Ana Laura Corrêa
O Brasil deixou o Mapa da Fome da ONU em 2014. Desde 2015, no entanto, o número de pessoas que passam fome no país vem crescendo. A situação, que exigiria políticas públicas para o enfrentamento, não tem respostas à altura ‒ Jair Bolsonaro extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), que seria responsável por promover o direito à alimentação no país.
Na mídia, que tem papel relevante na construção percebida pela sociedade, a temática da fome geralmente é tratada sob um viés assistencialista, em vez de trazer ao debate políticas públicas que seriam mais eficazes diante do problema que afeta milhões de pessoas no país. As matérias geralmente atribuem a solução do problema a ações individuais ou de ONGs, por meio de doações.
Esta é a conclusão de uma monografia de bacharelado em Jornalismo realizada na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) em Divinópolis. O estudo analisou matérias sobre a fome publicadas pelo portal de notícias O Globo entre 2017 ‒ quando entidades da sociedade civil já alertavam sobre o risco de o Brasil voltar ao Mapa da Fome e também quanto entrou em vigor a PEC do teto de gastos ‒ e abril de 2020.
Segundo a pesquisa, no período analisado foram publicadas 94 reportagens sobre o problema da fome. No entanto, 67 destas referiam-se à fome no mundo ou em outros países, principalmente da África e da América Latina, o que reforça o estereótipo desses lugares como locais de fome ‒ ao mesmo tempo em que não foram encontradas matérias sobre a fome nos Estados Unidos ou Europa o que, no entanto, não significa de forma alguma que não há fome nesses lugares.
Das 27 matérias sobre a fome no Brasil, grande parte é relacionada a campanhas ou eventos realizados por ONGs – por outro lado, não há, por exemplo, matérias que indiquem a implementação de políticas públicas de combate à fome, logo em um período de crescimento do problema. Predomina nos textos uma visão de combate à fome associada a valores morais como solidariedade e misericórdia.
As pessoas que passam fome geralmente aparecem nos textos apenas narrando o que têm para comer – geralmente sem questionar uma solução para a situação. Embora o problema atinja milhões de pessoas, as matérias atribuem as causas da fome a contextos individuais, como a perda de emprego ou problemas de saúde, encobrindo a verdadeira causa do problema: a desigualdade social.
Quem amplia a discussão sobre as causas e soluções da fome, nas matérias analisadas, são os especialistas da ONU, por exemplo – mas foram apenas sete em um universo de 77 pessoas entrevistadas. Além disso, as matérias, que, segundo preceitos tradicionais do jornalismo, deveriam ouvir “os dois lados”, geralmente não se preocupam em trazer o posicionamento do Estado diante dos relatos de pessoas que passam fome.
Essas pessoas ainda às vezes preferem se esconder, utilizando nomes fictícios ou não permitindo que sejam fotografadas, o que, ao lado do uso de termos como "insegurança alimentar", "desnutrição", "subnutrição" – sem que suas definições sejam detalhadas e em vez do uso do termo “fome”, tido como mais mobilizador –, e às vezes até mesmo com a ausência de dados sobre o número de pessoas que passam fome no país contribui ainda mais para a invisibilização do problema.
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