Por Camila Machado
Um símbolo do retrocesso na discussão do estupro no Brasil que coloca em risco a já baixa autonomia e controle da vítima sobre seus corpos
Está em tramitação no Senado o projeto de lei 5.435/2020 para a criação do "Estatuto da Gestante". A proposta de autoria do senador cearense Eduardo Girão (Podemos) serviria, segundo o senador, para proteger integralmente as gestantes desde o momento da concepção. A ideia de Girão é que um programa de "suporte subsidiário que assegure o nascimento da criança concebida", mas a proposta apresenta pontos problemáticos. O projeto desconsidera as vítimas de estupro e parece querer, na prática, incentivar as vítimas de estupro a não abortarem mediante ao pagamento de um auxílio financeiro.
Esta PL é fruto do conservadorismo e não de uma análise social e de saúde pública, simboliza um retrocesso na discussão do estupro no Brasil. Apesar de não se tratar de um projeto que fala de forma direta sobre a interrupção da gravidez, é importante questionar objetivo por trás desta proposta que acaba por restringir a possibilidade de aborto, mesmo nos casos legais, ao incluir a proteção de direito à vida "desde a concepção".
A PL 5.435/2020 se mostra legislativamente contraditória e coloca em cheque até as três as situações em que o aborto é legalizado no Brasil. Além da gravidez que decorre do estupro, a intervenção pode ser realizada para salvar a vida da gestante ou quando o feto é anencefálico. Mas, o projeto em seu art. 8º proíbe que “particulares causem danos à criança por nascer em razão de ato ou decisão de qualquer de seus genitores”, o que na prática significa que os médicos ficam proibidos de realizar o aborto. Portanto, se aprovado, o art. 8º entrará em contradição com o Código Penal, que garante o direito ao aborto em caso de gravidez resultante de estupro (art. 128, inciso II). Com duas leis válidas a segurança jurídica será colocada em risco.
Outro ponto problemático diz respeito à “paternidade do estuprador” defendida no projeto. A proposta é “obrigar” o genitor a cuidar do feto e também da gestante (art. 4º, §2º), e garantir que ele, além de pagar a pensão alimentícia, tenha o direito de conviver com a criança após o nascimento (art. 10º). O problema se encontra exatamente nessa narrativa que desconsidera totalmente o fato de que quando uma gravidez é resultante de estupro, esse “genitor” é o estuprador. O estupro é um crime hediondo que viola gravemente os direitos humanos da mulher e é impensável que esteja em tramite legal um projeto de lei que dá direito à paternidade a um estuprador, um agressor. A PL desconsidera todo o sofrimento da vítima de estupro e deseja forçá-la a lidar não só com as lembranças e os danos psicológicos da violência, mas também conviver com seu abusador.
Mas, a parte que ganhou mais repercussão foi a que se refere a chamada “bolsa estupro”. A proposta defende que caso a gestante vítima de estupro não disponha de meios econômicos suficientes para cuidar da vida, da saúde, do desenvolvimento e da educação da criança, o Estado arcaria com os custos pagando um salário-mínimo até que a criança completasse 18 anos. O senador na justificativa da proposta diz que o Estado arcaria com as despesas da criança "até que se efetive o pagamento da pensão alimentícia por parte do genitor ou outro responsável financeiro especificado em lei, ou venha a ser adotada a criança, se assim for a vontade da gestante, conforme regulamento".
A PL volta a desconsiderar um fato importante: As mulheres, mesmo as que vivem em uma situação vulnerável financeiramente, não querem ter um filho fruto de um estupro devido a sua condição econômica, mas exatamente por aquele feto representar a violação que sofrera. Fora isso, se hoje as vítimas de estupro já são responsabilizadas socialmente por serem abusadas, as acusações só aumentarão com a aprovação deste projeto de lei. Não é difícil imaginar como, em pouco tempo, as vítimas de estupro teriam de lidar com comentários como: “mentiu que foi estuprada só para ficar com o dinheiro”, “saiu com essa roupa só pra ser estuprada, porque sabia que ia ganhar dinheiro depois” etc.
O assunto ganhou repercussão nas redes sociais por meio da hashtag #GravidezforçadaÉTortura e no dia 23 de março, após pressão feita pelo movimento das mulheres, a senadora Simone Tabet disse que vai excluir a "bolsa-estupro" e restrição a aborto legal do projeto de Estatuto da Gestante. No site do senado, 53.716 pessoas votaram contra a proposta até às 18h daquele dia. Entretanto, o parecer não impede a votação e a senadora apenas antecipou esta mudança. O simples fato de um projeto de lei como esse estar sendo colocado em votação reflete as dimensões da misoginia desse país. Uma proposta que obriga a vítima de um crime hediondo como o estupro a se responsabilizar por ele e carregar os traumas dessa violência para o resto da vida é no mínimo desprezível.
Envolver o Estado nessa naturalização da violência contra mulheres é retroalimentar a cultura que estimula esse crime. Tirar ainda mais a autonomia e o controle da vítima sobre seus corpos é grave, mas o Senado parece não ter consciência dessa gravidade. A própria apresentação desse projeto desconsidera o fato de que estupro é crime e, portanto, um estuprador que engravida alguém não pode jamais ser chamado de pai. Impedir o aborto em caso de estupro é permitir que estupradores continuem tendo imunidade jurídica sobre seus crimes, é dar direitos ao estuprador, é tortura.
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