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terça-feira, 22 de junho de 2021

Uma Seguridade Social Fragmentada: quem sofre com esse desmonte?


O Pluris continua, nesta semana, a série sobre o desmonte das políticas públicas brasileiras e seus impactos, especialmente nas populações que mais delas necessitam


Por Camila Machado

Nosso Estado de Bem-estar Social está se desintegrando gradativamente, o Brasil, em si, encontra-se em pedaços.  Mas a crise econômica e social que abalava as estruturas do país se intensificou muito mais com a pandemia – esta que segue ceifando mais vidas do que “deveria” graças à falta de rumo - ou a uma política de deliberado desmonte do Estado para privilegiar grupos econômicos - da atual gestão. As manchetes não nos deixam esquecer as mortes e nos alertam diariamente também para os que ficam, e tentam a qualquer custo sobreviver em meio ao desamparo provocado pelo desmonte de equipamentos e políticas públicas.  O vírus parece ter afetado todos os setores brasileiros, porém um continua a todo vapor: o desmonte de nossos direitos básicos, ou melhor, da garantia deles.


O Sistema Único de Assistência Social (Suas) brasileiro tem sido a principal mira deste desmonte dramaticamente violento que nos assola e coloca sob ameaça anos de um trabalho que tentou garantir os direitos estabelecidos na Constituição de 1988 às populações vulneráveis do país.  Os ataques vêm se dando, por exemplo, pelo fechamento dos Centros de Referência em Assistência Social (Cras) em todo país, na busca de se substituir o Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico) pelo auto cadastramento dos beneficiários via aplicativo para celular (o que excluiria milhares daqueles que precisam de assistência) e o esvaziamento do papel dos municípios no cadastramento de novos beneficiários de programas sociais (como o Bolsa Família), para centralizar esse processo na instância federal. São ações que muitas vezes não chamam a atenção, mas que têm um grande impacto.


Com uma canetada, por exemplo,  extinguiu-se o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) brasileiro, um órgão que tinha como objetivo assegurar o direito à alimentação adequada a toda a população. A extinção do Conselho, criado no governo de Itamar Franco (e reaberto no início do primeiro governo Lula), desorganizou em nível nacional a coordenação das políticas voltadas para o combate à fome.  E de canetada em canetada o Brasil se desintegra, ou pelo menos parte dele, e tudo sai como o planejado.


Uma pequena retrospectiva pelo desmonte

Em 1989, na nossa primeira eleição direta para presidente depois da redemocratização, Fernando Collor de Mello era eleito presidente do Brasil e começariam ali os primeiros momentos de um desmonte que depois foi claramente identificado com a política neoliberal. Com um Plano Nacional de Desestatização, que defendia o mito de que somente a economia aberta, com uma mínima intervenção do Estado no mercado e a privatização de estatais (lucrativas) poderiam ajudar o Brasil a alcançar um estágio de desenvolvimento ideal, Collor já nos introduzia no desmonte que temos hoje.


 No governo FHC, porém, aos poucos o mito do neoliberalismo racional foi se tornando insustentável. Bastaram três das constantes crises do capitalismo internacional para a nossa frágil economia ir para o limbo. Sem infraestrutura, o Brasil chegou a sofrer com casos de apagão e desabastecimento, a inflação estava saindo do controle e o desemprego batia recordes mundiais. Este foi o legado de oito anos de um governo que, embora tenha tido importantes iniciativas em políticas públicas, quase as anulou com a manutenção das injustiças neoliberais. Era assim, com ações que valorizavam o mercado financeiro e massacravam o trabalhador brasileiro, que o Brasil chegou em 2002, no fim do segundo mandato de FHC, para as eleições.


 Mas, aos poucos, o Brasil foi se reerguendo de sua crise financeira e social.  As políticas públicas implantadas nos primeiros anos do governo Lula tiveram um papel de destaque nesse processo.  Listamos algumas das que mais contribuíram para a recuperação econômica brasileira nos anos 2000:

  • Luz para Todos (2003)

  • Fome Zero (2003)

  • Bolsa Família (2004)

  • Bolsa Atleta (2005)

  • Prouni (2005)

  • PAC (2009)

  • Minha Casa, Minha Vida (2009)  

 

No combate à fome, por exemplo, o carro-chefe das políticas públicas tem sido o Bolsa Família, criado em 2003, uma política assistencialista de transferência de renda, no qual o governo oferece subsídio para famílias em condições de pobreza ou miséria acentuada. Aliado, é claro, ao programa Fome Zero que mobilizou diferentes setores da economia, desde previdência social até reforma agrária e geração de empregos, e conseguiu fazer com que em 2014 o Brasil saísse do mapa mundial da fome. Ainda que não tenha desmontado em sua totalidade a política neoliberal nem enfrentado os graves e históricos problemas estruturais, especialmente nas políticas tributárias, ao associar as políticas de bem-estar social e política econômica anticíclica - que retirou das mãos do “mercado” a decisão pelas vidas dos humanos que vivem no Brasil -, esse período é reconhecidamente um dos poucos em que se ensaiava alguma justiça social no país.

 

Um desmonte que resulta em pobreza e fome

A Seguridade Social brasileira é estruturada por um tripé que se divide em: Assistência Social, Saúde e Previdência. Juntos, atuam como um sistema único, descentralizado e participativo na luta por uma estrutura forte de Proteção Social no país. Mas vale ressaltar que a Assistência Social, enquanto política pública organizada, foi instituída apenas em 2005 e apesar de ter feito um incrível trabalho para organizar uma política de cuidados através de uma rede de proteção universalizante, vem sendo gradativamente desmontada pelo Estado.


 O Bolsa Família é um bom exemplo, pois vinha sobrevivendo aos ímpetos neoliberais do governo, mas foi atingido por um corte em sua capacidade de atendimento. O principal programa de transferência de renda que em 2012 atendia cerca de 15,9% dos domicílios brasileiros em estado de vulnerabilidade caiu para 13,7% em 2018, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). A verba prevista para 2020 foi de R$ 29,5 bilhões, número muito abaixo dos R$ 32 bilhões destinados ao programa em 2019 (que já foram insuficientes). 


Há de se considerar, é claro, que em 2020 tivemos o auxílio emergencial que atendeu cerca de 67,9 milhões de brasileiros e ajudou a diminuir a desigualdade de renda e a reduzir a pobreza no Brasil nesse momento anormal que vivemos.  Esse efeito, no entanto, foi temporário. O programa acabou passando por uma redução de valor e beneficiados este ano, e o governo já deixou claro inúmeras vezes sua ânsia pelo encerramento do auxílio. Com os programas de transferência de renda em desmonte e em meio a um desemprego que atinge mais de 14 milhões de pessoas, a fome ressurge.


O aumento da pobreza tem um efeito imediato sobre a capacidade das famílias de assegurar sua alimentação adequada e saudável, segundo o Relatório da Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas – Fian Brasil.   Não é difícil estabelecer um ciclo entre estas esferas: se você tem um índice de desemprego altíssimo aliado a fragilização da CLT (que faz com que as pessoas trabalhem com uma renda menor), isso gera um ambiente alimentar inseguro, pois quando as pessoas precisam cortar gastos, a alimentação é a primeira a sofrer uma redução.

 

Brasil de volta ao mapa da fome



Após avanços significativos nos últimos anos no combate à fome no país, um retrocesso preocupante foi evidenciado pelo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan). O estudo indicou que só no último semestre de 2020 cerca de 19 milhões de pessoas passaram fome e outros 116,8 milhões de pessoas conviveram com algum grau de insegurança alimentar.  


A falta de políticas públicas eficazes que pudessem amenizar os impactos da pandemia no país levou o Brasil não só de volta para o mapa da fome, como também acentuou ainda mais a segregação e miséria de povos que antes já se encontravam em situação de vulnerabilidade. O estudo deixou claro que os índices de fome são maiores na área rural do que na urbana. A insegurança alimentar grave alcançou 12% dos domicílios na área rural, contra 8,5% em área urbana e essa proporção dobra quando não há, nas áreas rurais, um fornecimento adequado de água para a produção de alimentos, evoluindo de 21,1% para 44,2%.


A pesquisa mostrou que a fome no Brasil tem rosto e cor. A insegurança alimentar é ainda mais intensa nas famílias onde a pessoa responsável é mulher, de cor preta ou parda e de baixa escolaridade. Entre o vírus, a violência e o desemprego, temos a fome, tão grave quanto todos os outros males que assolam este país. Se ao final de 2020 tínhamos 19 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar grave, agora no primeiro semestre estes números são bem maiores e é possível que as condições de vida dessas pessoas estejam ainda piores.


Um estudo divulgado no dia 13 de abril, coordenado por um grupo de pesquisadores da Universidade Livre de Berlim, na Alemanha, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais e a Universidade de Brasília, revelou que em 15% dos domicílios do país há privação de alimentos e fome. Intitulado “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil”, o levantamento constatou que o acesso a alimentos importantes para uma dieta regular também caiu: 44% das pessoas reduziram o consumo de carnes e 41% diminuíram o consumo de frutas.


 Estudos como estes mostram, em números, como as instabilidades socioeconômicas no Brasil foram acentuadas pela pandemia. O quadro que já se encontrava negativo quase duplicou de tamanho. Em 2018, os dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) já evidenciavam o retrocesso do Brasil no combate à fome - na época, cerca de 10 milhões de brasileiros enfrentavam algum grau de insegurança alimentar e em apenas dois anos esse número saltou para 19 milhões.


Se ainda temos alguma esperança de chamar o Brasil de nação, em que, por princípio, pessoas que aqui vivem mantêm entre si algum laço de solidariedade, é preciso conter essa escalada de crescimento da desintegração da dignidade o quanto antes. As desigualdades alimentares, especialmente o acesso a alimentos saudáveis de forma regular e em quantidade e qualidade suficientes, não podem ser naturalizadas e encaradas como uma simples fatalidade. Pessoas não morrem de fome ao acaso: elas são condenadas à fome pelo desamparo e descaso público de governos que fingem não ver a vulnerabilidade brasileira nessa recessão sem fim.  São condenadas à fome por governos que cortam benefícios, reduzem “auxílios” a valores estupidamente insuficientes e as abandonam à própria sorte, forçando-as a enfrentarem sozinhas a desigualdade, a pobreza e, assim, a morte.

 


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