domingo, 3 de janeiro de 2021

Crime passional não, feminicídio: a cobertura midiática do caso do policial que matou a esposa

Ana Laura Corrêa            

2021 começou já com um registro de feminicídio na região de Divinópolis. No dia 3 de janeiro, um policial militar, André Luís da Cunha, matou a esposa, Cassiana Almeida de Souza, e em seguida se matou. Na mídia divinopolitana, o Divinews ainda cobriu o caso como “tragédia passional”, sem utilizar o termo “feminicídio”. 

Trecho da matéria do Divinews (Foto: Reprodução)

O jornal Agora, por sua vez, também chamou o caso de “tragédia”, e sequer mencionou o termo feminicídio na matéria.

Matéria sobre o feminicídio publicada pelo Jornal Agora (Foto: Reprodução)


O trecho “o casal seguia de carro sentido Divinópolis e quando estava próximo ao pedágio da MG-050 próximo a Itaúna, o veículo parou, ocorrendo as mortes” quase naturaliza o ocorrido, tendo em vista que, ao contrário do que traz o jornal, o carro não parou sozinho e as mortes não simplesmente “ocorreram”. Houve um crime e um sujeito responsável por ele, um policial militar.

Neste ponto, pelo menos, o Divinews é mais direto ao afirmar que o policial matou a esposa. Por que o jornal Agora não quis atribuir ao policial o assassinato?

As notícias sobre o feminicídio ocorrido em Divinópolis ainda utilizam o termo “tragédia”. Recorramos ao dicionário: qual o significado de tragédia? Segundo o Michaelis, tragédia é “acontecimento triste, funesto, catastrófico, que infunde terror ou piedade”.

O assassinato certamente é um acontecimento triste, no entanto, nomear o crime como uma tragédia parece tratar o fato como algo isolado e apagar a violência estrutural contra a mulher que ele traz. Assim, classificar o fato como feminicídio seria uma forma de dar visibilidade a esse cenário grave de violência contra a mulher, no entanto, nenhum dos dois portais observados fizeram isso.

Legislação e orientações

A lei do feminicídio está em vigor desde 2015 e a orientação sobre o fim do uso da expressão “crime passional” no jornalismo vem desde então. Apesar disso, em todo o país, conforme o relatório “Imprensa e Direitos das Mulheres: Papel Social e Desafios da Cobertura sobre Feminicídio e Violência Sexual”, elaborado pelo Instituto Patrícia Galvão ‒ organização feminista de referência nos campos dos direitos das mulheres e da comunicação ‒ analisou 1.583 matérias de feminicídios e estupros e verificou que:
 
“Na maioria das vezes em que os crimes são noticiados, os veículos de comunicação não humanizam as vítimas, tampouco colaboram para que a sociedade compreenda mais sobre as políticas públicas de enfrentamento à violência contra mulheres e sobre como o ciclo de violência pode ser rompido” (...) Prevaleceram matérias sobre a morte em si, sem informações sobre quem era aquela mulher, se já havia buscado ajuda, recorrido ao Estado para se defender de violências anteriores ou se tinha medida protetiva, entre outras questões que podem apontar falhas nas políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres”.

O Instituto Patrícia Galvão também desenvolveu um dossiê com orientações à imprensa sobre a cobertura da violência contra a mulher. O documento está disponível neste link.



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