Passado sangrento, presente brilhante: o aniquilamento indígena canadense era tido apenas como cultural, mas agora põe a “nação exemplo” à beira do abismo de suas próprias facetas genocidas. Seria esta uma política de institucionalização da morte?
Por Maria Clara Ribeiro
É a terceira vez, desde maio, que túmulos de crianças indígenas são descobertos no Canadá. As últimas sepulturas foram encontradas no terreno de uma antiga escola, desta vez com os restos mortais de 182 pessoas, mas líderes indígenas consideram que mais sepulturas serão encontradas com o avanço das investigações, pois em apenas cinco semanas de busca os vestígios já apontam mais de 1.100 crianças. Essas descobertas lançaram luz sobre a política do silêncio praticada por décadas pelo governo canadense, em colaboração com a Igreja Católica, que culminou na morte de incontáveis crianças por décadas – talvez em tentativa de acentuar o escândalo.
Os achados desencadearam uma onda de reações para que o governo e a instituição Católica forneçam toda a ajuda possível para encontrar, identificar e homenagear os menores. Diversas pessoas exigem que o Papa se desculpe pelo ocorrido em nome da Santa Sé, além de pagar indenizações e abertura de arquivos (para apoiar pesquisas e buscas). O governo canadense se desculpou oficialmente, mas a Igreja Católica ainda não emitiu um pedido formal de desculpas.
“Já disse antes e direi novamente: este é o começo destas descobertas. Peço a todos os canadenses que se unam às Primeiras Nações para exigir justiça” - Perry Bellegard, chefe da Assembleia de Primeiras Nações do Canadá, no Twitter.
"Nos obrigaram a refletir sobre as injustiças históricas e contínuas que os povos indígenas enfrentam" - Justin Trudeau, primeiro-ministro do Canadá.
O achado mais recente ocorreu na véspera do Dia do Canadá, o feriado de fundação do país, quando as três colônias britânicas se uniram, em 1867. A celebração nacional não foi suspensa, mesmo com inúmeros protestos, mas em alguns municípios houve desde o cancelamento de eventos à revolta popular incluindo episódios de estátuas vandalizadas e removidas.
Muitas comunidades indígenas do Canadá nunca reconheceram a data, atitude que se expandiu a outros grupos à medida que mais túmulos foram encontrados. Da mesma forma, memoriais improvisados foram criados em todo o país por índios, atingindo proporções notáveis. Pode-se dizer que se instaura um processo de reexame da consciência nacional sobre o legado nacional, tido como exemplo em escala mundial às demais nações.
A última busca foi feita pela própria comunidade “ʔaq'am”, uma das quatro tribos da Nação Ktunaxa, através de aparelhos eletromagnéticos aos arredores de St. Eugene. A comunidade disse que é cedo para dizer se os restos mortais pertencem a ex-alunos, mas alguns restos mortais foram encontrados em covas rasas, costume incomum - os cemitérios costumavam ser marcados com cruzes de madeira e seguiam os tradicionais rituais católicos de exumação.
"Mas isso não é surpreendente. Os sobreviventes vêm dizendo isso há anos e anos, mas ninguém acreditava neles." – Chefe da Assembleia das Primeiras Nações, Perry Bellegarde.
O Centro Nacional para Verdade e Reconciliação, criado por meio de um acordo entre o governo e as nações indígenas, descobriu que um grande número de crianças nunca voltou para suas comunidades, mesmo com relatos de fuga. O relatório da comissão, publicado em 2015, disse que a prática equivale a um genocídio cultural. O documento de 4 mil páginas detalhou falhas abrangentes no cuidado e segurança das crianças, além da cumplicidade entre igreja e governo.
O que foi a St. Eugene?
A St. Eugene foi uma Escola Missionária, como era denominada, operada pela Igreja entre 1912 até o início dos anos 1970 - responsável por 70% das instituições oficiais. Porém, este foi apenas um dos mais de 125 internatos financiados pelo governo canadense e administrados pelas autoridades religiosas locais durante os séculos 19 e 20. Tem-se que seu objetivo era moldar os jovens indígenas para serem “cidadãos civilizados” que condissessem à “estatura da nação”.
Entre 1863 e 1998, mais de 150 mil crianças indígenas foram tiradas de suas famílias e colocadas nessas escolas e, segundo registros, não tinham permissão para falar sua língua ou praticar os rituais de sua cultura. Quando a matrícula nestas instituições se tornou obrigatória na década de 1920, os pais enfrentavam até ameaça de prisão se não cumprissem a ordem, tendo que entregar os pequenos à força.
Estima-se que 6 mil crianças morreram enquanto frequentavam essas escolas e, até o momento das investigações, mais de 4,1 mil crianças foram identificadas. As mortes eram tidas como consequência das péssimas condições de infraestrutura: alojados em instalações mal construídas, mal aquecidas e pouco higiênicas. Em 1945, a taxa de mortalidade de crianças nos internatos era quase cinco vezes maior do que a média de crianças brancas canadenses. Na década de 1960, o número dobrou, ou seja, a taxa chegou a ser dez vezes maior. Abusos físicos e sexuais cometidos pelos regentes escolares também foram impulsionadores que levaram muitos a fugir.
"Eles nos fizeram acreditar que não tínhamos alma. [...] Eles estavam nos rebaixando como pessoas, então, aprendemos a não gostar de quem éramos." - ex-estudante.
Descobertas anteriores
Essa é a terceira vez que túmulos não marcados são encontrados nestes locais desde maio. Em 27 de maio, Rosanne Casimir, chefa da reserva “Tk’emlups te Secwépmc”, anunciou a descoberta dos restos de 215 menores indígenas no terreno do antigo internato de Kamloops, na província da Colúmbia Britânica. Menos de um mês depois, 24 de junho, o chefe da reserva “Cowessess”, Cadmus Delorme, informou a descoberta de 751 tumbas não identificadas em terrenos do antigo internato Marieval Indian Residential School, em Saskatchewan.
Dos restos mortais encontrados, acredita-se que 50 crianças já tenham sido identificadas, disse Stephanie Scott, diretora executiva do Centro Nacional para Verdade e Reconciliação, comissão lançada em 2008 para documentar os impactos desse sistema. Acredita-se que as mais jovens tinham cerca de três anos e que, dentre as poucas mortes registradas, datam de 1900 a 1971 – ocorrido ainda muito recente.
Institucionalização do genocídio?
É preciso construir suspeitas sobre este silêncio ensurdecedor que encaixa o Canadá nos moldes de uma faceta política genocida: acobertar a mortandade de seu povo, em detrimento dos que chegavam em navios. Estaria realmente acabado esta possibilidade ou seria apenas mais uma omissão do sistema?
Este questionamento se dá tanto sobre a igreja, que continha os arquivos seculares sobre os altos números de morte e desaparecimento das crianças sob sua responsabilidade (visto que ainda não há evidências sobre mortes propositais), quanto ao governo canadense que omitiu sua história sangrenta através do seu presente quase invejável.
Não é preciso ir muito longe para citar narrativa semelhante: nos Estados Unidos também houve o extermínio da população indígena originária. Entretanto, é de conhecimento geral, não só dos seus cidadãos, que houve este episódio na história do país. Pode-se citar neste ponto uma frase de Edmund Burke, a qual “um povo que não conhece sua História, está fadado a repeti-la”, mas ainda mais que isso, está fadado à plena ignorância e falso porte de juiz alheio.
Isto é, esta é uma política de algo mais profundo, um possível genocídio institucionalizado. Estamos libertos dessa realidade?
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