a uma pandemia, que já acumula mais de 500 mil mortes e quase dois anos sem ensino presencial, órgãos de competência educacional precisem dar o ar da graça para se defender de acusações destemperadas e descabidas. Se as celebridades políticas da região estão com extrema preocupação com o que se passa nas escolas, por que não são vistas medidas de incentivo às instituições em questão?
Em defesa da livre educação
Em nota a Diocese de Divinópolis aborda sobre o “direito institucional, constitucional e democrático de trazer a público e anunciar a verdade acerca desta matéria na ótica da fé cristã”. Nela a assessoria de comunicação da Diocese ainda afirma que a fé se propõe, não se impõe.
Porém as falas do Pe. Chrystian Shankar não foram baseadas no anúncio da fé cristã e sim no ataque aos profissionais da educação e em acusações falsas. Juvenal Bernardes, professor divinopolitano há 30 anos, declara em vídeo: “Quando este Padre fala que em uma escola os pais estão preocupados por que os professores estão (deturpando a cabeça das crianças) ele atinge a todas. Isso é um desrespeito aos professores.”.
Um ponto tocado por professores de Divinópolis sobre o caso que não pode ignorado é do papel da escola na educação crítica dos alunos. De acordo com educador Richardson Pontone, outro a se manifestar publicamente, “O que a gente (professores) faz em sala de aula, além da informação, da formação e da verdade, é compartilhar uma série de conceitos.”
Sobre o tema, Juvenal Bernardes completa: “Nas escolas os professores estão trabalhando sério para educar essas crianças e esses jovens, para torná-los críticos. Estão ensinando a esses jovens e essas crianças que tem que ter respeito pelas pessoas.”
Para o professor José Heleno, que também se manifestou, o discurso de Shankar não é um fato isolado. “Trata-se de um projeto muito bem articulado pelos setores mais conservadores, pelos setores da direita política em Divinópolis e em todo país para combater uma educação emancipadora.”
Mas onde estão as escolas para defenderem sua própria liberdade? Além de muitos profissionais da educação terem assumido posição de afirmar seu papel em sala de aula, algumas instituições de ensino também o fizeram. Entretanto, a maioria apenas se defendeu das “acusações”, afirmando não ser a escola em questão, mas sem buscar sua liberdade de tratar os assuntos cotidianos trazidos pelos jovens.
Os colégios, além de meras organizações didáticas, são centro relevante do desenvolvimento de indivíduos – e como o nome sugere, cada um com suas individualidades. Mais do que se livrar do ataque de pais, de políticos ou religiosos da cidade, em um movimento retrógrado articulado, as escolas bem poderiam acolher as muitas e cada vez mais complexas demandas - emocionais, éticas, sociais - de seus alunos em um mundo que parece enfeitiçado por algum algum espírito torpe.
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