Com a aproximação dos 20 anos da “Guerra ao Terror”, os EUA parecem cumprir a promessa de apartar suas tropas do país. Entretanto, o preço foi alto - não de dólares, vidas.
A promessa
Neste ano, as forças estadunidenses estão deixando o Afeganistão. Neste mês, o presidente dos EUA, Joe Biden, anunciou que os cerca de 3 mil soldados restantes devem partir até o prazo de 11 de setembro. A data marca os vinte anos do ataque terrorista às Torres Gêmeas: liderados pela Al-Qaeda afegã, os ataques foram seguidos por uma longa campanha de guerra no Oriente Médio - retirando o Talibã do poder e expulsando o grupo da região.
Vale ressaltar que essa decisão, que partiu do próprio presidente, rejeita a pressão do Pentágono e dos conselheiros da cúpula militar norte-americana. Estes afirmam que a retirada das forças de segurança do solo afegão pode resultar no ressurgimento das ações terroristas, defendidas como tão combatidas nas últimas duas décadas.
Foto: Hypess
A retirada
O campo de aviação Kandahar foi fechado discretamente, sem publicidade ou destaque midiático. Este local era uma das maiores bases estadunidenses no país, mas não foi o único a ser evacuado. A próxima ação será voltada aos caças.
As tropas da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) também estão se retirando gradativamente e estima-se que seguirão os mesmos prazos dos EUA. Porém, as autoridades ainda precisam delinear as garantias de segurança do Aeroporto Internacional de Cabul, um detalhe que pode determinar se outras nações irão estabelecer presença diplomática no Afeganistão.
A Otan planeja continuar treinando as Forças de Operações Especiais Afegãs, uma das mais importantes do país, ao passo que os oficiais militares estadunidenses discutem a possibilidade de manter tropas em países vizinhos para garantir segurança contra possíveis ameaças. Fontes da agência de espionagem norte-americanas afirmam que estão “avaliando” líderes regionais que podem auxiliar sob ameaças terroristas após a retirada.
Por que as forças ocidentais invadiram o Afeganistão?
A Guerra do Afeganistão é um conflito complexo: a primeira campanha se deu em 1979, durante a Guerra Fria. A batalha foi travada entre a União Soviética e o governo afegão vigente contra as forças mujahidin - opositoras da influência estrangeira, com apoio e financiamento dos EUA.
Durante cinco anos, de 1996 a 2001, um grupo jihadista internacional chamado Al-Qaeda conseguiu se estabelecer no Afeganistão, liderado por Osama Bin Laden - aliado americano no combate aos soviéticos durante o século passado. A organização montou campos para treinamento de soldados extremistas e testes com produtos químicos, recrutando e treinando cerca de 20 mil voluntários – não apenas da região, mas de todo o globo.
O grupo começou a preocupar as lideranças quando assumiu os ataques às embaixadas dos EUA no Quênia e na Tanzânia em 1998, matando 224 civis africanos. A Al-Qaeda conseguiu operar no Afeganistão sob proteção do governo: o Talibã, que assumiu o controle do país em 1996, após saída do Exército Vermelho soviético, dando início à guerra civil.
Os Estados Unidos, por meio de seus aliados sauditas, tentaram persuadir o Talibã a expulsar a Al-Qaeda, mas eles se recusaram. Após os ataques de 11 de setembro, a comunidade internacional pediu à nação que entregasse os responsáveis, mas também foi negado.
No mês seguinte, a força anti-Talibã Aliança do Norte entrou em Cabul com apoio americano-britânico. A ação resultou na retirada dos mesmos do poder e na fuga da Al-Qaeda pela fronteira com o Paquistão. Assim, oficiais de segurança dizem que, desde então, não houve novos ataques terroristas internacionais bem-sucedidos – planejados no Afeganistão. Assim, avaliando apenas a iniciativa “contraterrorismo”, afirmam que cumpriram seu objetivo.
Foto: Reprodução
Presidentes e a “Guerra ao Terror”
A campanha militar teve início com George W. Bush, mas, o que era para ser uma ação de interferência rápida e destinada apenas à capital Cabul, levou mais de 775 mil soldados norte-americanos para todo o território afegão.
No governo seguinte, Obama sucedeu o ritmo e aumentou o número de combatentes ativos no Afeganistão entre 2009 e 2011, seguindo o planejamento tático de enfraquecer o Talibã e reconstruir as forças oficiais afegãs – caminho contrário ao seu discurso de eleição. Ainda em 2011, anunciou medidas para retirar as tropas nacionais, com expectativas de manter 5,5 mil soldados na região até 2016, mas 8,4 mil permaneceram.
Em 2017, Donald Trump também garantiu em sua candidatura o retorno dos militares. A guerra, descrita por ele como um “desperdício”, recebeu um conjunto adicional de 3 mil soldados estadunidenses ainda no primeiro ano de seu mandato, mas continuou afirmando que todos os combatentes rumariam para os Estados Unidos.
Dados e previsões
É simplista ignorar os enormes impactos que a ocupação causou e ainda causa aos afegãos, principalmente civis, já que se dão vinte anos de conflito e o país ainda não está em paz. De acordo com o grupo de pesquisa Action on Armed Violence (Ação Contra a Violência Armada), em 2020, mais pessoas foram mortas por artefatos explosivos no Afeganistão do que em qualquer outra nação do mundo.
Há ainda outra preocupação: a Al-Qaeda, o Estado Islâmico (EI) e outros grupos extremistas não desapareceram, eles estão ressurgindo encorajados pela partida iminente das forças ocidentais remanescentes. Por isso, com as negociações de paz em Doha e as seguidas “vitórias” militares, o Talibã deve desempenhar um papel decisivo no futuro do país.
No entanto, o general Nick Carter, chefe do Estado-Maior de Defesa da Grã-Bretanha, afirma que a comunidade internacional construiu uma sociedade civil que dificultou a legitimidade popular do Talibã. Já o pesquisador da fundação Asia Pacific, Sajjan Gohel, é mais pessimista e diz que, sim, há uma preocupação real de que o Afeganistão volte a ser um terreno fértil para o extremismo. Segundo especialistas, dois fatores são decisivos para definir os próximos episódios: se um Talibã triunfante vai permitir as atividades da Al-Qaeda e do EI ou do quanto a comunidade internacional estará preparada (e interessada) para enfrentá-los após retorno integral das forças estadunidenses.
A Guerra do Afeganistão já contabiliza 3.576 soldados mortos na coalizão, sendo 2.312 apenas estadunidenses. O número de civis afegãos mortos devido ao conflito ultrapassa os 35 mil, segundo a ONU. Segundo estudo publicado pelo Instituto Watson, da Universidade Brown (EUA), cerca de 150 mil pessoas morreram em consequência do conflito até 2018.
Portanto, o futuro da segurança afegã não é claro. Com ou sem os Estados Unidos, a nação está longe de ser pacífica e garantir tranquilidade à população. O longo período de conflitos na região resultou em graves índices humanitários e, embora esteja em ascendência desde 1990, o Índice de Desenvolvimento Humano do país é o 20º pior entre as 189 nações classificadas pela ONU (0,496). Para efeito de comparação, o Brasil apresenta um indicador de 0,761.
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