Maria Clara Ribeiro
Marroquinos e subsaarianos buscam uma saída para a crise, agravada pela pandemia. Cidade destino, Ceuta relembra Marcha Verde, episódio que marcou a Espanha na década de 1970.
Desde segunda-feira, 17, mais de oito mil pessoas entraram em Ceuta, uma cidade autônoma da Espanha na costa do Marrocos, na parte africana do estreito de Gibraltar, a nado ou a pé, arriscando-se por Benzú, entrada norte, e El Tarajal, ao sul, por consequência da vigente disputa diplomática entre Rabat e Madri. Esta não é a primeira vez que o município enfrenta o efeito das relações fronteiriças: sua história evidencia as consequências de uma relação bilateral, que afeta diretamente as comunidades de ambos os lados da fronteira.
A maioria dos ingressantes é de origem subsaariana e marroquina. Imagens de pessoas desfalecidas na praia, pelo cansaço e hipotermia, surpreendeu o público e a comunidade internacional. Em imediato, as Forças de Segurança marroquinas cercaram os principais perímetros de entrada e saída da fronteira, incluindo as trilhas da mata, para conter a chegada em massa na cidade.
Foto: EFE
A maioria gritante dos migrantes é composta por jovens, incluindo adolescentes, que buscam melhores condições de vida e direitos básicos. Entre os relatos, a maioria afirma que quer apenas encontrar um trabalho para ajudar a família e minimizar os efeitos da pobreza e da fome no país, cuja circunstância foi brutalmente intensificada com a disseminação da Covid-19 na região.
Categorizados como “eufóricos” pela grande mídia, os migrantes se espalharam estrategicamente na cidade para não serem impedidos ou cercados pelos oficiais de segurança. Os esforços foram rapidamente reforçados com a convocação de soldados, os quais chegaram dirigindo veículos blindados nas linhas fronteiriças. A situação tornou-se ainda mais caótica após forte repressão dos agentes, prendendo e encaminhando os grupos de volta ao país de origem.
Durante a semana, centenas de pessoas retornaram voluntariamente a Marrocos após pressão governamental, mas o Governo Espanhol informou, em declaração oficial, ter “devolvido” mais de seis mil migrantes e que restariam aproximadamente dois mil na cidade, dos quais 800 são menores.
Foto: El Pais
Apesar do caos gerado, a maioria da população se simpatiza com os migrantes e, por isso, muitos jovens foram vistos percorrendo as ruas do município portando sacolas com alimentos e cobertores, itens doados pelos moradores. Muitos cidadãos relatam ter doado também moedas e pequenas quantidades de dinheiro.
As ONGs, que prontamente se mobilizaram na região, distribuíram produtos e objetos de higiene pessoal, principalmente máscaras. Na última quarta-feira (19), a Cruz Vermelha se alojou próximo à fronteira e começou a fazer exames de coronavírus, além da distribuição de kits de proteção. Os voluntários se somaram ao grupo, alertando para as medidas de segurança à saúde, como o uso correto da máscara.
Ceuta é uma cidade espanhola localizada na margem africana oriental, conta com cerca de 85 mil habitantes e totaliza uma área limitada de aproximadamente 14 quilômetros quadrados. Por seu caráter autônomo, os cidadãos a denominam, junto à Melilla, como “cidades esquecidas” pelo governo. Com isso, muitos moradores – em destaque à minoria que não estava contente com a situação – afirmaram que este era um episódio previsível e que era nítido que se complicaria rápido e facilmente.
Segunda Marcha Verde?
Apesar de estar sendo estimada esta possível “qualificação” do ocorrido migratório, esta caracterização é equivocada. De forma sintética, corrida em novembro de 1975, a Marcha Verde foi uma marcha popular de proporções altíssimas, quando uma massa de civis marroquinos caminhou até a fronteira do país com bandeiras e fotos do rei vigente.
Após esta manifestação, o governo espanhol estabeleceu negócios com Marrocos e Mauritânia, resultando no Acordo de Madri – que dividiu a colônia entre os dois países. Porém, esta negociação infringiu as normas de descolonização do Saara e, após reivindicações, a Mauritânia abdica o território conquistado enquanto Marrocos insiste na ocupação.
Entretanto, ainda hoje, após vinte anos da virada do século, a União Africana e a ONU consideram o Saara Ocidental uma região que deve ser descolonizada pela Espanha, mesmo que em alguns casos isso se dê “informalmente”.
A Marcha não contada
No primeiro semestre de 2020, a imprensa espanhola divulgou documentos da Agência Central de Inteligência estadunidense (CIA) atestando que, em 1975, os EUA temiam um colapso do regime franquista para os socialistas e, assim, uma possível independência do Saara espanhol para a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
Consequentemente, Henry Kissinger, Secretário de Estado norte-americano, junto ao rei Hassan II, de Marrocos, organizaram em conjunto a Marcha Verde. Como resultado, o governo espanhol descolonizou o Saara.
Porém, dias depois, foi anunciada a morte de Francisco Franco, Caudillo da Espanha - designação para ditador e chefe de Estado. Assim, a CIA abordou o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) e garantiu apoio em troca da permanência das bases da OTAN no seu território e o Saara espanhol. Entretanto, os dirigentes recusaram a ajuda e o Serviço Secreto impulsionou a eleição de Felipe González como Secretário-Geral do Partido.
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