Por Maria Clara Ribeiro
Uma revolta pacífica contra o presidente da Síria, Bashar al-Assad, ganhou novos significados e eclodiu em uma guerra civil. O conflito já deixou mais de 380 mil mortes, devastou e esvaziou cidades do país.
Manifestações na Síria ocorreram no dia 15 de março deste ano, no marco de dez anos da guerra civil que assola o país, em uma das maiores crises humanitárias da história moderna. A comunidade internacional viu a movimentação de pessoas nas ruas de Idlib como um apelo ao encerramento do conflito, que já devastou e esvaziou as cidades do país.
Fonte: Estadão-Internacional |
Sob o governo do presidente Bashar al-Assad, empossado em 2000, os altos níveis de desemprego, corrupção e restrição à liberdade política tornaram-se insuportáveis e a população se uniu para garantir seus direitos básicos. Em março de 2011, as primeiras manifestações a favor da democracia foram organizadas. Esses levantes foram fortemente influenciados pelos movimentos da Primavera Árabe, no qual países da região lutavam contra os regimes opressivos.
O governo sírio coibiu com violência os protestos, ato que intensificou as proporções da manifestação e a população ocupou as ruas do país exigindo a renúncia do presidente. Entretanto, a repressão se intensificou e a oposição começou a se armar. Vale destacar que o processo de armamento começou com a necessidade de autodefesa, mas evoluiu ao interesse de alguns grupos em eliminar as forças de segurança nacional.
A partir de então, a violência dos ataques aumentou em níveis perigosos, marcando o início da guerra civil no território. Porém, mais que um conflito entre sírios - a favor ou contra o governo -, se instaurou uma batalha entre rebeldes e potências estrangeiras, fato que proporcionou aplicação de capital no conflito e, consequentemente, o aumento de armamento e combatentes.
O caos se estabeleceu por completo quando organizações extremistas, cada qual com seus interesses próprios, se envolveram no conflito. A participação de grupos como o Estado Islâmico (EI) e a Al-Qaeda aumentou a preocupação internacional sobre o acontecimento. Além destes, os curdos da Síria, grupo étnico que almeja o direito de autonomia, trouxeram ainda outra dimensão ao conflito - principalmente em detrimento do seu poderio quantitativo, com cerca de 25 a 35 milhões de indivíduos pelo globo.
Envolvidos no conflito
É perceptível a participação de inúmeros grupos e países neste conflito. As principais nações apoiadoras do governo são a Rússia e o Irã. A Rússia, que já possuía base militar no país antes da guerra, lançou campanha aérea a favor de Assad, em 2015, e este fato foi crucial para levar a balança do conflito em benefício do governo. Por sua vez, o Irã mobilizou centenas de soldados e movimentou bilhões de dólares para ajudar Assad, incluindo a contratação e envio de milicianos armados para lutar no exército sírio.
A Turquia, junto a países do Golfo, é grande apoiadora da oposição, mas sua principal ação foi mobilizar facções rebeldes para conter a milícia curda - sob acusação de serem a extensão de um grupo rebelde banido do país turco. Suas tropas tomaram trechos ao longo da fronteira norte da Síria e interviram para impedir um ataque das forças do governo na última barricada da oposição. Com um contexto similar, a Arábia Saudita, com intuito de inibir a influência iraniana, armou e financiou rebeldes no início da guerra. Enquanto isso, Israel tem realizado ataques aéreos com frequência crescente para limitar o poderio militar e de armas do Irã.
Entretanto, há uma grande influência dos países de cultura ocidental desde o início do conflito, cada qual com seu interesse econômico e geopolítico singular. Os EUA, Reino Unido e França, em primeiro instante, ofereceram apoio aos grupos rebeldes "moderados", mas priorizaram o apoio não bélico. Entretanto, com o avançar da guerra, uma coalizão internacional liderada pelos norte-americanos organizou ataques aéreos e enviou forças especiais ao país para dar suporte às alianças das Forças Democráticas Sírias (FDS). Estes grupos estavam em territórios dominados pelo Estado Islâmico e eram alvos por defender um governo democrático-federalista.
Consequências trágicas
Além do extenso número de mortes, a Guerra da Síria deixou mais de 2,1 milhões de civis feridos ou incapacitados, segundo o Observatório Sírio para os Direitos Humanos. Mas, o fator destaque desta situação é o grande fluxo de imigrantes. Antes da eclosão da guerra, o país tinha uma população de 22 milhões de pessoas. Metade destes cidadãos já saíram ou foram obrigados a deixar suas casas no território, outros 6,7 milhões estão desabrigados no território e, muitos, vivendo em campos temporários.
Além disso, 5,6 milhões de pessoas já se encontram com registro de refugiadas no exterior. A maior parte destes, 93%, estão alocados em países vizinhos, como Líbano, Jordânia e Turquia. As nações que recebem estes imigrantes encontram problemas para lidar com a situação, haja visto que este é um dos maiores êxodos de refugiados da contemporaneidade. Um exemplo deste desafio é o nascimento de um milhão de crianças em exílio - apenas das famílias sírias.
De acordo com a ONU, em janeiro de 2022, 13,4 milhões de sírios necessitavam de alguma assistência humanitária, incluindo seis milhões em situação de extrema carência. Foi relatado que mais de 12 milhões tinham dificuldades em se alimentar diariamente e que 500 mil crianças sofriam de desnutrição crônica. Em grande parte, esta situação foi agravada em 2020, com a desaceleração econômica, levando à queda drástica da moeda síria e ao aumento exorbitante dos preços, inclusive dos alimentos.
A estrutura vital da nação, assim como bairros inteiros, está destruída. Uma análise da ONU via satélite sugere que mais de 35 mil estruturas foram danificadas ou completamente em ruínas apenas em uma cidade, Aleppo - antes da nova invasão pelo governo em 2016. Os danos culturais também são extensos e incalculáveis. A herança síria está significativamente abalada, principalmente após a destruição dos seis Patrimônios Mundiais da Unesco localizados no país e os ataques à Palmira – antiga cidade semita.
Guerra em números
Fonte: ICRC ORG |
Um grupo de monitoramento do Reino Unido com redes de fonte na Síria, denominado Observatório Sírio dos Direitos Humanos, registrou o número de mortes pelo conflito. Até dezembro de 2020, foram 387.118 mortes e, destas, 116.911 de civis. Entretanto, esses dados não fazem referência às 205.300 pessoas desaparecidas no país, incluindo 88 mil que, presumivelmente, teriam morrido em centros de tortura e prisões do governo.
Em contraste, o Centro de Documentação de Violações, grupo de monitoramento de informações de ativistas sírios, registrou 226.374 mortes, incluindo a de 135.634 civis - também até dezembro de 2020. Além disso, o Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para a Infância (Unicef) apontou números espantosos. Cerca de 12 mil crianças foram mortas ou feridas, mas os índices mais graves indicam até 22 mil.
O Centro de Documentação de Violações divulgou, nesta mesma data, um índice com as mortes registradas de civis e combatentes por grupo responsável: Governo da Síria, 156.329; grupos de oposição, 34.606; Estado Islâmico, 13.996; forças russas, 7.290; outros, 7.271; coalizão liderada pelos EUA, 3.330; Exército da Turquia, 1.662; Forças Democráticas da Síria, 1.364; e outros grupos jihadistas, 528.
Em relação aos refugiados sírios, a Eurostat, Serviço de Estatística da União Europeia, fez uma análise sobre a questão. Sobre os dez países europeus com mais pedidos de asilo, tem-se: Alemanha, 674.655; Suécia, 127.935; Grécia, 80.395; Hungria, 78.285; Áustria, 58.285; Países Baixos, 47.505; Bélgica, 28.450; França, 27.505; Bulgária, 22.960; e Dinamarca, 21.980. Outra questão apontada no relatório foi a quantidade de imigrantes sírios registrados em países vizinhos até o final de fevereiro de 2021. A Turquia encontra-se destacadamente em primeiro lugar, com 3.655.067 refugiados, seguida por Líbano (865.531), Jordânia (664.603), Iraque (243.121) e Egito (130.577).
Situação atual
A última barricada da oposição está localizada em Idlib e partes das províncias de Hama e Aleppo. O território é dominado por alianças extremistas e facções rebeldes. Porém, na região vivem cerca de 2,7 milhões de civis desabrigados, incluindo um milhão de crianças. Neste contexto, em março de 2020, Rússia e Turquia interromperam uma ofensiva na região para que o governo pudesse recuperar a área. Desde este episódio, o conflito conta com baixa atividade militar - apesar de que esta relativa pausa pode cessar a qualquer momento.
O governo de Assad recuperou o controle das maiores cidades da Síria, mas a maior parte do país ainda está sob controle de rebeldes e grupos opositores. Assim, não há como prever o fim do conflito. A Rússia, o Irã e a Turquia fizeram um acordo, em 2017, e formaram um comitê para criar uma nova constituição supervisionada pela ONU. Entretanto, em janeiro deste ano, a organização lamentou que não havia sido iniciado qualquer segmento do documento. Outra observação foi que, com cinco exércitos estrangeiros ativos no país, a comunidade internacional não pode responsabilizar apenas os sírios pela persistência do conflito.
Pandemia em meio à guerra
Fonte: Monitor do Oriente |
Instalações médicas também foram alvos de ataques por toda a Síria. Cerca de 350 hospitais sofreram 595 ataques até março do ano passado, levando à morte de 923 médicos e, consequentemente, ao funcionamento de apenas metade dos hospitais do país - segundo análise dos Médicos pelos Direitos Humanos. Para agravar ainda mais a situação, desde março do ano passado, a crise humanitária foi agravada com a pandemia da Covid-19, pois o sistema de saúde do país está completamente fragilizado. Segundo os dados compartilhados pela Covid-19 Data Repository by the Center of Systems Science and Engineering at Johns Hopkins University (CSSE), atualizado em 24 de março, o país compreende 17.743 casos da doença, 11.794 pacientes já recuperados e 1.183 mortes. A média de novos casos por semana chega a 155 por dia.
A ONG Médicos Sem Fronteiras divulgou um relatório, em novembro de 2020, indicando a criticidade na região de Abu Dali – região de campos de refugiados. No local, há cerca de 16 residentes e, dentre estes, 7.059 casos de coronavírus, com o auge de 524 novos casos em um único dia. A fácil propagação do vírus diz respeito às condições precárias em que vivem tais famílias, divididas em barracas lotadas, algumas com apenas seis metros quadrados, e apenas três blocos de banheiros.
Fonte: Agência Brasil |
Ainda segundo a MSF, a Síria conta com apenas nove hospitais de combate à Covid-19 para atender 4 milhões de habitantes. Além disso, o país dispõe de apenas 36 centros de isolamento e tratamento para oferecer o cuidado básico, isto é, voltado apenas aos pacientes com sintomas leves. Para ajudar no combate à escassez de estrutura e condições básicas de saúde, a MSF fornece kits de higiene para tentar amenizar a situação. Neste kit, a instituição consegue fornecer sabonete, detergente e balde.
Para tentar diminuir o crescimento potencial dos casos, foi instituído no país o “Bloqueio Planejado”, no qual a maior parte dos possíveis centros de aglomeração estão fechados, como mercados públicos, universidades e escolas. Contudo, pequenos comércios, farmácias e clínicas locais seguem com funcionamento habitual.
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