quarta-feira, 5 de novembro de 2025

COP30: desenvolvimento ou destruição?

 A COP30 tem sido palco para a disseminação do greenwashing, bem como reflexo das contradições da política ambiental do governo Lula

Por Heloisa De Tofoli

Uma pesquisa realizada pelo Eko Moviment/Datafolha revelou que 81% da população brasileira acredita que o Governo Federal deveria adotar mais ações de combate à urgência climática do que tem feito atualmente. Mas por que essa percepção de ineficiência ainda persiste, considerando que o governo Lula 3 foi eleito sob a promessa de reconstruir a política ambiental brasileira e recolocar o país no protagonismo internacional perdido durante os anos de retrocesso?

De fato, algumas medidas foram simbólicas e relevantes, como a nomeação de Marina Silva para o Ministério do Meio Ambiente, a redução de 32,4% no desmatamento em 2024 e a decisão de sediar a COP30 em Belém do Pará, no coração da Amazônia.

Entretanto, as contradições são evidentes: o mesmo governo que defende a sustentabilidade sanciona parcialmente o chamado “PL da Devastação”, autoriza a Petrobras a perfurar poços de petróleo na Foz do Rio Amazonas e tolera o greenwashing de grandes corporações que lucram enquanto se pintam de verde na COP30 (para entender o que é “greenwashing” leia o artigo: “Sustentabilidade ou greenwashing? As contradições por trás do discurso verde das grandes corporações.”).

A Conferência das Partes (COP) é uma convenção anual criada pela ONU em 1994, em que representantes de diversos países se reúnem para discutir e firmar acordos sobre como enfrentar a crise climática global. A trigésima edição, marcada para acontecer em novembro deste ano, em Belém do Pará, no coração da Amazônia, carrega uma forte carga simbólica.

Assim como o plano de desenvolvimento ambiental do governo brasileiro, que prevê desmatamento zero até 2030, a COP30 tem como meta limitar o aumento da temperatura global a 1,5 °C. Mas será que reunir milhares de bilionários e grandes corporações, interessados sobretudo em lucrar, será o suficiente para transformar essas promessas em ações concretas?

A resposta veio bem antes de a COP, de fato, começar. Belém está sendo transformada em vitrine do “desenvolvimento sustentável”, mas por trás das obras e dos discursos oficiais, o que se vê é o avanço sobre áreas protegidas, o apagamento das comunidades locais e a apropriação da pauta ambiental por quem mais lucra com a destruição.

A preparação de Belém para receber a COP30 é apresentada pelo governo como um marco de desenvolvimento e sustentabilidade. No entanto, a principal obra que simboliza esse “progresso” - a construção da Avenida Liberdade, uma rodovia de 13 quilômetros que corta áreas de floresta protegida - escancara a contradição entre discurso e prática.

A obra é parte de um pacote de mais de 60 intervenções urbanas, que o governo estadual chama de “modernização” da cidade para a COP30. Entre os projetos, estão revitalizações de praças, duplicações de vias, retirada de comerciantes de rua, criação de parques lineares e reformas em áreas históricas.

Mas para muitos moradores, o que é apresentado como “desenvolvimento” tem se traduzido em remoções forçadas, perda de renda e destruição ambiental. Pequenos comerciantes tiveram de deixar seus pontos de trabalho para dar lugar a áreas “revitalizadas” para o turismo. Moradores locais perderam áreas de cultivo e fontes de renda, como o açaí. Além disso, a falta de transparência no processo de licenciamento ambiental é denunciada. 

Essas mudanças ocorrem de forma brusca e acelerada em uma cidade que há anos luta por melhores condições de vida. O discurso do governo fala em “modernização” e “mobilidade urbana”, mas a pergunta que ecoa entre os moradores é: modernização para quem? Belém agora se torna o cartão-postal do Brasil para os estrangeiros, mas o que restará quando o evento acabar? As obras estão sendo feitas para quem vai passar uma semana na cidade, não para quem vive nela há décadas.

A palavra “modernizar” parece ter dois significados: para o poder público, é pavimentar, construir, mostrar eficiência; para quem vive nas margens da cidade, modernizar seria ter dignidade, saneamento, transporte público de qualidade e respeito à floresta e aos territórios tradicionais.

Enquanto isso, a floresta cede espaço ao asfalto, e os quilombolas, pescadores e comerciantes são empurrados para fora da paisagem que ajudaram a construir. O discurso de sustentabilidade se transforma em greenwashing estatal, em que o meio ambiente é tratado como vitrine política e não como prioridade coletiva.


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terça-feira, 4 de novembro de 2025

Sustentabilidade ou greenwashing? As contradições por trás do discurso verde das grandes corporações.

 As gigantes do petróleo e da mineração prometem transição energética em seus anúncios, mas o que de fato acontece é uma transição de imagem.

Por Heloisa De Tofoli

Petrobras, Vale e Shell - sabe o que elas têm em comum?
Além de figurarem entre as maiores corporações que atuam no Brasil e movimentarem bilhões de reais todos os anos, essas empresas compartilham uma mesma estratégia de marketing: o greenwashing.

Termos como “descarbonização”, “sustentabilidade”, “transição energética justa”, “energia totalmente limpa” e “mudança de hábitos” fazem parte do discurso dessas grandes corporações. Diante de uma publicidade, eles podem até soar bonitos e harmoniosos, mas sabe o que eles também têm em comum? São parte de uma mesma linguagem: o greenwashing.

Mas afinal,  o que significa “greenwashing”, ou melhor, “lavagem verde”?

É uma estratégia de marketing aplicada por empresas poluentes e poderosas de setores, como Agronegócio, Mineração e Energia, as quais vêm utilizando massivamente sites, redes sociais e publicidade online no Brasil para promoverem narrativas de sustentabilidade, desvinculadas de práticas reais ou verificáveis. 

Essas empresas compõem o ecossistema da desinformação socioambiental, ao tentarem mascarar os impactos ambientais negativos que elas causam, omitindo dados críticos e divulgando informações exageradas e imprecisas. 

Uma pesquisa realizada pelo Laboratório de Estudo de Internet e Redes Sociais (NetLab), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, analisou os anúncios divulgados no LinkedIn por empresas de setores de energia, mineração e agronegócio, áreas cujos modelos produtivos são intensivos em recursos como terra, água e energia, e geram alto impacto ambiental.

Dos 2.800 anúncios analisados, 1.476 (52,7%) apresentavam indícios de greenwashing, publicados por 389 empresas (42,5%). Entre as dez companhias que mais veicularam anúncios com indícios de greenwashing, três pertencem ao setor fóssil - Petrobras, Shell e Acelen - além da Vale, na mineração, e das empresas de gás natural Comgás e Compass.

Quem nunca ouviu, nas propagandas da Petrobras, o termo “transição energética justa”?
Em um dos comerciais, Diogo Nogueira canta: “Justa, nosso presente é uma energia justa”, enquanto Camila Pitanga, vestida de verde e sorridente, afirma que a Petrobras fornece “energia justa”. Na prática, porém, a realidade é bem diferente: a empresa segue lucrando com o aumento da produção de óleo e gás, sem interromper a exploração de combustíveis fósseis  e com investimentos ainda muito baixos em energias renováveis.

O que eles chamam de “transição” é, na verdade, uma falácia de marketing. Trata-se apenas da adição de novas fontes de energia, sem a substituição das antigas. Se houvesse um compromisso real com uma transição energética verdadeiramente “justa”, seria mesmo necessário perfurar a Foz do Rio Amazonas, uma das áreas mais sensíveis do planeta?

A justificativa oficial é sempre a mesma: “desenvolvimento” e “empregabilidade”. No entanto, a própria exploração ameaça o maior conjunto de manguezais do mundo, corais únicos e diversos ecossistemas costeiros, além de trazer alto risco de vazamentos. E a geração de empregos seria mão-de-obra especializada.

O mesmo ocorre com os anúncios publicados pela Shell. A empresa possui dois perfis no LinkedIn: um focado na sua atividade principal de exploração de petróleo e outro voltado para energias renováveis, chamado Shell Energy, que modela sua imagem a favor  da transição energética. Porém, a petrolífera destinou apenas 1% dos seus investimentos para isso entre 2010 e 2018, além de não ter planos para reduzir a exploração de petróleo e gás até 2030 (ClientEarth, 2021).

Por fim, há a Vale, que ocupa a terceira posição no ranking das empresas que mais praticam greenwashing. Seus anúncios frequentemente trazem o CEO Gustavo Pimenta como porta-voz de uma suposta “mineração sustentável”, reforçando um dicurso de compromisso com a “transição energética”, o que soa contraditório diante de seu histórico de crimes ambientais. Entre os mais graves, está o rompimento da barragem de Brumadinho (MG), em 2019, que resultou em 272 mortes e danos irreversíveis ao meio ambiente.

 A Vale já foi processada pelo Ministério Público Federal por contaminação de comunidades indígenas e suas dívidas com a União e o estado do Pará ultrapassam R$ 44 bilhões, ainda assim, aposta em ações de marketing para reconstruir sua imagem.

Com a COP30 batendo à porta, o grande espetáculo ambiental e midiático está prestes a começar e a Vale já se posiciona como uma de suas patrocinadoras oficiais. Recentemente, promoveu o Festival Amazônia Para Sempre, em Belém, com um line-up de estrelas como Fafá de Belém, Ivete Sangalo e Mariah Carey, sob o discurso de “proteção da floresta Amazônica e dos povos que nela habitam”.

Entretanto, por trás da estética verde e dos holofotes, há uma contradição gritante: a mesma empresa que destrói ecossistemas tenta agora vender uma imagem de guardiã da floresta.

Se o LinkedIn, as redes sociais e as propagandas em rede nacional já servem como palco para a disseminação do greenwashing, a COP30 será um exuberante palanque,  onde empresas poluidoras se apresentam como defensoras do planeta, escondendo, sob o manto verde da sustentabilidade, os mesmos interesses que alimentam a crise ambiental.

Para ler o estudo feito pela NetLab, acesse o site da Agência Pública:
https://apublica.org/podcast/2025/10/bom-dia-fim-do-mundo/greenwashing-quem-deve-mais-paga-menos/

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sexta-feira, 17 de outubro de 2025

PEC da Blindagem: como as redes sociais transformam o debate político em mobilização popular

 As manifestações contra a  PEC da Blindagem mostraram como as redes sociais deixaram de ser apenas espaço de opinião para se tornarem instrumentos de pressão política, mobilização popular e pedagógica prática democrática

Por Heloisa Benicio


As redes sociais deixaram de ser apenas espaços de interação para se consolidarem como arenas centrais do debate político e social. O poder da mídia digital se mostra cada vez mais evidente ao amplificar opiniões, moldar narrativas e mobilizar cidadãos. Postagens, vídeos e hashtags transformam-se em instrumentos de pressão sobre parlamentares, decisões institucionais e a própria opinião pública. O embate em torno da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) autodenominada das Prerrogativas - mas que ganhou apelidos sugestivos: PEC da Blindagem e por fim PEC da Bandidagem - é um exemplo claro desse processo.


Aprovada pela Câmara dos Deputados em 16 de setembro de 2025, a proposta alterava as regras para abertura de processos criminais e prisões contra parlamentares. O texto-base tinha como objetivo alterar as regras e dificultar prisões em flagrante, prevendo que a continuidade de ações judiciais contra deputados e senadores fosse decidida pelo próprio Congresso, em votação secreta. Desde a votação, a medida provocou forte reação social e expôs o poder das redes como espaço de resistência política.


Enquanto veículos de imprensa se concentraram em análises jurídicas e na repercussão institucional, nas plataformas digitais o debate ganhou contornos mais populares. Expressões como “PEC da Bandidagem” rapidamente se tornaram trending topics, traduzindo em linguagem simples o sentimento de repúdio. A rejeição viralizou em campanhas digitais criadas por influenciadores e celebridades, que buscaram explicar de forma didática os impactos da proposta. 


Mesmo com a polarização política intensa que observamos ao longo dos últimos anos, as mobilizações sobre a PEC traçaram um caminho alternativo.. Mais que uma disputa entre direita e esquerda, o movimento atingiu uma camada ampla e apartidária e se configurou em uma luta nacional contra um “Congresso Inimigo do Povo”, um apelo em nome da democracia. 


O papel dos influenciadores foi central nesse movimento. Utilizando ferramentas como vídeos curtos no Instagram e no TikTok, eles simplificaram o conteúdo jurídico, ampliaram o alcance das informações e estimularam a participação popular. O fenômeno chamou atenção por não se restringir a vozes já engajadas em debates políticos: figuras públicas que tradicionalmente se mantinham afastadas da política usaram suas plataformas para se posicionar contra a medida, reforçando a ideia de que a vigilância democrática é um dever. 


As mobilizações dessas figuras públicas ultrapassaram o espaço virtual. Artistas consagrados como Djavan, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Chico Buarque participaram de manifestações presenciais, reforçando a legitimidade do movimento e evocando a memória histórica da resistência cultural durante a ditadura militar. A volta dessas figuras à linha de frente dos protestos deu ao movimento um peso simbólico adicional, unindo gerações em torno da defesa da democracia.


Esse episódio revela que a mídia contemporânea já não atua apenas como mediadora, mas também como protagonista. As redes sociais se consolidaram como canais estratégicos de informação, sensibilização e mobilização política. Nesse ambiente, cidadãos não são mais espectadores passivos, são atores capazes de questionar, interpretar e pressionar diretamente o sistema político. O que nasce em posts, vídeos e hashtags pode, em poucos dias, se transformar em força política real, capaz de influenciar votações no Congresso e expor a fragilidade de projetos que não encontram respaldo popular.


O desafio diante desse cenário é bastante complexo. Primeiramente, a força das mobilizações a que assistimos indica que a sociedade civil está atenta aos movimentos da política institucional. Mais do que a “tradução” para linguagem acessível, das massas, de temas complexos e de difícil compreensão, o maior desafio é encontrar uma pauta que “fure bolhas” e encontre ressonância ampla em diversos segmentos sociais. 


O outro desafio talvez tenha como resposta o primeiro deles: como evitar que os interesses das corporações estrangeiras privadas (as big tech) utilizem a manipulação de seus algoritmos para colonizar e tomar de assalto a agenda e o debate públicos? Apenas uma mobilização social ainda maior do que aquela que se viu na PEC da Blindagem poderá ser capaz de forçar a política institucional a proteger a democracia do poder das empresas que não se furtam a canalizar os princípios da democracia para seus próprios interesses.


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quarta-feira, 1 de outubro de 2025

A morte de Charlie Kirk: a dúvida como legado

O mundo está passando por uma intensa polarização política, uma espécie de Guerra Fria. Cada dia o abismo entre esquerda e direita aumenta, e a população se divide cada vez mais. Mas por que a morte de Charlie Kirk em 10 de setembro de 2025 durante um grande evento na Universidade do Vale de Utah é representada como um símbolo de resistência na direita brasileira?

Por Ana Paula Soares

Para responder a questão, precisamos entender a relação entre a “Família Bolsonaro” e Donald Trump, presidente dos Estados Unidos. Desde a candidatura de Bolsonaro como presidente do Brasil, Trump apoia o político alegando que seus ideais e formas de governo são semelhantes. Tanto que o presidente estadunidense não se constrangeu de ignorar a soberania brasileira.

A extrema-direita brasileira considera Trump um “salvador” e idolatra o governo estadunidense, logo, adorava Kirk, um jovem político com ideias extremistas: Kirk era armamentista tanto quanto supremacista branco. A morte dele impactou no nosso país mais do que deveria, porque isso não ataca aos nossos governantes diretamente. Porém a direita insiste em adorar representantes estrangeiros a entender sobre o próprio país. Assim aproximou-se a extrema direita estadunidense e a brasileira.

Os veículos de mídia alinhados à direita, como Brasil Paralelo, Gazeta do Povo, Jovem Pan e outras, fizeram uma cobertura completa da morte e suas decorrências. Nas matérias, eles destacam como ele defendia os valores cristãos, que ele era um pai carinhoso, um marido exemplar e se empenham em criar um personagem humano e sensível. O Brasil Paralelo, por exemplo, produziu um mini-documentário sobre a vida do assim chamado “ativista", que teria morrido em nome dos seus ideais e por isso merece ser lembrado como um homem de bem. Entretanto, é deixado de fora suas falas mais polêmicas e impactantes.

Charlie Kirk defendia execuções públicas e televisionadas, assim como a sua. Porém essa declaração dada em fevereiro de 2024 no programa ThoughtCrime foi deixada de fora por esses veículos de informação. É enfatizado também seu carinho por crianças e seu desejo por manter a inocência da infância, entretanto, nesse mesmo programa Kirk disse que crianças de 12 anos já tem maturidade suficiente para assistir uma execução. Além de defender que crianças vítimas de abuso sexual prossigam com a gravidez mesmo em idades em que o corpo não esteja pronto para gerar uma vida, expondo essas meninas ao risco.

Uma das estratégias do jornal Gazeta do Povo foi aproximar o atirador com pautas da esquerda, induzindo o ódio ao outro lado. Destacaram o fato de o atirador se relacionar com uma pessoa transgênero para que no imaginário popular as pessoas associam a violência com a comunidade trans, atenuando a aversão à essas pessoas e quem defende seus direitos. Ao mesmo em que afirmam que ele defendia os valores cristãos, ou seja, pessoas LGBT’s são violentas e desrespeitam a norma de Deus. A história que agrada seu público e reforçam sua bolha ideológica. A pergunta que resta é: a cobertura que falseia fatos é realizada para agradar um público que já partilha dessa visão de mundo ou a visão de mundo da cobertura produz o público consumidor?

Ao analisar as matérias e seus aspectos é possível enxergar como a notícia se molda de acordo com seu público alvo. Jornais de esquerda abordaram esse assunto de uma forma diferente, como no caso da manchete “Grande mídia trata supremacista como ‘Ativista Conservador” que foi usada pelo The Intercept, em que as ideias radicais e violentas que Charlie Kirk pregou durante sua trajetória não relembradas, para descontruir a imagem fantasiosa e pacífica que a grande mídia criou para impulsionar sua imagem de mártir.

Os dilemas éticos contemporâneos são, seguramente, mais complexos do que eram em épocas anteriores, em razão da emergência das redes sociais digitais, que descentralizam as formas de expressão. No entanto, a receita para as armadilhas ideológicas que brutalizam humanos e esgarçam os tecidos sociais parece ser a mesma desde o século 18: a necessidade de duvidar, de procurar múltiplas versões para os acontecimentos e de pensar com a própria cabeça são o único caminho para não nos tornarmos reféns de quem nos quer escravos.

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quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

O vício em games e a gamificação: entretenimento e dependência

Por Antônio C.M. Mesquita

O vício em games e o universo dos e-sports são fenômenos interligados, que revelam tanto o lado prazeroso e competitivo dos jogos eletrônicos quanto os riscos do uso excessivo e descontrolado. Enquanto os e-sports representam uma evolução dos jogos para o cenário competitivo e profissional, o vício em games é um transtorno comportamental que vem ganhando atenção crescente no campo da saúde mental.

Sua principal característica é uma necessidade compulsiva de jogar, levando o indivíduo a negligenciar responsabilidades pessoais e sociais. Esse transtorno pode trazer consequências físicas e mentais, como problemas musculares, aumento da ansiedade e isolamento social. O desenvolvimento dessa dependência é complexo e pode ser influenciado por fatores biológicos, como predisposição genética, e fatores psicológicos e sociais, como impulsividade, baixa autoestima e o ambiente de isolamento.

O uso de recursos eletrônicos, como redes sociais e videogames, pode ser uma ferramenta de alívio do estresse e proporcionar satisfação, especialmente para jovens que enfrentam desafios na vida real. No entanto, conforme alerta o psiquiatra Renato Silva, essa busca por satisfação digital pode se transformar em um problema quando o uso excessivo começa a substituir atividades essenciais, como manter uma rotina de sono saudável, estudar, trabalhar e socializar.

Segundo Silva, apesar dos benefícios potenciais dos jogos eletrônicos, como o desenvolvimento de habilidades cognitivas e motoras, o uso exacerbado pode estar ligado a vulnerabilidades pessoais. Jovens com baixa tolerância à frustração, ansiedade social e baixa autoestima podem ser mais suscetíveis ao uso excessivo dos jogos e redes, na busca de um alívio para essas dificuldades emocionais.

Além disso, existe uma relação entre o vício em tecnologia e transtornos mentais, como depressão, transtorno bipolar e TDAH. Contudo, a relação de causa e efeito entre esses transtornos e o vício ainda não é totalmente clara: a ciência ainda investiga se a dependência digital pode ser um gatilho para o desenvolvimento de certos transtornos ou se, ao contrário, esses problemas de saúde mental tornam o indivíduo mais propenso ao uso excessivo.

Esse cenário ressalta a importância do equilíbrio. Embora a tecnologia possa ser uma aliada para aliviar o estresse e desenvolver habilidades, a conscientização sobre o uso excessivo e a busca por alternativas de bem-estar na vida offline são essenciais para a saúde mental e o bem-estar dos jovens. O tratamento desse transtorno pode envolver psicoterapia, como a terapia cognitivo-comportamental, além de medicação para tratar sintomas associados, e grupos de apoio, que proporcionam suporte de pessoas com vivências semelhantes.

E-sports: A Nova Era do Esporte

Os e-sports, ou esportes eletrônicos, surgiram como competições de jogos eletrônicos disputadas por jogadores profissionais. Com uma estrutura similar à de esportes tradicionais, os e-sports possuem ligas, campeonatos e torcidas. Esse universo conquistou um público global, impulsionado por fatores como a acessibilidade dos jogos, a formação de comunidades, e a transmissão ao vivo em plataformas de streaming como Twitch e YouTube.

Para alcançar um alto desempenho, os jogadores de e-sports têm acompanhamento psicológico, treinam intensivamente, seguem uma rotina e são avaliados por equipes de gestão e recrutamento. Essa estrutura competitiva espelha as demandas físicas e mentais de esportes tradicionais, diferenciando-se apenas pelo meio virtual.

A prática dos e-sports já é reconhecida como esporte em diversos países, como Itália, Rússia, Finlândia, Malásia, Coreia do Sul e China, onde competições e eventos atraem milhões de espectadores e são economicamente relevantes. Jogos como xadrez, pôquer e Go também passaram a ser considerados esportes por possuírem estruturas competitivas, campeonatos e um desenvolvimento de habilidades complexas.

Gameficação e sociedade

Os jogos, que antes eram vistos apenas como passatempo, estão se revelando ferramentas poderosas para transformar a sociedade. Através de mecânicas que ensinam habilidades valiosas e narrativas que abordam temas sociais relevantes, os games estão ganhando um papel cada vez mais importante em nossa cultura.

A ascensão dos jogos eletrônicos como forma de entretenimento e interação social trouxe consigo uma série de desafios e oportunidades para a sociedade. É fundamental analisar ambos os lados da moeda para entendermos o impacto real dessa transformação.

Os jogos online facilitam a criação de comunidades globais, onde pessoas com interesses em comum podem se conectar e interagir, permitindo também a expressão sua criatividade de diversas maneiras, seja através da criação de conteúdo, da participação em comunidades online ou da construção de mundos virtuais. Essas comunidades podem promover a inclusão e o apoio social. Outro ponto a se considerar é o fato da indústria de jogos ser um dos setores que mais crescem no mundo, gerando empregos e movimentando a economia.

Conclusão

Os e-sports são uma expressão moderna de competição e cultura que transformam os jogos eletrônicos em um espetáculo profissional. Ao mesmo tempo, a conscientização sobre os riscos do vício em games é fundamental, para que o universo dos jogos possa ser aproveitado de forma saudável e equilibrada. A popularidade dos e-sports e a crescente preocupação com a saúde mental dos jogadores mostram que os jogos eletrônicos, quando bem geridos, podem ser uma fonte de entretenimento e realização. Ao compreendermos os desafios e oportunidades que eles apresentam, podemos trabalhar para maximizar seus benefícios e minimizar seus riscos, construindo um futuro mais justo e equitativo para todos.





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segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Racismo, eurocentrismo e o lugar de Vinícius Júnior

O que revela o resultado do Bola de Ouro deste ano sobre as persistentes manifestações do imperialismo

Por Giovanna Mota

Ballon d’or, a Bola de ouro, como é conhecida, é uma das maiores premiações individuais no mundo do futebol. Criada pela revista francesa France Football, ela contempla o melhor jogador da temporada desde 1956. Neste ano de 2024, o nome mais cotado a vencer era o brasileiro Vinícius Júnior O espanhol Rodri, um aplicado, mas não brilhante, volante do clube inglês Manchester City, porém, foi indicado como o jogador do ano, deixando o segundo lugar para o brasileiro.

Seria natural que o resultado provocasse reações acaloradas, especialmente de brasileiros - mas o resultado parece revelar algo mal escondido: a tentativa de aplicar uma lição de moral no “indisciplinado” Vinícius parece esconder a arrogância típica dos colonizadores e, pior, o racismo contra o qual o jogador brasileiro se insurgiu.

Desde que chegou ao Real Madrid, Vinícius é vítima de atos racistas, tanto nas atitudes de parte da torcida quanto em episódios de preconceito racial explícito em estádios e na mídia. A constante exposição do jogador, apesar de seu talento e conquistas, coloca em xeque a maneira como a sociedade europeia trata os atletas negros, especialmente aqueles da América Latina e da África. O destaque de Vinícius Júnior no futebol europeu, com suas vitórias e habilidades excepcionais, contrasta com a resistência que ele enfrenta devido ao racismo, o que revela um sistema que muitas vezes marginaliza e diminui a importância de figuras negras, mesmo quando elas são protagonistas.

O fato de Vinícius Júnior se posicionar contra o racismo, tanto em campo quanto fora dele, também parece ter contribuído para o fato de ele não ter conquistado a Bola de Ouro. O jogador, que constantemente denuncia os abusos racistas a que é submetido, tanto nas redes sociais quanto nas arenas, desafia uma narrativa eurocêntrica que tenta manter a ideia de que os atletas de fora da Europa devem se "encaixar" nas normas europeias, sem questionar ou se opor às injustiças que sofrem.

O eurocentrismo também se reflete nas expectativas culturais impostas aos jogadores, especialmente os de origens latinas ou africanas. No caso de Vinícius Júnior, seu comportamento espontâneo e expressivo em campo – como dançar ao marcar gols ou tirar a camisa para celebrar – é frequentemente visto com preconceito por parte da mídia e das torcidas europeias, que tendem a valorizar um estilo mais “contido e disciplinado". Esses gestos, comuns em várias culturas latino-americanas, muitas vezes são estigmatizados no futebol europeu, onde há uma tendência a não aceitar comportamentos que escapam ao "padrão europeu”, refletindo um duplo padrão que privilegia atletas de origens continentais brancas e eurocêntricas.

Com a notícia de que Vinícius não iria ganhar a bola de ouro, o Real Madrid, o time do jogador e também um dos maiores times do mundo decidiu não ir à cerimônia e nem levar nenhum representante, mesmo ganhando os prêmios de melhor time, artilheiro e melhor treinador da temporada.

Essa atitude do Real Madrid e principalmente do Vini Jr. foi repercutida pelo jornalista e ex-apresentador brasileiro Thiago Leifert: “Deveria ter ido, com o peito estufado, olhar no olho dos jornalistas que não votaram em você, receber o carinho. Se você tivesse ido, seria o campeão moral. Teria sido absurdamente legal se você tivesse ido. O Rodri não tem culpa, acabou sendo um pouco ferido pelos fatos. Não tem culpa nenhuma. Você deveria ter ido, Vini. Para você ser levado nos braços do povo. Perdeu a oportunidade de ter essa imagem”.

Leifert recebeu as devidas críticas sobre como um homem branco não deve ensinar um homem pretocomo reagir a casos de racismo. Um dos comentários foi do ator Bruno Gagliasso, ator branco, como Leifert, mas que, por se notabilizar por ter filhos pretos, tem sofrido, ainda que indiretamente, com o racismo. Sobre Vinícius Júnior, Gagliasso escreveu: “Ele venceu porque a sua ausência é mais eloquente do que qualquer presença naquele evento. Ele venceu porque fez o mundo inteiro olhar para uma brutal tentativa de apagamento.”

A ausência de Vinícius Júnior na cerimônia da Bola de Ouro 2024 não só evidencia sua resistência ao racismo, mas também provoca uma profunda reflexão sobre as injustiças enfrentadas pelos atletas negros no futebol europeu. A sua decisão de não comparecer, em protesto contra um sistema que muitas vezes marginaliza e menospreza as suas realizações, ressoa mais alto do que qualquer cerimónia de entrega de prémios. A reação dos meios de comunicação social e a defesa das suas posições por figuras públicas sublinham a urgência de um diálogo sobre o racismo e o eurocentrismo que persistem nos atos, apesar de todo esforço civilizatório apregoado pelos europeus aos bárbaros e selvagens.
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quarta-feira, 6 de novembro de 2024

ASCENSÃO DA EXTREMA-DIREITA NO BRASIL: UMA RETROSPECTIVA

 Por Ana Paula Soares

Este é o primeiro texto  de uma série em que o Pluris tenta entender a atuação da direita no país e seus efeitos na atualidade 

O cenário político brasileiro se transformou desde que a nova direita ganhou força e influência no Brasil. O âmbito da política no país lida com figuras como Jair Bolsonaro, Nikolas Ferreira e Pablo Marçal, personagens que resultam de um grupo de pessoas que careciam de um líder de direita em meio a crises. Dessa forma, a extrema-direita cresce de modo acelerado modificando a direita clássica a qual a população conhecia. Porém, qual foi o estopim para o triunfo dessa ideologia?

As ideias da nova extrema-direita brasileira, em que pese uma longa tradição, que se inicia com Plínio Salgado e seu movimento integralistra ainda na década de 1920, começaram a ser difundidas por Enéas Carneiro (PRONA), candidato à presidência que teve sua primeira aparição em 1989, na primeira eleição direta após 30 anos de ditadura. O candidato, que partilhava do ideário marxista durante parte de sua vida, aderiu às teses ultranacionalistas e anticomunistas, dentre elas a valorização da pátria, reforma da educação visando uma escola tradicional, a moral e os bons costumes, ensino bíblico, contrariedade ao aborto e relacionamentos homoafetivos. Após anos como candidato à presidência sem sucesso, Enéas foi eleito à Deputado Federal em 2002, período em que estabeleceu relações com o deputado de baixo clero, Jair Bolsonaro.

Mais tarde, em junho de 2013, durante o mandato de Dilma Rousseff (PT), milhares de brasileiros manifestaram seu descontentamento com o governo - não só federal, como com toda a estrutura política do país naquele momento - e tomavam as ruas como palco político. As redes sociais tornaram o alcance dessas manifestações maior, pois além de propagar as ideias pelas as quais a população lutava, também foram meios de organização e filiação de pessoas aos movimentos. Diversos grupos com diferentes crenças ideológicas ocupavam as ruas e impactavam o país e o mundo com tamanha mobilização, cada grupo com suas reinvindicações, mas o recado era o mesmo: o povo estava insatisfeito e exigia ser ouvido.

Embora o governo federal se esforçasse para contornar a situação, a aversão crescia mais a cada dia. O Partido dos Trabalhadores atingiu o nível de rejeição como nunca antes nas periferias, e a aproximação com a camada popular que havia colocado o PT no governo estava tomando o rumo contrário. Logo, o povo se encontrava em uma situação em que não havia uma figura representante. Essa lacuna de representatividade abriu espaço para que outra pessoa tomasse esse lugar, alguém que ganhava a simpatia do público devido às críticas ferrenhas à esquerda e que ocupava as ruas junto aos grupos de direita: o Jair Messias Bolsonaro. Nesse momento a extrema-direita se aproveitava das brechas que o caos do Brasil proporcionava: com discursos de um país melhor e da fé em Deus, a direita e a figura do “mito”, cresciam no imaginário popular.

Em 2016, os ataques contra a presidente se intensificaram. O discurso, sempre retomado para criticar a esquerda no poder, de anticorrupção, foi instrumentalizado pela extrema-direita por meio da Operação Lava Jato - investigação de esquemas de corrupção no país. As ruas novamente eram tomadas como cenário de revolta, a nova direita ecoava o hino do Brasil e vestia novamente as blusas verdes e amarelas para lutar pela saída da presidente.

A insatisfação generalizada resultou no impeachment de Rousseff. Em agosto do mesmo ano, Dilma foi afastada de suas atividades como Presidente da República, logo foi substituída pelo vice Michel Temer da direita clássica. Durante a votação de impeachment um discurso em específico marcaria o cenário político e desencadearia mais tarde uma direita que prega abertamente ideias inconstitucionais, o Deputado Jair Bolsonaro proferia uma saudação ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos mais violentos torturadores da Ditadura Militar que resultou do golpe de 1964.

O nome Jair Bolsonaro ganhava destaque com o povo, entre muitos fãs e muitas pessoas que o odiavam, a figura do mito, como se intitulava, era cada vez mais conhecida. Com a popularidade e o reconhecimento que ele recebia, era dado início a uma grande campanha eleitoral que polarizava cada vez mais o cenário político brasileiro. Em 2018, Bolsonaro se tornou candidato à presidência e reuniu um grande número de eleitores que reproduziam sua ideologia. 

A campanha bolsonarista era fundamentada nos valores cristãos, família tradicional e nacionalismo, ele retomava algumas ideias que Enéas começara a disseminar em 1989. A fala agressiva, a identidade visual e a construção da propaganda política lembravam as tentativas de Enéas para presidência, porém para Bolsonaro o alcance aos eleitores era absurdamente maior.

Como opositor ao ex-militar, a esquerda tinha Haddad (PT), ex-ministro da educação de Luís Inácio Lula da Silva. A direita era cada vez mais forte e embora a esquerda resistisse, muitas pessoas ainda se recusavam a votar no Partido dos Trabalhadores após todos os acontecimentos passados. Durante as eleições de 2018 um grande fenômeno explodiu, as fake News, a direita construía sua campanha através da disseminação de notícias falsas inventadas para descredibilizar os partidos de esquerda e, infelizmente, um grande grupo de pessoas eram enganadas por essas mentiras. 

Além das ruas, as redes sociais agora eram o principal meio de mobilizar a população, a campanha digital de Jair Bolsonaro se destacou entre todos os candidatos. As falas absurdas do candidato à presidência se espalhavam com grande velocidade, tal como as fake News, entretanto as notícias verdadeiras ou a retratação desses discursos não engajavam tanto quanto o conteúdo produzido pela direita. Os próprios eleitores de esquerdas no intuito de criticar ou alertar a população compartilhavam os vídeos, porém esses acessos contribuíam para que o conteúdo digital ganhasse mais visibilidade. Essa prática ainda hoje é utilizada por figuras da extrema-direita como Nikolas Ferreira, atual Deputado Federal, e Pablo Marçal, candidato à prefeito em São Paulo.

Embora a tentativa da esquerda de resistir ao fenômeno do bolsonarismo, o candidato de direita ganhou as eleições no segundo turno com mais de 57 milhões de votos, e depois de muitos anos um presidente de direita foi eleito através da Eleição Presidencial. Os anos de governo do “mito” foram anos muito conturbados, além de muitos atos de oposição ao presidente o mundo enfrentava uma pandemia causada pelo vírus COVID-19. Jair Bolsonaro agiu com descaso com a população em meio a uma pandemia global e desastres naturais que aconteceram durante seu mandato, porém insistia em dizer que o problema do país eram a falta de moralidade e falta de Deus.

O que torna Bolsonaro uma figura memorável é a construção dele como um personagem, muitos políticos ainda utilizam dessa manobra após perceberem como ele obteve sucesso.

Nas eleições de 2022, a luta era de duas figuras de grande apelo popular: Lula foi hábil a se registrar no imaginário da população como um símbolo de esperança após quatro anos de um governo conturbado, ao passo que Bolsonaro insistia na imagem do defensor dos bons costumes.

Hoje, outubro de 2024, ocorreram as eleições municipais e foi possível perceber o reflexo de todos os eventos já mencionados durante todo o processo eleitoral, desde a campanha política aos dias de eleição, como a criação de um personagem para fixar na mente dos eleitores, a utilização das redes sociais como palco político e os vídeos e falas proferidas visando ser o assunto do momento nas redes sociais. O fenômeno do bolsonarismo alcançou todas as esferas.
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terça-feira, 29 de outubro de 2024

X: o retorno

 Entenda como o falecido Twitter se tornou o “ X “ , quais as causas da sua suspensão e os interesses e impactos do bilionário Elon Musk para o país. 


Por Victória Ribeiro e Heloisa De Tofoli 


Após exatos 39 dias, a rede social X voltou ao ar em uma terça-feira, dia 8 de outubro, após o cumprimento das determinações do Supremo Tribunal Federal (STF), como o bloqueio de contas e o pagamento de multas, além da indicação de representante legal no Brasil - a advogada Rachel de Oliveira Villa Nova foi a nomeada (veja aqui a análise do Pluris para o caso). A plataforma do bilionário Elon Musk pagou ao STF R$ 28,6 milhões para retomar suas operações no país.

Desse modo, a fim de contextualizar o que levou a plataforma X ao cenário atual, vamos abordar o falecido “Twitter”, com o intuito de compreender quando a rede social foi criada, quais eram suas funções e os interesses por trás da compra realizada por Elon Musk.

O Twitter foi fundado em março de 2006 por Jack Dorsey, Christopher Isaac Stone, Noah E. Glass, Jeremy LaTrasse e Evan Williams, com o objetivo de ampliar a comunicação entre as pessoas de forma instantânea, objetiva e virtual. Os usuários poderiam compartilhar seus pensamentos e acontecimentos em tempo real. Mas não demorou muito para que a plataforma se tornasse uma fonte de notícias e mobilizações políticas.

Foi por meio da ferramenta hashtag na plataforma, uma palavra-chave de um assunto, que, por exemplo, o termo “Black Lives Matter” — vidas pretas importam — ganhou notoriedade, tornando-se uma grande representação mundial no combate ao racismo. Isso ocorreu a partir do compartilhamento de um tweet por indivíduos que se identificaram com a causa.

Dessa maneira, a rede social também desempenha um papel fundamental na construção da opinião pública e na seleção de temas relevantes. No entanto, com a utilização de algoritmos — sequências de instruções que visam um determinado objetivo — o Twitter se tornou capaz de direcionar aos usuários os assuntos que mais os interessam, contribuindo, por consequência, para a formação de “bolhas sociais”, onde o indivíduo interage apenas com pessoas que compartilham a mesma ideologia.

Em contrapartida, essa dinâmica contribuiu para o crescimento de grupos extremistas dentro da plataforma, que se viu obrigada a desativar e banir perfis de usuários que infringem suas diretrizes ao incentivar a violência, o preconceito e a desinformação. Sob essa ótica, surgiu a ideia da compra de Elon Musk, baseada na alegação de que as medidas tomadas pelo Twitter limitam a “liberdade de expressão” dos usuários. Além disso, o bilionário estava ciente do poder de atuação das big techs - grandes empresas que exercem domínio no mercado de tecnologia e inovação - nas mais diversas áreas.

Desde a aquisição do Twitter por Musk, a plataforma passou por uma série de transformações, como a mudança de nome para “X”, a retirada do selo de verificação — importante ferramenta utilizada por jornais e celebridades para evitar contas falsas — e a limitação de recursos antes gratuitos, como a publicação de tweets, a fim de que os usuários pagassem pela sua utilização. Além disso, ele ameaçou desbloquear perfis que reafirmam ideologias extremistas. Nesse cenário, a plataforma se consolidou como a principal disseminadora de fake news e o principal local de encontro dos indivíduos da extrema direita, como Donald Trump, Jair Bolsonaro e seus aliados.

Diante de permanentes ataques a autoridades e instituições brasileiras, a rede que possui cerca de 22 milhões de usuários no Brasil, foi bloqueada no dia 31 de agosto após uma série de embates entre Elon Musk, dono da rede, e o ministro do STF Alexandre de Moraes. Os conflitos começaram quando Musk se recusou a bloquear perfis antidemocráticos e criminosos investigados pelo STF, alegando que Moraes estaria praticando censura e indo contra a liberdade de expressão. No dia 17 de agosto, Elon decidiu fechar o escritório do X no Brasil, uma vez que foi intimado a pagar uma multa de R$ 22 mil por desrespeitar ordens judiciais. A ausência de um representante legal no Brasil foi o estopim para que Moraes determinasse a suspensão da plataforma.

Consolidada a suspensão da plataforma, Musk demonstrou convicção de que o bloqueio causaria uma grande revolta entre os brasileiros e até sugeriu o uso de VPNs (Redes Privadas Virtuais), para acessar a rede social, o que se configuraria como desobediência civil . Não deu certo - seja porque as pessoas simplesmente optaram por sair de um ambiente de clara manipulação da opinião pública, seja pela simples ignorância digital dos usuários, que ignoram a existência de VPNs. No final das contas, a conclusão a que se chega é que quem sentiu mais com o bloqueio da rede foi o próprio dono e não tanto os usuários, haja vista que ele recuou e aceitou as exigências feitas pelo STF por dois supostos motivos: econômico e de relevância.

O conflito entre Musk e Moraes acabou afetando os negócios do bilionário, como é o caso da Starlink, companhia de internet via satélite, que teve suas contas bancárias bloqueadas no Brasil para garantir o pagamento das multas impostas ao X pelos descumprimentos de ordens judiciais. A Starlink é fornecedora de importantes órgãos públicos federais, como o Exército e a Marinha, além da Petrobrás. Segundo a Anatel, em julho deste ano, a empresa assumiu a liderança no mercado de internet via satélite no Brasil, visto que sua tecnologia se mostrou acessível e eficiente, chegando a áreas consideradas remotas, como na Amazônia. Dada a relevância e a influência que a empresa possui, o fato de Musk ter arrastado seus negócios para uma briga pessoal e um tanto ideológica desagradou os acionistas.

Contudo, não foi só a esfera econômica que pesou para o bilionário. De acordo com o economista Roberto Kanter, da FGV, o X no Brasil tem mais valor do ponto de vista simbólico para os empreendimentos de Musk do que no âmbito econômico. A plataforma é muito utilizada por influenciadores e formadores de opinião; além disso, a legião de fãs brasileiros é significativa para movimentar e engajar a rede.

O advogado Ronaldo Lemos, em entrevista ao podcast Café da Manhã, também concorda que o recuo de Elon Musk foi mais pela falta de engajamento dos brasileiros do que por fins monetários. Ronaldo comenta que o objetivo do bilionário nunca foi ganhar dinheiro com a plataforma, visto que ele a comprou por um valor muito maior do que realmente valia. O que importa para Musk é a relevância. Assim, ao perceber que essa relevância estava sendo perdida no Brasil e que os usuários estavam migrando para outras redes, isso o deixou ideologicamente ferido e ele cedeu. Afinal, o bilionário não é a última bolacha do pacote e a sociedade é adepta a mudanças.

Por fim, a transformação do X e o poder que ele representa evidenciam a importância da regulamentação das big techs. visto que, sem o cumprimento das normas e leis adequadas, essas empresas possuem o poder de influenciar as decisões políticas e sociais de um país sem serem responsabilizadas e penalizadas. Além disso, a plataforma,considerada palco de disseminação de fake news por parte da extrema direita, durante a sua suspensão teve a velocidade de propagação dessas notícias reduzida possibilitando que os jornalistas interviessem antes que os conteúdos se espalhassem, afirmou a diretora do Laboratório de Estudos de Internet e Redes Sociais da UFRJ (Netlab), Marie Santin, em entrevista à Agência Pública, jornalismo investigativo independente. Logo, a situação revela a contribuição da rede social para a desinformação, além de refletir as dificuldades no qual os veículos de comunicação enfrentam para conter os rumores. Pensando nisso, como você percebe o impacto das redes na sociedade ?
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quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Precisamos das redes sociais ou elas que precisam de nós?

 O bloqueio do X no Brasil nos faz pensar sobre a relevância das plataformas, o que ganhamos na vida online? 

Por Laís Abreu 

No mundo contemporâneo, a presença das redes sociais na rotina das pessoas se tornou algo tão comum que aqueles que arriscam a ausência nas plataformas digitais criam uma impressão de desatualização ou até mesmo falta de conectividade com o restante do mundo.

Os celulares facilitaram bastante isso: entre uma tarefa e outra, acontece uma checagem no Instagram, outra no WhatsApp e uma lida no Twitter, ou melhor dizendo X. Até que no dia 30 de agosto, milhões de usuários da famosa plataforma do passarinho se viram diante de seu bloqueio. Para muitos fãs da rede foi uma atitude antidemocrática, mas o que muitos precisavam enxergar é que, de fato, a vida continua sem as plataformas digitais.

Embora a rotina de todos os brasileiros estivesse sendo a mesma, as reclamações e abstinência tomaram conta das demais redes sociais e muitos garantiam que lutavam pela “liberdade de expressão”. Um estudo da Orbit analisou 500 conversas no TikTok sobre a suspensão do X no Brasil e considerando os usuários que já haviam se decidido sobre a migração para uma outra plataforma, 78% disseram que o BlueSky seria o substituto do X. Em seguida, o Threads aparecia com 14% dos comentários.

No entanto, diante de toda essa “ausência de liberdade de expressão”, os internautas ignoram a verdadeira influência e poder que tomam conta das redes sociais. Adorno foi um dos primeiros pensadores a realizar análises mais sistemáticas sobre o tema e descreveu que os meios de comunicação em larga escala moldam e direcionam as opiniões de seus receptores. É como se fosse uma pirâmide, em cuja base estão todos os usuários envolvidos em likes, retweets, compartilhamentos, publicações, trends topics e hashtags. Enquanto no topo dela, estão as grandes marcas e influencers, que ditam as tendências, impõem os padrões e moldam as narrativas.  

É uma ilusão acreditar de que os usuários possuem relevância na relação com as plataformas digitais, mas no fundo só são propagadores daquilo que costumam receber. Enquanto tentam adaptar comportamentos para ganhar likes, os milhões de usuários na base da pirâmide mudam suas crenças e valores, enquanto o topo da pirâmide segue sendo beneficiado.
O bloqueio do X no Brasil nos faz pensar sobre a relevância das plataformas, o que ganhamos na vida online? Como reflete Muniz Sodré, em um texto para a Folha S. Paulo, “esses dispositivos são menos necessários do que se querem vender”. Nenhum usuário morreu ou adoeceu com a ausência da plataforma, que retornou na quarta-feira dia 8 de outubro, após o pagamento de muitas multas. Muito pelo contrário, o único afetado e afetado financeiramente, foi Elon Musk, de resto, todos seguiram sobrevivendo, se adaptando e redescobrindo outras formas de comunicação.

É uma ilusão acreditar de que os usuários possuem relevância na relação com as plataformas digitais, mas no fundo só são propagadores daquilo que costumam receber. Enquanto tentam adaptar comportamentos para ganhar likes, os milhões de usuários na base da pirâmide mudam suas crenças e valores, enquanto o topo da pirâmide segue sendo beneficiado.

O bloqueio do X no Brasil nos faz pensar sobre a relevância das plataformas, o que ganhamos na vida online? Como reflete Muniz Sodré, em um texto para a Folha S. Paulo, “esses dispositivos são menos necessários do que se querem vender”. Nenhum usuário morreu ou adoeceu com a ausência da plataforma, que retornou na quarta-feira dia 8 de outubro, após o pagamento de muitas multas. Muito pelo contrário, o único afetado e afetado financeiramente, foi Elon Musk, de resto, todos seguiram sobrevivendo, se adaptando e redescobrindo outras formas de comunicação.

Em um cenário em que nossa última imagem antes de dormir é uma tela e a primeira ao acordar é uma tela, a reflexão que fica é: precisamos das redes sociais ou elas que precisam de nós?
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