A aprovação da Reforma da Previdência, em outubro de 2019, juntamente com a Reforma Trabalhista de 2017 tem destaque no amplo pacote de maldades que vem sendo implementado no Brasil nos últimos anos. O desmantelamento do Estado de Bem-Estar Social ataca mais uma vez a Seguridade Social ao desmontar agora nossa previdência e fragmentar nossas relações de trabalho, nos condenando a uma precarização sem precedentes.
A imposição de critérios mais rígidos para o acesso à Previdência Social e a redução do valor dos benefícios previdenciários e do Benefício de Prestação Continuada (BPC) da Assistência Social tiveram um impacto negativo na aposentadoria de trabalhadores e na vida dos brasileiros. As alterações propostas dificultaram o acesso à Previdência Social, principalmente para trabalhadores rurais, uma vez que agora o tempo mínimo de contribuição é 20 anos e sabemos como na área rural a jornada de trabalho é mais extensa, e o trabalho penoso e degradante faz com que os trabalhadores envelheçam precocemente.
A reforma impactou diretamente na cobertura da população mais vulnerável pelo sistema de Seguridade Social. Entre 2015 e 2016 foi registrado um aumento dos índices de pobreza na América Latina: tivemos 18 milhões de pessoas a mais na pobreza, se comparado aos dados de 2014. Destas, 13 milhões vivem em situação de extrema pobreza.
A Associação Internacional de Seguridade Social, entidade que congrega países e organismos públicos responsáveis pela proteção social, publicou em novembro de 2016 um relatório destacando os desafios da seguridade social no mundo atualmente, e entre eles estão: o enfrentamento das desigualdades dentro e entre países, os novos riscos sociais que devem ser cobertos e a necessidade de proteção a jovens com dificuldade de ingresso no mercado de trabalho. Tais desafios apontam, na verdade, para a necessidade de inclusão de mais pessoas em programas de seguridade e não a exclusão das que já fazem parte.
De tempos em tempos, reformas previdenciárias e trabalhistas são necessárias, é claro, não ignoro isso aqui. Afinal, o envelhecimento da população, as transformações no mercado de trabalho, a transição tecnológica, a economia digital, os processos migratórios entre outros fatores, com o tempo, tornam as regras estabelecidas obsoletas. Mas é preciso considerar as entrelinhas das reformas instauradas no Brasil com um pouco mais de atenção.
Olhando para além do discurso oficial do déficit da previdência
Quando a Reforma da Previdência ainda estava em processo de aprovação, o ex-presidente Michel Temer afirmou que o importante, simbolicamente, seria aprovar uma reforma; “Se é preciso fazer uma ou outra negociação, nós temos que realizar para aprová-la”. A reforma era apresentada como indispensável para resolver o problema fiscal do país e garantir a sustentabilidade do sistema previdenciário “para as presentes e futuras gerações”. E de fato, uma reforma era necessária, mas ela não tinha o poder de operar milagres nas contas públicas como o anunciado. Até porque esse também nunca foi o real objetivo. O governo não queria garantir o futuro da previdência social, ele queria restaurar a confiança do "mercado” - leia-se: especuladores das bolsas de valores. Isso foi mencionado algumas vezes em falas oficiais e na própria proposta original entregue ao Congresso.
O problema é que junto com a reforma, aprovamos também uma intensificação da propaganda contrária ao sistema de proteção social estabelecido pela Constituição de 1988. O processo de desidratação da Previdência gerou o esvaziamento da seguridade e o fortalecimento da previdência privada. E é preciso refletir que fosse ela aprovada (como foi) ou não, logo a retórica do rombo, do ralo, da inviabilidade do sistema atual etc, retornará à cena. Pois não se tratava de uma reforma para garantir a sustentação das aposentadorias para as gerações futuras, ou para liquidar privilégios, e sequer para equilibrar as contas públicas e reativar a economia. Não se trata de reformar a Previdência, mas sim de revogar sua condição de sistema universal de direitos, transformando-a em um sistema pobre para os pobres.
O projeto partiu de argumentos absolutamente enganosos para justificar-se. Diziam que as pessoas haviam atingido condições de plena igualdade, mas na prática a sociedade e o mercado de trabalho brasileiro ainda são marcados por profundas desigualdades, sejam elas de gênero, de raça ou regionais. O sistema de seguridade brasileiro vinha permitindo, mesmo com limitações, que essas desigualdades fossem enfrentadas através de um sistema que trata os desiguais na exata medida de suas desigualdades, com deve ser. Mas, a cada “reforma” isso vem se tornando mais insustentável.
De acordo com nossa Constituição brasileira, a Seguridade Social, firmada no tripé da Saúde, Previdência e Assistência Social, deve ser financiada pelo Orçamento da Seguridade Social (artigos 194 e 195). Tal orçamento é formado por um conjunto de fontes próprias e exclusivas, tais como: as contribuições sociais pagas pelas empresas sobre a folha de salários, faturamento e lucro; e as contribuições pagas pelos trabalhadores sobre seus rendimentos do trabalho. Além da contribuição do governo, por meio de impostos gerais pagos por toda a sociedade, destacando-se aqui as contribuições sobre o faturamento (Cofins) e sobre o lucro líquido (CSLL). Assim, à luz da Constituição, não podemos falar em déficit na Previdência Social, pois na verdade sobram recursos, que acabam sendo utilizados em finalidades não previstas na lei.
O projeto de desmonte da previdência social é ainda mais perverso ao desprezar os diferenciais de gênero, raça e desigualdades regionais e quando se trata das trabalhadoras urbanas, rurais, professoras, negras e idosas. Pois os seguros sociais instituídos para cobrir riscos associados à perda definitiva ou temporária da capacidade de trabalho (idade, invalidez, doença, maternidade) foram reduzidos a quase nada, com impacto quase imediato naqueles estratos sociais. É chocante ver como todas as mudanças previdenciárias levadas à frente em outros países são para aperfeiçoar o sistema, e não para destruí-lo como aqui, capturando os recursos para outras finalidades.
Além disso, a Reforma da Previdência criou um novo mecanismo que autoriza os futuros governos a alterarem o sistema da previdência sem precisarem alterar a Constituição Federal. Ao promover o desmonte da previdência e acabar com o conceito de seguridade social previstos na Constituição de 88, o governo compromete significativamente o presente e o futuro de gerações e gerações de brasileiros.
A “reforma” que gera informalidade:
A Reforma Trabalhista (LEI Nº 13.467/2017), aprovada em 2017, instituiu a informalidade como regra e dificultou que trabalhadores seguissem contribuindo com o sistema previdenciário ao desmontar a estrutura de direitos do trabalhador que vigorou no país por 74 anos.
A Reforma Trabalhista foi apresentada sob a falaciosa premissa de que ela modernizaria as relações de trabalho, mas o que tivemos foi a desvinculação do trabalhador do seu local de trabalho (trabalho intermitente). Com a ampliação da jornada de trabalho aumentaram-se também o esforço físico empregado nas atividades, o que leva de certo modo a um aumento das taxas de acidentes.
A subordinação dos direitos trabalhistas aos pressupostos do direito civil funcionou, na prática, como mecanismo de bloqueio ao acesso à justiça trabalhista. A Reforma estabeleceu que o trabalhador que ingresse com ações na Justiça do Trabalho arque com as custas processuais caso perca a causa. Após um ano de vigência da nova legislação, por exemplo, o número de novos processos caiu 46%, uma queda diretamente relacionada ao medo da derrota judicial, fato que inibe acesso à Justiça mesmo quando as ações são absolutamente cabíveis. O que temos é uma situação de profunda desigualdade nas relações de trabalho que acaba por produzir uma desigualdade no tratamento judicial. Não há como falar de uma ampliação dos direitos. A Reforma Trabalhista não modernizou as relações de trabalho - ela cortou direitos.
A proposta alterou as regras da jornada, fazendo com que à conquista das 8 horas diárias e 44 semanais, incorporada pela Constituição de 1988, saltasse para o limite de 12 horas diárias e 220 horas mensais. Uma afronta direta que ampliou de forma alarmante os riscos a que ficam submetidos os trabalhadores, em um país cujos índices de acidentes já são altíssimos. A intensificação da jornada e o aumento das incertezas quanto à manutenção do emprego repercutiram nas condições de vida e de subsistência das famílias, expandindo também os problemas de saúde como depressão.
Um dos argumentos apresentados na época, e que é sustentado até hoje por Jair Bolsonaro e seus apoiadores, era de que o desemprego era consequência do excesso de burocracia em torno do trabalho formal e de direitos dos trabalhadores - que ampliavam os custos. Para essas pessoas, retirar os direitos significaria diminuir custos de contratação e com isso ampliar o número de empregos formais. Esqueceram-se, todavia, de que o desemprego está intimamente ligado com a contração da economia diante da crise econômica que nos atinge há anos e também ao processo de concentração de capital nos circuitos especulativos, em detrimentos dos circuitos da produção. É falacioso e simplista demais dizer que o desemprego está relacionado ao excesso de direitos.
A reforma trabalhista de Temer prometeu gerar 6 milhões de empregos no país, mas se olharmos para os números de dois anos depois da aprovação da proposta, por exemplo, o que temos é um desemprego atingindo cerca 12,5 milhões de pessoas em 2019. E segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do terceiro trimestre daquele ano, entre as pessoas ocupadas: 44% estão na informalidade; 26% são trabalhadores e trabalhadoras por conta própria.
Reformas e ações que precarizam
Além da Reforma da Previdência e a Reforma Trabalhista do Governo Temer, tivemos em 2019 novas alterações, principalmente nas Leis Trabalhistas brasileiras. A Lei da Liberdade Econômica ( 13.874/2019), sancionada por Bolsonaro com o pretexto de dar influências positivas para o mercado de trabalho brasileiro e a MP 905/2019, o famoso Contrato Verde e Amarelo, foram quase uma “minirreforma trabalhista” que, assim como a de 2017, é marcada por fortes ataques aos nossos direitos trabalhistas.
A MP tentou a todo custo melhorar as condições das empresas, mesmo que o preço a se pagar tenha sido a precarização das condições do trabalhador. Fazendo as contas, ao empresariado coube aproximadamente uma economia de 70% dos encargos, de 39,5% para 12,1% sobre a folha. Na prática a MP 905 formalizou o trabalho informal, transformando a força de trabalho brasileira num exército de trabalhadores informais. Mas, por apresentar muitos pontos controversos e grande desaprovação da oposição, a medida teve validade apenas até 20 de abril de 2020, sendo revogada após perder sua validade como Medida Provisória.
Mesmo com seu curto prazo de validade, é preciso questionar o quanto MP’s como esta nos empurram direto para Economia do Compartilhamento. Tal modelo econômico surge com promessas bastante entusiásticas de ajudar indivíduos vulneráveis a tomar controle de suas vidas tornando-os microempresários e assim os dando a chance de se auto gerenciar neste novo modelo flexível de trabalho, ajudando a montar o “nosso negócio na internet”. Promessas que a Economia do Compartilhamento nem se esforçou para tentar cumprir, uma vez que cada dia mais vem se mostrando um livre mercado inóspito e desregulado.
A economia do compartilhamento por meio de empresas como Uber, IFood, 99 etc., que se apresentam apenas como “mediadoras” da relação entre cliente e prestador de serviço- mas desempenham um papel cada vez mais invasivo nas trocas que intermedeiam-, tem criado novas formas de fiscalização para as vidas de seus trabalhadores.
A ideia de “uma graninha extra” pela qual essas empresas se apresentam se tornou ainda mais “tentadora” em um país como o Brasil, com milhões de desempregados e um governo que parece querer “formalizar a informalidade”. O problema é que essa informalidade não contribuirá em nada para nosso desenvolvimento, apenas nos condenará ainda mais a desigualdade e pobreza. Me pergunto até que ponto as ações “reformistas” do governo e o crescimento destas empresas da economia do compartilhamento são apenas coincidências. Bom, de qualquer forma, é de coincidência em coincidência que a uberização do trabalho ganha força. Tudo parece estar saindo como o planejado.