Por Camila Machado
Problematizações acerca do caso do Felipe Neto: Intimidação, tentativa de silenciamento, confusão entre liberdade de expressão e discurso de ódio marcaram o caso
Ainda no dia em que foi intimado Felipe Neto postou um vídeo dizendo que o objetivo da família Bolsonaro e todas as pessoas que moveram processos contra ele e seus posicionamentos políticos era amedrontar as pessoas. “Querem que você tenha medo, não apenas eu, você. Porque eles sabem que eu tenho como me defender, que tenho recursos para isso. Eles sabem que não vai dar em nada essa acusação completamente descabida e ilegal. Mas, eles querem propagar o medo e o povo não deve jamais temer o seu governo! O governo é que deve ter medo do seu povo”, afirmou o youtuber. O caso do Felipe é um exemplo entre muitas outras tentativas de silenciamento da liberdade de expressão crítica ao governo atual. E chama a atenção para problematizações necessárias.
Uma herança da ditadura?
A Lei de Segurança Nacional é um instrumento legal remanescente do período da Ditadura Militar (1964-1985) que voltou a ser utilizado nos últimos anos. O instrumento foi aprovado durante os anos de João Figueiredo na ditadura militar e só nesse mês de março a lei já foi usada três vezes. O caso do Felipe Neto, claro, trouxe mais visibilidade e problematizações sobre o tema, mas a LSN também chegou a ser usada na ordem de prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ). O deputado, que atualmente encontra-se em prisão domiciliar, teve sua prisão decretada em flagrante durante o carnaval, após ameaças a ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e invocar o AI-5. Muitos internautas começaram a comparar os dois casos e isso traz à tona a frágil compreensão da sociedade civil dos limites da liberdade de expressão.
Há uma grande diferença entre liberdade de expressão e discurso de ódio. Pessoas que protestam politicamente contra o atual governo, de forma virtual ou não, não podem ser perseguidas e igualadas a aquelas que fomentam a agressão, desqualificando ou agredindo violentamente alguém. As manifestações que chamam o presidente de "genocida" refletem as ações do presidente Jair Bolsonaro que caminham cada dia mais para essa conclusão. A perseguição destes casos não pode ser vista sob o mesmo enquadramento do deputado Daniel Silveira na legislação.
As tentativas de silenciamento pela intimidação do pensamento crítico se mostram cada vez mais crescentes por parte da família Bolsonaro e aliados. Além do caso do Felipe Neto e de Daniel Silveira, o Ministério da Justiça também abriu inquérito, com base na LSN, contra Hélio Schwartsman, colunista da Folha, depois dele publicar um texto intitulado “porque quero que Bolsonaro morra”. Dias depois do caso do Felipe, a Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) prendeu cinco pessoas que faziam uma manifestação contra o presidente da República no dia 18 de março. O ato foi realizado na Praça dos Três Poderes, em frente ao Palácio do Planalto e os manifestantes chamaram Jair Bolsonaro novamente de genocida. Segundo a denúncia, os manifestantes infringiram a Lei de Segurança Nacional, pois "expõem a perigo de lesão" a integridade e a soberania nacional.
Foto reprodução twitter |
Outro caso polêmico é o do sociólogo Tiago Costa Rodrigues e do microempresário Roberval Ferreira de Jesus. O ministro da Justiça André Mendonça pediu que Polícia Federal que os investigue, depois que ambos espalharam outdoors afirmando que o presidente Jair Bolsonaro vale menos que um "pequi roído" (algo sem valor ou importância) pelas avenidas de Palmas/ TO. As mensagens foram espalhadas em agosto do ano passado, e o inquérito contra Tiago e Roberval foi aberto no dia 6 de janeiro pela Diretoria de Inteligência Policial (DIP) da direção-geral da Polícia Federal de Brasília.
Tiago Rodrigues afirmou em entrevista para o Jornal do Tocantins que a intenção dos outdoors era fazer um contraponto a placas de apoio ao presidente espalhadas por bolsonaristas pela cidade e criticar as ações "ineficazes" do governo durante a pandemia. O sociólogo fez uma vaquinha virtual para arrecadar o valor necessário e colocou duas placas que ficaram 30 dias em exposição pelas ruas da cidade. Uma dizia "cabra à toa, não vale um pequi roído. Palmas quer impeachment" e a outra "Aí, mente! Vaza Bolsonaro Tocantins quer paz".
Foto reprodução twitter |
Desdobramentos do caso Neto
Apenas dois dias após caso do Felipe Neto ganhar visibilidade o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, classificou o evento como “flagrantemente ilegal”. “Ele pediu uma audiência com o chefe da Polícia Civil para discutir o meu caso. Não deixem que ninguém espalhe por aí que o meu caso é igual ao caso de criminosos condenados, como Daniel Silveira, Sara Winter e Oswaldo Eustáquio. Chamar um genocida de genocida não é comparável com propagar desinformação intencionalmente, ameaçar ministros, incitar a violência e propagar mensagens pedindo um golpe de Estado. Tudo que a família Bolsonaro quer é que você acredite que o nosso lado comete os mesmos crimes q eles. É mentira. Não caia nessa falácia”, afirmou Felipe Neto em seu perfil o Instagram no dia 17 de março.
No dia seguinte a juíza Gisele Guida, da 38ª Vara Criminal do Rio, suspendeu a investigação feita a pedido de Carlos Bolsonaro contra Felipe. A magistrada reconheceu a ilegalidade da instauração do procedimento criminal e determinou a imediata suspensão da investigação. Em decisão, a juíza fala em 'flagrante ilegalidade' e disse que o caso é de competência da Justiça Federal, por se referir a suposto crime contra a segurança nacional e o depoimento do youtuber, previsto para a tarde do dia 18 foi suspenso.
Muitas pessoas influentes demostraram apoio ao youtuber e uma delas foi a advogada criminalista e comentarista política Gabriela Prioli. Em suas redes Prioli disse: “Polícia e judiciário gastando tempo com uma investigação flagrantemente ilegal como se ninguém tivesse nada mais importante pra fazer. Inacreditável e absurdo o que fizeram com você [Felipe]. Inacreditável e absurdo que nós precisemos desperdiçar o tempo do judiciário com absurdos enquanto tem tanto crime precisando de solução. Quem deseja um país mais seguro deveria desprezar uma família que instrumentaliza a polícia para atender aos seus interesses em detrimento dos interesses do povo brasileiro”.
Cala Boca já morreu!
Foto: reprodução website do projeto |
A investigação considerada ilegal e suspensa pela Justiça inspirou o youtuber a criar o movimento "Cala-Boca já Morreu", uma forma de assistência jurídica a qualquer investigado ou processado por criticar autoridades. O movimento se propõe a lutar contra o autoritarismo e, segundo o youtuber, será movido pelo “princípio de que quando um cidadão é calado no exercício do seu legítimo direito de expressão, a voz da democracia se enfraquece”.
“A liberdade de expressão está sob ataque de uns poucos, porém violentos inimigos da democracia brasileira querem calar aqueles que criticam autoridades públicas, eleitas pelo povo, e em cujo nome exercem o poder que têm. E para isso, se armam da Lei de Segurança Nacional, herança insepulta da Ditadura. O autoritarismo é como um vírus, que vai se espraiando pelo corpo, matando-o aos poucos. A democracia, todavia, conhece várias vacinas. Uma delas é o controle pelo Judiciário dos avanços ilegais; um outra é a solidariedade. Aquele sentimento humano profundo, que faz sentir a dor do outro como sua. Se você está sendo investigado criminal ou administrativamente por ter expressado uma ideia ou criticado uma autoridade pública, e não encontrou meios, públicos ou privados, para se defender, o Cala Boca Já Morreu vai ajudar na sua defesa e, se o caso, provocar o Ministério Público competente para apurar eventual abuso por agente público”, afirma o youtuber na carta aberta exposta no website do movimento.
Em entrevista ao jornal O Tempo, Felipe disse que a ideia do movimento surgiu na madrugada após ser intimado. “Eu sabia que a ação contra mim daria em nada, justamente pela minha rede de apoio e defesa, mas entendi que o problema era muito mais profundo. Eles queriam colocar medo na população, nos jornalistas, nos professores. Então decidi procurar os melhores advogados que conheço e perguntar se eles topariam utilizar seus escritórios para defender todo mundo que sofresse essa tentativa de silenciamento absurda que eu sofri. Eles toparam na hora”, disse.
Felipe ainda chamou a atenção para as mais de vinte pessoas que foram intimadas pela Polícia Federal em Uberlândia por postagens contra o governo e outros casos de repressão. “Quatro rapazes foram presos em Brasília por estenderem uma faixa criticando Bolsonaro. Um homem está sendo perseguido judicialmente por ter colocado um outdoor comparando o presidente a um pequi roído. Casos não param de surgir por todo o País. Não adianta esperar sentado que as coisas serão cuidadas pelos próprios poderes públicos. É imprescindível que a sociedade civil aja para enfrentar o autoritarismo”, afirma. Ainda nessa entrevista o youtuber disse estar trabalhando em um denúncia internacional contra o presidente acerca da sua “política genocida” durante a pandemia.
A prática de intimidação judicial já levou à prisão algumas pessoas e muitas outras seguem sendo intimadas por postagens em redes sociais ou interação com algum post crítico ao presidente. Felipe Neto e o ex-governador Ciro Gomes (PDT-CE) são os casos famosos, mas não podemos nos esquecer das pessoas anônimas que também são intimidadas.
E todos esses casos deflagram um outro problema: O acesso desigual à Justiça no Brasil. As defensorias públicas fazem um trabalho excepcional, mas não dão conta da demanda. Assim, quem não pode arcar com uma defesa privada fica à mercê do autoritarismo. A iniciativa “Cala Boca Já Morreu” vem na tentativa de auxiliar exatamente essas pessoas, para que não sejam silenciadas e intimidadas. Formada por especialistas de escritórios de advogados reconhecidos como André Perecmanis, Augusto de Arruda Botelho, Davi Tangerino e Beto Vasconcelos a iniciativa oferecerá defesa gratuita não só para aqueles que criticarem o presidente como também qualquer autoridade pública.
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