Por Camila Machado
Uma voluntária da ONG Rio de Paz posa na praia da Copacabana, no Rio de Janeiro, em um protesto contra a violência sexual em novembro de 2016.
A violência sexual no Brasil tem se mostrado cada vez mais um problema estrutural. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) estima que 120 milhões de mulheres tiveram um contato sexual indesejado antes dos 20 anos. As vítimas não seguem um padrão, mas os agressores sim. A violência sexual atinge principalmente os mais vulneráveis e tende a perdurar por anos, uma vez que estas pessoas geralmente são agredidas em suas próprias casas − por seus pais, padrastos, tios, vizinhos ou primos.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, dos 66.348 estupros registrados em 2019, mais da metade (70,5 %) das vítimas eram menores de 14 anos, o que representa o número estarrecedor de quatro meninas estupradas por hora. Verifica-se que em 84,1% dos casos o autor era conhecido da vítima, explicitando o grave contexto de violência intrafamiliar brasileiro. As agressões podem começar cedo e ainda que invasivas tendem a serem sutis. Não é rara também a cumplicidade da mãe e/ou de outros parentes, a responsabilização da vítima e o desamparo desta em situações onde o agressor é quem traz o dinheiro para casa.
Estes números apresentados pelo Anuário, no entanto, dão conta apenas dos crimes sexuais notificados às polícias. Não se sabe ao certo o tamanho da face invisível desses crimes, que são marcados por uma imensa subnotificação. A omissão deste tipo de violência na maioria das vezes é fruto do medo, do sentimento de culpa e vergonha com que convivem as vítimas e até mesmo do desestímulo por parte das autoridades (Scarpati, Guerra e Duarte, 2014). Segundo o Anuário, as estimativas existentes mostram que esse número pode ser até dez vezes maior, porém nos faltam estudos e pesquisas sobre o problema.
Ainda dentro desse tema da subnotificação, é preciso falar também da chamada violência institucional, pela qual a vítima pode ser exposta após decidir contar o seu caso. Principalmente na violência contra vulneráveis, é comum que, ao longo do processo de repetição de seu primeiro relato perante o Conselho Tutelar, a Polícia, o hospital etc. as vítimas acabem longe de seus parentes, seu bairro, sua escola e seus amigos. Então, sem apoio psicológico e/ou familiar, essas crianças, quando submetidas repetidamente a uma avalanche de perguntas, se contradizem ou omitem deliberadamente informações, porque o preço que pagariam por revelar o abuso seria alto demais. Geralmente o que temos é a palavra da criança contra a do adulto e entrega-se então o “coelho à raposa” - com aval judicial. Pois, como afirma a jornalista Ana Paula Araújo, em seu livro “Abuso: a cultura do estupro no Brasil”, o estupro é o único crime em que a vítima é quem sente culpa e vergonha.
Tendo tudo isso em mente, é preciso olhar com outros olhos para os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020. Pois, embora os dados sobre o primeiro semestre apresentem uma redução das agressões sexuais, se comparado ao ano anterior, isso nos faz questionar a influência da pandemia na subnotificação dos casos. Os dados apresentam uma redução de 22,8% dos casos totais de estupro (saindo de 33.561 para 25.922). Porém, nesse mesmo período as denúncias por violência doméstica foram 142.005 para 147.379 e se levarmos em consideração que mais de 80% dos estupros são praticados por membros da própria família da vítima, podemos estimar que realmente foi o número de denúncias que caiu de 2019 para 2020.
O cenário da pandemia parece impor desafios ainda maiores para o enfrentamento da violência sexual. Todos esses dados que fiz questão de apresentar aqui servem apenas para reafirmar a necessidade de uma efetiva priorização deste tema na construção de uma política pública forte e consistente, não limitada apenas aos setores da segurança pública, mas igualmente aos campos da saúde, educação e assistência. Não podemos mais fechar os olhos para o que parece ser a cumplicidade do Estado com estes crimes, porque assim estaríamos nós mesmos sendo também cúmplices dessa barbárie. É preciso ouvir e dar voz a essas mulheres clamando por justiça. Porque hoje, mais do que nunca, o que ecoa nos quatro cantos deste país é um rastro de injustiças e morte deixado pelas pessoas que sempre saem impunes, seja qual for o crime. Mais do que saber “de quem é esse sangue todo?” queremos saber quem o derramou.
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